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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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TÚNEL DO TEMPO

Ministro viveu com identidade falsa no Paraná de 1975 a 1979, casou e teve filho

A volta de Pedro Caroço

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A CRUZEIRO DO OESTE

Desde quinta, o pintor Valmir Lourenço dos Santos vem cumprindo jornada dupla. Sua função é caiar todas as guias das ruas principais de Cruzeiro do Oeste, lugarejo de 20 mil habitantes localizado a 550 km de Curitiba e na órbita de influência de Umuarama, no noroeste paranaense.
É que hoje, às 9h, passa pelo arco de tijolos aparentes da entrada principal o ex-morador mais ilustre da cidade: "Pedro Caroço", apelido do economista Carlos Henrique Gouveia de Melo.
Além do prefeito e das lideranças locais, devem recepcioná-lo em almoço na Igreja da Matriz o governador Roberto Requião, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, o apresentador de TV Carlos Roberto Massa, o Ratinho, mas também vão dar um jeito de entrar no grande salão de honra "Halley Paz" os amigos mais antigos, gente como o Hortelino, o Mangueira e o Kiko.
Gouveia de Melo, 57 anos, filho de judeus do interior de São Paulo, chegou a Cruzeiro do Oeste em 1975, no auge da repressão do regime militar. Nos quatro anos seguintes, ganharia a confiança dos locais, faria amigos, iria morar com a dona de uma confecção de roupas -o que lhe valeria o apelido tirado da música de Genival Lacerda, do personagem que andava "de olho na butique dela"-, os dois teriam um filho, e ele abriria uma loja de sucesso.
No dia 28 de agosto de 1979, foi sancionada a Lei da Anistia. No dia 29 de agosto de 1979, Carlos Henrique Gouveia de Melo chamou sua mulher, Clara Becker, que cuidava do filho recém-nascido de ambos numa casinha de madeira que os dois dividiam.
Segurava nas mãos um jornal, que trazia uma foto antiga, dos militantes de esquerda trocados pelo embaixador americano sequestrado Charles Elbrick em 1969, entre eles alguns dos principais beneficiados pela anistia. Apontou para um jovem magro e bigodudo e falou: "Está vendo esse aí? Esse aí sou eu".
Era José Dirceu, hoje o ministro-chefe da Casa Civil de Luiz Inácio Lula da Silva e o segundo homem mais poderoso do governo. É a primeira vez desde que tomou posse que ele visita a cidade onde viveu clandestinamente. No ano passado, havia vindo à região fazer campanha para o filho, José Carlos Becker de Oliveira e Silva, o Zeca do PT, 25 anos, que concorria a deputado federal pelo Paraná -com 16.497 votos, ficou em 66º lugar e não foi eleito.
"Foi um susto para todo o mundo quando "Carlos" contou quem ele era", disse Clara, que ainda hoje se recusa a chamar José Dirceu pelo nome de batismo. Nos dias seguintes, ele deixaria a mulher e o filho, voltaria a Cuba, onde faria uma segunda plástica, e desceria no aeroporto de Viracopos junto de outros anistiados, como se não tivesse voltado para o Brasil desde 1969. "Fiquei alguns dias sem saber dele e tive de acompanhar tudo pela TV."
Dirceu havia se exilado em Cuba em 1969, ali se submetera a uma operação plástica que lhe deixou o nariz adunco e os olhos puxados e voltou ao país em 1975, com outra identidade. Quando chegou a Cruzeiro do Oeste, dizia ter vindo do interior de São Paulo, onde brigara com a família.
Hospedou-se no Hotel São José -hoje, uma loja de cosméticos- e logo ficou amigo do dono do lugar, Edson Rodrigues Alves, 50. "Morou aqui seis meses e me chamou a atenção por ser calado, pensativo e por ler demais", diz; "Carlos" era o único na cidade a assinar jornais de São Paulo.
Virou frequentador do Salão Estrela."Quando começávamos a discutir política, pedia licença e saía", diz Adonias Sodré, 53, piloto da cadeira preferida de Dirceu.
Um dia, viu pelo vão da porta uma loira bonita trabalhando numa confecção. Perguntou para o alfaiate vizinho quem era aquela polaca e ficou esperando no bar em frente. Clara, então com 31 anos, já estava interessada. "Era bonitão, logo veio puxar papo e em alguns dias a gente juntou."
Enquanto faz contas em sua confecção, que hoje emprega 15 pessoas, ela ainda se emociona quando fala de seu grande amor -"Carlos", não José Dirceu. Lembra que ensinou o negócio da costura e que ele logo abriu a própria loja, a Magazine do Homem.
Que a companheirada não leia isso, mas Dirceu foi o responsável pela disseminação de um hábito pequeno-burguês na cidade ao importar pela primeira vez de São Paulo calças jeans de griffes como Levis, Lee, Ellus, Staroup e Gledson. "O "Carlos" que trouxe a roupa de marca para Cruzeiro do Oeste", lembra Clara. Justiça seja feita, porém: ao mesmo tempo ele também criou e lançou a linha Bang, de roupas populares.
Os negócios deram certo. "Ele era bom administrador e muito organizado", diz Wilson Bellini, o autor do apelido de "Pedro Caroço", que começou como alfaiate de Dirceu e logo virou seu sócio.
Dirceu se informava das movimentações da clandestinidade pelo advogado Ivo Sooma, que aos 67 anos continua com seu escritório na mesma Umuarama em que recebeu o economista Carlos pela primeira vez, em 1975. "Eu também não sabia quem era, só sabia que tinha de escondê-lo logo."
Ficaram amigos desde então, e o advogado é um dos que confirmou presença no almoço de hoje. Outra presença garantida é da própria Clara. "Se vou? Claro!" E ela não tem receio de encontrar com a atual mulher de Dirceu? "Ah, meu filho, aqui elas não vêm. Em Cruzeiro do Oeste quem manda ainda sou eu."


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