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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª/ WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS

Cientista político afirma que "críticos mais severos" do governo não estão "sintonizados" com país

Eleitores aceitam esperar por mudança, diz analista

AP Photo/Dario Lopez-Mills
Petistas lotam a avenida Paulista no dia da eleição, em comemoração da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva sobre o tucano José Serra


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os eleitores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva votaram por mudanças mas estão dispostos a esperar, diz o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, do Iuperj, analisando as recentes pesquisas que indicam aprovação à atuação do governo.
"A atitude majoritária do eleitorado permanece hoje como estava durante a eleição. Estão dispostos a apostar e a esperar", afirma.
Tendo isso em conta, ele diz que "os críticos mais rigorosos" do governo, que apontam contradição entre a promessa eleitoral de mudança e o conservadorismo da política macroeconômica, não estão "sintonizados" com a maioria da população. Certos ou não, "eles não interpretam o sentimento majoritário da nação".
Para ele, a perseverança de Lula na trilha desenhada nos primeiros cem dias de mandato -e criticada por integrantes "radicais" do partido- não traz nenhum risco de crise maior para o PT.
Sobre uma possível autonomia para o Banco Central -ponto de discórdia entre um terço da bancada petista na Câmara e o governo-, Wanderley afirma ser possível conciliar um BC autônomo, não partidarizado, porém menos independente do que aquele que o país teve durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Leia a seguir trechos da entrevista, realizada por telefone.
 
Folha - O sr. já disse que a vitória de Lula indicava uma mudança estrutural no comportamento do eleitorado. Poderia explicar?
Wanderley Guilherme dos Santos -
O presidente Lula sempre teve dificuldade para conseguir apoio substancial em dois setores de renda e sociais nas diversas vezes em que foi anteriormente candidato. Uma delas é uma parte da classe média que dispõe de renda, prestígio e posição na sociedade, nas suas ocupações, às quais são associadas status, prestígio. E por outro lado, lá no último degrau da escala social, no grupo de renda mais baixa da população.
Em todas as eleições anteriores, era nesses segmentos sobretudo que o então candidato Lula conseguia as mais significativas derrotas. Quanto maior a educação e a renda, ao longo da estratificação social, melhorava o seu desempenho. Nessa eleição, o dado indiscutível é que o presidente Lula ganhou em todos os segmentos, se não me falha a memória de algum segmentozinho no mais elevado zero-vírgula-zero-um por cento, no pico da escala social. Alguma coisa aconteceu para que essa mudança ocorresse. Não foi uma oscilação marginal.
Acredito que isso não foi apenas uma reação de circunstância. Os últimos 15 anos, pelo padrão de não-crescimento, de não-expansão de oportunidades no Brasil, acredito que provocaram impactos significativos na estrutura do eleitorado brasileiro. Tendo em vista a perda de renda e de prestígio de segmentos importantes dessa classe média. Também o desemprego que afetou não apenas a população de baixa renda e os trabalhadores não qualificados, mas também os trabalhadores qualificados.
Esse processo certamente alterou a avaliação do momento presente desse segmento, tendo em vista as expectativas de futuro que passaram a ter. O que se colocava para eles era a continuação do que vinha ocorrendo ou uma mudança. Há cinco anos, ainda apostaram que a continuação lhes traria, a curto prazo, uma melhora. Não foi o que aconteceu dessa vez.

Folha - O que o governo fez nos últimos cem dias é de qualquer forma uma manutenção da situação anterior. Essa mudança do eleitorado pode obrigar em algum momento, de alguma maneira, a que não se insista nessa manutenção?
Wanderley -
De alguma maneira e em algum momento é um tanto vago, não é? O que nós vemos pelas pesquisas, até recentíssimas, é que esse eleitorado, a opinião pública brasileira na sua totalidade, e portanto inclusive o centro, não tinha a expectativa de mudanças muito significativas imediatamente. Votaram por mudanças, mas num certo horizonte de tempo dilatado. Nem no primeiro nem no segundo mês. É isso que as pesquisas têm revelado.
A população continua desejando mudanças, acreditando que haverá mudanças, mas também acreditando que o tempo tem sido curto para que elas aparecessem. A atitude majoritária do eleitorado permanece hoje como estava durante a eleição. Estão dispostos a apostar e a esperar. É claro que ao longo do tempo esse esperar vai sendo consumido pela própria espera. Em algum momento, se nada se alterar, o humor desse centro político enorme que deu apoio político ao Lula tenderá a se modificar.

Folha - Dadas as indicações feitas até agora, o sr. acredita que o governo aponta para uma possibilidade de mudança ou a transição prometida pode se tornar eterna?
Wanderley -
Parece-me que uma análise realista não poderia esperar nenhuma modificação significativa logo no início, pela inexistência de graus de liberdade nas decisões de governo. Não importa quem esteja no governo, se tenha vontade. O grau de liberdade é muito pequeno. Não só pelo orçamento já vinculado. Há uma estrutura fiscal que lhe dá uma certa receita que não tem como ser alterada, de muito, imediatamente. No curtíssimo prazo, realisticamente não haveria como esperar um perfil de ação governamental muito diferente.
Creio que mais daqui um pouquinho, mesmo antes de ações muito características de uma mudança de perspectiva, a agenda de preferências do governo atual vai se revelar mais pelos cortes que ele venha a fazer. Mais pelo Orçamento que foi realizado de fato que pelo Orçamento que foi votado porque não tinha outro jeito.
A pista mais rica é aguardar a execução do Orçamento nesse ano. O que vai ser feito vai ser muito pouco diferente do que já vinha acontecendo. O que não vai ser feito vai indicar muito mais qual a orientação do governo.

