São Paulo, quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

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ARTIGO

Lidando com a trágica normalidade da América Latina

MOISES NAIM
DO "FINANCIAL TIMES"

Hoje em dia não parece realista nem de bom-tom esperar que cúpulas de chefes de Estado produzam resultados concretos. Portanto, poucos esperam consequências importantes da cúpula de líderes do hemisfério ocidental em Monterrey, México. Nesse sentido, a reunião está sendo uma cúpula presidencial normal. Infelizmente, para a América Latina, essa normalidade é trágica.
O ano passado, por exemplo, foi normal: crescimento sofrível, grande instabilidade, pobreza generalizada e políticas inadequadas. As economias da região cresceram 1,5% em média, enquanto a população aumentou 2,5%, garantindo assim que os 227 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, ou 44% da população, continuem lá.
Também foi mais um ano que salientou a natureza de montanha-russa da região. Depois de sua catastrófica falência econômica, a Argentina se recuperou drasticamente e seu mercado de ações ofereceu os maiores retornos do mundo. Enquanto isso, a República Dominicana, que tinha o melhor desempenho da América Latina desde 1996, quebrou. As exportações regionais aumentaram 8%, mas haviam despencado 12% nos dois anos anteriores. Esses altos e baixos rotineiros alimentam as atribulações políticas que fazem parte da "normalidade" da América Latina.
A Bolívia é um caso extremo que ilustra essa terrível combinação de conflito social, economia medíocre e política feia. Um presidente reformista, eleito democraticamente, foi derrubado por protestos de rua liderados por grupos indígenas historicamente alienados e por plantadores de coca forçados pela guerra dos Estados Unidos contra as drogas a parar de cultivar sua colheita ancestral. Esses grupos adquiriram um peso político sem precedentes graças à ampla frustração popular com as reformas dos anos 90, ao descrédito dos partidos políticos tradicionais e à globalização, que os conecta facilmente com aliados de outros lugares.
Diversos elementos das dificuldades da Bolívia são encontrados por toda a América Latina. Os cocaleros da Bolívia, os sem-terra do Brasil, os zapatistas do México, os bolivarianos da Venezuela e outros grupos semelhantes estão rapidamente se tornando uma espécie de movimento político multinacional, como a América Latina jamais teve. Mas a instabilidade não é alimentada apenas pelos políticos recém-chegados; o conflito político à moda antiga também continua bloqueando as reformas e alimentando a inquietação. No México, por exemplo, uma combinação de más políticas econômicas, descontentamento político crescente e um presidente fraco está impedindo o progresso.
A presença do presidente George W. Bush na cúpula de Monterrey foi uma tentativa de sinalizar o interesse renovado de Washington pela região. Mas a realidade é que a América Latina, geralmente considerada o quintal dos Estados Unidos, se transformou em Atlântida, o continente perdido.
Mas nem tudo é normal na América Latina. Duas novas tendências têm dominado a paisagem política e econômica. A primeira é que, enquanto a região foi invisível para Washington, os latino-americanos tornaram-se mais visíveis que nunca nos Estados Unidos. Hoje os latinos são a maior minoria do país. Enquanto seu número continuar crescendo, o mesmo acontecerá com sua força política.
A reforma da política de imigração proposta por Bush é o reconhecimento de que os eleitores latinos adquiriram peso. As remessas de dinheiro dos Estados Unidos para a América Latina já superam o fluxo total de investimentos estrangeiros para a região. O grupo hispânico no Congresso americano deverá se tornar mais influente que o grupo negro. Enquanto isso isoladamente não transformará a América Latina numa prioridade de política externa dos Estados Unidos, certamente tornará mais difícil negligenciá-la.
A segunda tendência é o impacto da China sobre as economias latino-americanas. Enquanto os exportadores de bens manufaturados da região estão descobrindo que não podem concorrer com a China, para os exportadores de matérias-primas e produtos agrícolas a China tornou-se um grande cliente. O México e muitos países da América Central e do Caribe estão vendo suas indústrias de processamento para exportação, as "maquiadoras", serem assoladas pela concorrência de produtos chineses mais baratos.
No Cone Sul da região, as empresas estão se beneficiando da demanda chinesa. A Vale do Rio Doce, maior produtora de minério de ferro do Brasil, assinou recentemente um contrato de fornecimento de dez anos com o grupo Shanghai Baosteel; os produtores de gado e de soja da Argentina vêem a China como sua principal fonte de crescimento futuro; e a China já é o terceiro parceiro comercial do Chile.
Essas duas tendências não vão modificar substancialmente os legendários problemas da região: a desigualdade e a pobreza, a política disfuncional e as instituições emperradas. Mas elas se tornarão fatores que não podem ser ignorados ao se repensar a América Latina, o que é desesperadamente necessário.


Moises Naim é editor da revista "Foreign Policy".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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