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LANTERNA NA POPA
Esgotamento de modelos
ROBERTO CAMPOS
Ao implantar o Plano Real,
FHC proclamou que se tratava
de uma mudança cultural profunda. Isso é verdade, em certo
sentido. Foram cinco os avanços
culturais: o reconhecimento da
estabilidade de preços como valor fundamental; o abandono de
métodos heterodoxos de combate à inflação (controle de preços
e sequestro de ativos); a identificação do déficit global do setor
público como o agente causal da
inflação, em vez do tradicional
"escapismo" de buscar causas
externas como a crise do petróleo, as perdas internacionais
(Brizola) ou a ganância das
multinacionais (Lula); o reconhecimento de que a dívida interna passou a ser mais opressiva que a externa, por somente
ser rolável a juros altos e curto
prazo; a urgência de reformatação do Estado, que deveria tornar-se samaritano e regulador
ao invés de empresário e interventor.
Conquanto a ideologia do Plano Real não tenha sido claramente explicitada, por falta de
comunicadores na equipe econômica, pode-se inferir que ela
se baseava na premissa de "mudança de modelo". Estava esgotado o antigo modelo de industrialização substitutiva de importações, com vezo autárquico
e intenso dirigismo. Haveria
que criar um novo "modelo de
economia aberta", orientada
para o mercado e inserida num
contexto globalizante.
Em linguagem pitoresca, poder-se-ia dizer que o antigo modelo se baseava numa "tríade
maligna" -inflação, proteção e
desvalorização. Haveria que
substituí-lo por uma "tríade benigna"- estabilização, abertura e reformas. Em suma, o modelo antigo era "acomodatício".
O novo seria "reformista".
Subjacentes, porém não explicitados, havia dois aparentes
paradoxos:
- a solução do problema cambial brasileiro é em grande parte
extracambial;
- a solução do problema fiscal
é em grande parte patrimonial.
O primeiro paradoxo explica a
rigidez da política cambial. Na
promoção de exportações, o modelo previa concentração de esforços na redução do "custo" do
exportador (reformas estruturais) mais do que no aumento
da "receita" do exportador (desvalorização do câmbio).
O segundo paradoxo reforça o
caso em favor da privatização
de estatais. Para conter o "fluxo" de endividamento, bastariam medidas fiscais; para reduzir o estoque da dívida seria necessário recorrer-se também a
uma solução "patrimonial": a
privatização de empresas e a
concessão de serviços.
Como se houve o Plano Real
na busca da "tríade benigna"?
A estabilização de preços foi
conseguida antes do esperado e
sem o trauma recessivo inicial,
habitual nos programas da espécie. (Hoje sabemos que o ajuste recessivo fora apenas adiado).
Usaram-se cinco instrumentos:
âncora cambial, desindexação,
política monetária de juros altos, abertura para importações e
um miniajuste fiscal (Fundo Social de Emergência).
A abertura para importações
foi feita de maneira atabalhoada. E, em virtude da sobrevalorização do real, tornou-se punitiva para a indústria nacional.
Mas surtiu os efeitos desejados,
em termos de criar uma cultura
de respeito ao consumidor, enquanto a concorrência externa
forçou aumentos de produtividade.
Foi no capítulo das reformas
que o desempenho foi mais insatisfatório, gerando o déficit gêmeo -o cambial e o fiscal.
Visto em retrospecto, o sucesso
do Real foi ao mesmo tempo
bem-vindo e "imerecido". Imerecido porque não tínhamos
realmente feito a lição de casa,
cujo componente mais importante seria o equilíbrio das contas públicas, ou seja, a âncora
fiscal. Da falta dessa âncora resultou uma sobrecarga da política monetária e cambial - juros altos e taxas cambiais administradas dentro de bandas estreitas. Durante certo tempo, a
abundante liquidez internacional obscureceu a percepção de
que estávamos caindo em duas
armadilhas: a do endividamento e a do câmbio. A sucessão de
crises internacionais -a do México, a da Ásia e a da Rússia-,
colocando o holofote sobre a debilidade de nossos "fundamentals", destruiu nossa esperança
de um gradualismo razoavelmente tranquilo nas reformas,
as quais sofreram também a intercorrência do debate e campanha da reeleição presidencial.
A armadilha do endividamento consiste em que os juros altos,
utilizados para conter a fuga de
capitais e para financiamento
interno do déficit, deprimem ao
mesmo tempo a capacidade contributiva do setor privado e expandem a dívida pública. A armadilha do câmbio sobrevalorizado (em princípio útil para eliminar o círculo vicioso de inflação-desvalorização) consiste em
que a rigidez cambial só poderia
conviver com a expansão das
exportações se houvesse uma
combinação de (a) aumento
sustentado da produtividade e/
ou (b) redução substancial do
custo Brasil do exportador. A estratégia de ataque ao problema
pelo lado dos "custos" foi a adotada pela Argentina. No caso
brasileiro, as medidas estruturais de redução de custos -reforma portuária, privatização
da infra-estrutura, destributação de exportações, juros favorecidos para exportadores- foram aplicadas com atraso e timidez.
Um complicador, do ponto de
vista da finança internacional,
foi o fracasso do "pacote 51", de
novembro de 1997, para ajuste à
crise asiática. As metas positivas
de redução de gastos não foram
cumpridas, restando apenas o
efeito depressivo de impostos e
juros.
Foi até certo ponto surpreendente que o FMI aceitasse o novo programa brasileiro de ajuste. Ele tem os mesmos defeitos
que o anterior: predominância
de aumento de impostos e contribuições (que tiram recursos
do setor privado) sobre o corte
de gastos públicos (que liberaria
recursos para o setor mais produtivo). E não contêm compromissos específicos com a aceleração de privatizações. A meu
ver, o binômio fiscal -mais receita e menos despesa- deveria
tornar-se um trinômio, que incluiria um esforço de redução do
"estoque" da dívida pública
com os recursos da venda de estatais ou da outorga de serviços.
Candidatos naturais seriam o
complexo saurino -Petrossauro e BR Distribuidora- o Banco
do Brasil, a BB-DTVM e o Banespa, assim como, no setor elétrico, Furnas, Tucuruí e Chesf.
Tem carradas de razão o senador Jorge Bornhausen ao propor
uma privatização universal de
atividades empresariais do Estado, incluindo vacas sagradas
como a Petrossauro. É a primeira vez que ouço um líder de partido político ter um ataque público de sensatez.
O impacto internacional sobre
o crédito brasileiro de um programa de privatização radical
seria extremamente saudável,
agregando ao efeito financeiro
um efeito psicológico. Sinalizaria que o Brasil finalmente percebeu a gravidade da crise e está
disposto a abandonar velhos tabus. Essa percepção da crise é alta no Executivo, média no Legislativo e inexistente nos vários
ramos do Judiciário, cujo boom
imobiliário na construção de sedes suntuosas (sobretudo em
Brasília) deveria ser uma das
primeiras vítimas da contenção
orçamentária.
Da mesma maneira que o Plano Real nasceu do esgotamento
do modelo da "tríade maligna",
corre o risco de morrer pelo insuficiente desempenho da "tríade benigna".
Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do
Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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