Folha - Além da questão fiscal, a atenção dada às expectativas dos investidores não pode comprometer a ação como um todo do governo?
Wanderley -
Poder, pode. Isso é de certo modo um cabo de guerra. Se vai ocorrer? Não sei.

Folha - Recentemente o presidente da Pastoral da Terra, d. Tomás Balduíno, disse que o governo talvez não "confronte o latifúndio" para não tocar em algo que é dogma para os investidores, que é a propriedade privada. A gestão das ansiedades do mercado não pode interferir em toda a ação de governo?
Wanderley -
De novo: não acredito que exista nenhum modelo que possa afirmar uma coisa ou outra de maneira taxativa. O máximo que posso dizer é que poder, pode. Agora, se vai ocorrer necessariamente, não sei.

Folha - E quanto à crítica de que, dada a escassez de recursos, o governo parece às vezes trabalhar pelo aprofundamento do que causou essa escassez, dando autonomia ao Banco Central, por exemplo? O sr. concorda com isso?
Wanderley -
Não. Em primeiro lugar porque há diversas maneiras de um Banco Central ser autônomo. Diversos países com políticas progressistas, com sistemas previdenciários de proteção social bastante desenvolvidos, têm Banco Central autônomo. Depende do que for autonomia. O que me parece interessante, inclusive, é que se tire coloração partidária da posição do Banco Central. Sem fugir à possibilidade da orientação de política macroeconômica do governo. Aquém disso há uma gama muito grande de opções. Aquela que permitisse a esse instrumento não ser partidariamente identificado, me parece a melhor possível para todo mundo.

Folha - Esse tipo de autonomia seria melhor do que é hoje? Hoje é partidarizado?
Wanderley -
Hoje é partidarizado pelas razões equivocadas. Há oito anos que o Banco Central é inteiramente independente. Só houve um momento em que houve interferência do governo de Fernando Henrique: quando da demissão do Francisco Lopes, quando houve aquela mudança cambial muito grande [em janeiro de 1999".
Até então e depois, não houve nenhuma interferência do governo. O Banco Central foi absolutamente independente, fez o que bem entendeu. Não obstante todo mundo atribuía isso à orientação do governo. A orientação do governo... Que aliás disse isso algumas vezes: "Não me meto em Banco Central". Ele disse isso. Meteu-se menos do que devia.

Folha - O sr. acha que podíamos passar a ter um certo tipo de autonomia para o BC e que ao mesmo tempo ele fosse menos independente do que foi no governo FHC?
Wanderley -
Perfeitamente. E muito mais coerente com o resto do governo.

Folha - Na votação da emenda sobre o sistema financeiro, que pode abrir caminho para a autonomia, deputados do PT assinaram declaração de voto contrária a ela. Que consequências pode ter para o PT o governo persistir na linha que assumiu nos primeiros cem dias?
Wanderley -
A consequência é haver muito mais debate. Muito mais tensão e discussão interna. Em princípio não me parece nada demais. Essas coisas fazem parte da política democrática. É normal que tenha gente dentro do PT que seja contra isso ou aquilo. Até bandeiras. Porque na verdade não se propôs ainda nada específico. "Contra a autonomia" -não esta ou aquela. Têm direito. As consequências... Vai ter que discutir mais. O que é bom para todo mundo, mesmo para quem não faz parte de um grupo ou de outro. Para mim é muito bom que discuta. Porque quero me informar melhor.

Folha - O sr. não vê risco de crise? De ruptura?
Wanderley -
Absolutamente. De repente saem quatro ou cinco do partido, isso não é crise. O PT, como o PFL e outros, são partidos estruturados e enraizados na vida política nacional. Não é porque cinco deputados saem do partido, ou são retirados dele, que vai haver uma crise.
Num momento em que o PT era muito mais débil, que foi na votação de Tancredo Neves, perdeu três grandes deputados. Foram expulsos. Uma medida violenta, o partido expulsou três deputados que votaram por Tancredo. E o PT estava se formando, era chamado de totalitário, de leninista, e dava uma demonstração de que parecia que era mesmo. Não houve crise nenhuma, continuou crescendo e hoje é o partido principal do parlamento.

Folha - Que avaliação o sr. faz da atuação política do governo? João Paulo Cunha (PT-SP) chegou a dizer que o governo batia cabeça. O sr. vê dificuldades?
Wanderley -
Vejo dificuldades. Não só porque é novo no governo, em termos de tomar posse da máquina governamental, mas porque governar o Brasil é muito complexo.
Além disso, como se trata de um governo em relação ao qual a expectativa é de mudança, está havendo uma acomodação não só do PT. Está havendo uma acomodação no parlamento em correntes que estão se rearrumando.
O governo bater cabeça, como disse o presidente da Câmara, ele tem toda razão, mas o parlamento também. O governo, o parlamento, nós aqui do lado de fora, ninguém sabe muito bem o que pensar. Está todo mundo batendo cabeça. Dentro das regras, do jogo, evidente que com um pouco de ansiedade, porque ninguém sabe direito como vai ser o futuro. Mas não há jeito, o Brasil é difícil.

Folha - Do jeito que as coisas vão, não pode haver um refluxo do eleitorado que o PT conquistou?
Wanderley -
Até agora não houve. É o que as pesquisas estão mostrando. Então eu acredito que os críticos mais atuantes, mais rigorosos do governo, não estão sintonizados com a maioria da população. Se a maioria da população chegará ao ponto em que estão esses críticos mais rigorosos ou se continuará a apoiar o governo é alguma coisa que o futuro vai dizer. Neste momento, eles não interpretam o sentimento majoritário da nação.
Não quer dizer que estão errados. Podem até estar certos. Mas não interpretam [os eleitores". Tomar uma coisa pela outra é um equívoco. Eles representam muito pouca gente. Pode ser que venham a conquistar muita gente. Nesse momento não.



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