São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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JANIO DE FREITAS
Trinta anos passados

13 de dezembro de 1968. Hélio Pellegrino, Washington Novaes e eu paramos em um botequim muito humilde, já perto do convento, no Rio, onde continuaríamos outra reunião de uma rede nacional de resistência à ditadura, jamais descoberta pela repressão. Caso único, ainda, por nenhum dos integrantes, quando preso, haver jamais citado a rede ou entregue um companheiro, nem mesmo os que sofreram tortura pesada. Um capítulo da antiditadura que não foi e, até onde posso prever, não será escrito.
No botequim avaliamos a informação de que a ditadura estava emitindo mais um ato institucional, o que significava a vitória da linha ultradura, com as consequências óbvias. Juntos, como estávamos quase sempre, só passamos pela reunião para uma despedida temporária. Logo a repressão estava buscando, e não encontrando, Hélio Pellegrino em sua casa, por causa de um artigo recém- publicado, que acabou causando- lhe cadeia.
Aquela noite teve para nós um significado particular. Os três partilhávamos uma visão divergente das correntes oposicionistas da época. E é essa divergência, agora em relação à maior parte dos escritos sobre o período entre o golpe de 64 e o AI-5, que traz ao tema desse segundo golpe, nos seus 30 anos.
Até 64, Costa e Silva era desconhecido pelos políticos. Castello Branco, não. Antes mesmo que os conspiradores civis o contatassem, Castello travara conhecimento com políticos udenistas, por intermédio de militares lacerdistas. Por esse tempo, Costa e Silva ocupava o seu lazer com pôquer, não com política.
Consumado o golpe, mas antes que algum outro aventureiro lançasse mão da cadeira de ministro da Guerra, Costa e Silva saiu de casa direto para nela se instalar. Passou a ordens, montou um gabinete que tinha de tudo, indicou nomes para as listas de cassação e juntou, sob sua imprevista ascendência, os militares politizados (ou semi) de qualquer linha que não fosse a Sorbonne, a direita formada na Escola Superior de Guerra e incrementada pelo lacerdismo.
Ainda no lusco-fusco do imediato pós-golpe, Costa e Silva chamou ao seu gabinete um grupo de governadores, presentes Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar de Barros. Soubera do trabalho político para fazer de Castello Branco o presidente, como supunham então, provisório. A seu ver, seria um erro muito perigoso. Castello estava longe de ser democrata, seu grupo sempre ambicionara tomar o poder aos políticos e não devolveria o governo em pouco tempo.
Embora Costa e Silva não se insinuasse, Lacerda achou que ele queria a Presidência e incentivou os governadores a sustentar o apoio a Castello. A conversa degenerou, e os governadores saíram tocados do gabinete. A partir daí, e por influência sobretudo de Lacerda e Magalhães Pinto, Castello passou a ser dado como general democrata, legalista, até intelectual, porque disse haver lido José de Alencar. Costa e Silva era a ameaça, a vocação de ditador, imagem que ele alimentava ao apoiar, além da linha marota dos Andreazzas & cia., os paranóicos das comissões militares de inquérito. Essa é a imagem que perdura, nas memórias escritas e nas análises sobre o período, tanto de Castello como de Costa e Silva. Mas Castello não só se apropriou mesmo da Presidência, segundo advertira Costa e Silva. Não tomou qualquer iniciativa para encaminhar a volta do Estado de Direito e do poder civil e, até o último instante do seu período, tentou emplacar um sucessor que mantivesse a linha por ele praticada.
Costa e Silva impôs-se, valendo- se da habilidade política dos marotos e da força dos furiosos. Mas, instalado na Presidência, ficou com os primeiros e esvaziou a força dos segundos. Acabou com a censura, restabeleceu o convívio com os políticos e estimulou um distensionamento que incluiu até o retorno de alguns cassados que a linha dura preferia liquidados.
A tolerância de Costa e Silva com os movimentos de rua, em 68, foi ao ponto de admitir uma conversa sua com a liderança estudantil, que torpedeou a audiência e deu, assim, um dos estímulos para o AI- 5. Ou seja, para o golpe contra a distensão que tendia a culminar na volta ao poder civil e ao Estado de Direito.
Isso, porém, não foi compreendido na ocasião pelos políticos não- direitistas, nem pelas correntes de esquerda. Em vez de empurrarem Costa e Silva na direção dele próprio, acelerando suas tendências, a ação foi contra ele. A favor, portanto, dos seus adversários do castellismo e das outras ultradireitas. Enfraquecido, Costa e Silva foi um alvo frágil para o golpe.
Nos últimos anos, Sarney foi dado, por sua origem de prócer arenista, como um presidente improvisado que serviria ao fortalecimento da direita com mesma origem. Pode-se, no entanto, discordar muito do seu governo, mas sem negar que Sarney foi um presidente democrata.
Collor foi apoiado pelos meios de comunicação, empresariado e mesmo por parte da esquerda como o reformador esperado, para instaurar o progresso na democracia. Seu fim não foi sem motivo justo.
Itamar Franco foi desprestigiado e mesmo maltratado a ponto de ser chamado, por um colunista da Folha, de idiota, o que jamais se vira no jornalismo. Fez um governo hoje reconhecido como muito bom, inclusive pela determinação com que assumiu o Plano Real, nada simples no seu início.
De Fernando Henrique é melhor não citar o que foi esperado do "presidente intelectual". Não é necessário.



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