São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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LANTERNA NA POPA
Esgotamento de modelos

ROBERTO CAMPOS

Ao implantar o Plano Real, FHC proclamou que se tratava de uma mudança cultural profunda. Isso é verdade, em certo sentido. Foram cinco os avanços culturais: o reconhecimento da estabilidade de preços como valor fundamental; o abandono de métodos heterodoxos de combate à inflação (controle de preços e sequestro de ativos); a identificação do déficit global do setor público como o agente causal da inflação, em vez do tradicional "escapismo" de buscar causas externas como a crise do petróleo, as perdas internacionais (Brizola) ou a ganância das multinacionais (Lula); o reconhecimento de que a dívida interna passou a ser mais opressiva que a externa, por somente ser rolável a juros altos e curto prazo; a urgência de reformatação do Estado, que deveria tornar-se samaritano e regulador ao invés de empresário e interventor.
Conquanto a ideologia do Plano Real não tenha sido claramente explicitada, por falta de comunicadores na equipe econômica, pode-se inferir que ela se baseava na premissa de "mudança de modelo". Estava esgotado o antigo modelo de industrialização substitutiva de importações, com vezo autárquico e intenso dirigismo. Haveria que criar um novo "modelo de economia aberta", orientada para o mercado e inserida num contexto globalizante.
Em linguagem pitoresca, poder-se-ia dizer que o antigo modelo se baseava numa "tríade maligna" -inflação, proteção e desvalorização. Haveria que substituí-lo por uma "tríade benigna"- estabilização, abertura e reformas. Em suma, o modelo antigo era "acomodatício". O novo seria "reformista".
Subjacentes, porém não explicitados, havia dois aparentes paradoxos:
- a solução do problema cambial brasileiro é em grande parte extracambial;
- a solução do problema fiscal é em grande parte patrimonial.
O primeiro paradoxo explica a rigidez da política cambial. Na promoção de exportações, o modelo previa concentração de esforços na redução do "custo" do exportador (reformas estruturais) mais do que no aumento da "receita" do exportador (desvalorização do câmbio).
O segundo paradoxo reforça o caso em favor da privatização de estatais. Para conter o "fluxo" de endividamento, bastariam medidas fiscais; para reduzir o estoque da dívida seria necessário recorrer-se também a uma solução "patrimonial": a privatização de empresas e a concessão de serviços.
Como se houve o Plano Real na busca da "tríade benigna"?
A estabilização de preços foi conseguida antes do esperado e sem o trauma recessivo inicial, habitual nos programas da espécie. (Hoje sabemos que o ajuste recessivo fora apenas adiado). Usaram-se cinco instrumentos: âncora cambial, desindexação, política monetária de juros altos, abertura para importações e um miniajuste fiscal (Fundo Social de Emergência).
A abertura para importações foi feita de maneira atabalhoada. E, em virtude da sobrevalorização do real, tornou-se punitiva para a indústria nacional. Mas surtiu os efeitos desejados, em termos de criar uma cultura de respeito ao consumidor, enquanto a concorrência externa forçou aumentos de produtividade.
Foi no capítulo das reformas que o desempenho foi mais insatisfatório, gerando o déficit gêmeo -o cambial e o fiscal.
Visto em retrospecto, o sucesso do Real foi ao mesmo tempo bem-vindo e "imerecido". Imerecido porque não tínhamos realmente feito a lição de casa, cujo componente mais importante seria o equilíbrio das contas públicas, ou seja, a âncora fiscal. Da falta dessa âncora resultou uma sobrecarga da política monetária e cambial - juros altos e taxas cambiais administradas dentro de bandas estreitas. Durante certo tempo, a abundante liquidez internacional obscureceu a percepção de que estávamos caindo em duas armadilhas: a do endividamento e a do câmbio. A sucessão de crises internacionais -a do México, a da Ásia e a da Rússia-, colocando o holofote sobre a debilidade de nossos "fundamentals", destruiu nossa esperança de um gradualismo razoavelmente tranquilo nas reformas, as quais sofreram também a intercorrência do debate e campanha da reeleição presidencial.
A armadilha do endividamento consiste em que os juros altos, utilizados para conter a fuga de capitais e para financiamento interno do déficit, deprimem ao mesmo tempo a capacidade contributiva do setor privado e expandem a dívida pública. A armadilha do câmbio sobrevalorizado (em princípio útil para eliminar o círculo vicioso de inflação-desvalorização) consiste em que a rigidez cambial só poderia conviver com a expansão das exportações se houvesse uma combinação de (a) aumento sustentado da produtividade e/ ou (b) redução substancial do custo Brasil do exportador. A estratégia de ataque ao problema pelo lado dos "custos" foi a adotada pela Argentina. No caso brasileiro, as medidas estruturais de redução de custos -reforma portuária, privatização da infra-estrutura, destributação de exportações, juros favorecidos para exportadores- foram aplicadas com atraso e timidez.
Um complicador, do ponto de vista da finança internacional, foi o fracasso do "pacote 51", de novembro de 1997, para ajuste à crise asiática. As metas positivas de redução de gastos não foram cumpridas, restando apenas o efeito depressivo de impostos e juros.
Foi até certo ponto surpreendente que o FMI aceitasse o novo programa brasileiro de ajuste. Ele tem os mesmos defeitos que o anterior: predominância de aumento de impostos e contribuições (que tiram recursos do setor privado) sobre o corte de gastos públicos (que liberaria recursos para o setor mais produtivo). E não contêm compromissos específicos com a aceleração de privatizações. A meu ver, o binômio fiscal -mais receita e menos despesa- deveria tornar-se um trinômio, que incluiria um esforço de redução do "estoque" da dívida pública com os recursos da venda de estatais ou da outorga de serviços. Candidatos naturais seriam o complexo saurino -Petrossauro e BR Distribuidora- o Banco do Brasil, a BB-DTVM e o Banespa, assim como, no setor elétrico, Furnas, Tucuruí e Chesf. Tem carradas de razão o senador Jorge Bornhausen ao propor uma privatização universal de atividades empresariais do Estado, incluindo vacas sagradas como a Petrossauro. É a primeira vez que ouço um líder de partido político ter um ataque público de sensatez.
O impacto internacional sobre o crédito brasileiro de um programa de privatização radical seria extremamente saudável, agregando ao efeito financeiro um efeito psicológico. Sinalizaria que o Brasil finalmente percebeu a gravidade da crise e está disposto a abandonar velhos tabus. Essa percepção da crise é alta no Executivo, média no Legislativo e inexistente nos vários ramos do Judiciário, cujo boom imobiliário na construção de sedes suntuosas (sobretudo em Brasília) deveria ser uma das primeiras vítimas da contenção orçamentária.
Da mesma maneira que o Plano Real nasceu do esgotamento do modelo da "tríade maligna", corre o risco de morrer pelo insuficiente desempenho da "tríade benigna".


Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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