São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 2002

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CANDIDATOS NA FOLHA/ CIRO

Ciro afronta mercado, ataca Lula e critica FHC

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Platéia assiste ao presidenciável da Frente Trabalhista, Ciro Gomes, ser sabatinado em evento no Teatro Folha, no shopping Pátio Higienópolis



Agressivo, presidenciável do PPS afirma que grande mídia é "governista" e diz que candidato que mentir à sociedade pode se eleger, mas sai "muito cedo pelos fundos"


DA REPORTAGEM LOCAL

Valendo-se de uma retórica quase sempre incisiva e por vezes agressiva, usada sobretudo para pôr em evidência divergências com o governo Fernando Henrique Cardoso e críticas ao comportamento da grande mídia, que caracterizou como "governista", o presidenciável da Frente Trabalhista (PPS-PTB-PDT), Ciro Gomes, 44, protagonizou ontem, na série "Candidatos na Folha", uma espécie de contraponto à participação de anteontem do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, marcada pelo tom conciliador de suas intervenções.
Ciro fez, repetidas vezes, questão de se diferenciar tanto do atual governo como da candidatura do PT. "Há uma certa cobrança à qual o Lula se rendeu e eu não me rendo. Não estou disposto a vender a alma para ser presidente do Brasil. Acho que quem mentir para a sociedade brasileira está condenado. Até pode se eleger, mas está condenado a sair pela porta dos fundos muito cedo do palácio, como experimentou o [Fernando] de La Rúa [ex-presidente da Argentina"", disse. Em outro momento, foi ainda mais enfático: "Você serra meu braço e eles não vão me domesticar", disse, desafiando os mercados.
O encontro, realizado no Teatro Folha, em Higienópolis, zona central de São Paulo, durou uma hora e 52 minutos. Ciro foi questionado pela editora-executiva da Folha, Eleonora de Lucena, por Carlos Eduardo Lins da Silva, diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico", por Clóvis Rossi e Gilberto Dimenstein, colunistas e membros do Conselho Editorial da Folha, além de leitores do jornal, que lotaram as 312 cadeiras do teatro. Houve várias manifestações da platéia favoráveis ao candidato e outras, em menor número, contrárias, que Ciro chamou de "deboche". A atriz Patrícia Pillar, namorada do presidenciável, não estava presente.
Ciro rejeitou a sugestão de que seria um dos responsáveis pela atual crise no mercado financeiro e defendeu a ida do país ao FMI como única fonte de dólar acessível hoje, "dado o descalabro" das contas brasileiras. Instado por um leitor, comprometeu-se a não realizar confisco ou bloqueios bancários.
O candidato afirmou ainda que o ex-presidente Fernando Collor, a quem chamou de "galhofeiro", só o apóia "unilateralmente" como "vingança". Leia a seguir os principais trechos do evento, que prossegue amanhã, com Anthony Garotinho (PSB).

Como previamente combinado, a participação de Ciro Gomes foi aberta por uma exposição de dez minutos do candidato. Ele apontou o que chamou de "contradições" do país: "Trinta e três milhões de pessoas passando fome, 50 milhões de pobres, ao lado de 90 milhões de terras férteis desocupadas, um quinto da água potável do planeta, auto-suficiência em petróleo, enfim, uma contradição que só se explica, na minha opinião, pelo fato de que o nosso modelo de desenvolvimento está errado, nossas instituições de participação política estão erradas, a forma de inserir o Brasil no mundo está errada", afirmou o candidato do PPS.
Como fruto desses erros, o presidenciável apontou: "O Brasil está com a menor taxa de crescimento dos últimos 50 anos; estamos com o maior volume de desempregados, passa de 11 milhões a quantidade de desempregados no país; a massa salarial encolheu nos últimos anos mais de 20%".
"Há um punhado de coisas que põe, a meu juízo, a sociedade brasileira na oposição. Porém a sociedade brasileira, me parece, não confia que a oposição possa se bastar apenas em falar mal das coisas. Não faltam argumentos, não faltam razões, não faltam evidências para que a gente aponte as injustiças, os mal feitos, até porque, por cima de todos esses números, há uma inconseqüência dramática marcada pela promessa mistificadora, pela demagogia, pela simplificação de problemas que são complexos, quando não pela corrupção premiada pela impunidade".

APOIO DE ACM
Afirmou que "salvadores da pátria" não existem e fez a primeira de uma série de críticas à Folha e à imprensa. "Lança-se muitas vezes contra mim a suspeição disso. A Folha então é campeã em fazer isso sem sustentação prática".
Em seu primeiro questionamento, o jornalista Clóvis Rossi lembrou frase de Ciro de 1999, em que ele afirmava que "tudo o que não presta na história republicana tem o ACM" e perguntou se a declaração ainda estava valendo.
"Não vale. Isso foi num momento de enfrentamento. A reconciliação é um valor positivo. Acho que essa reconciliação se dá ao redor de interesses superiores, de interesses nacionais."
A editora-executiva Eleonora de Lucena lembrou que o primeiro mandato de Ciro foi pelo PDS, em 1982, então um partido de sustentação do regime militar, e perguntou se ele era o candidato da direita hoje. "Meu projeto é de centro-esquerda e minha trajetória é de centro-esquerda. Reconheço uma certa direita nacional, aquela que está vinculada à nossa economia rural, à nossa base produtiva nacional, o pequeno e o médio empresários, que têm uma tendência conservadora no espectro ideológico, mas que nesse modelo neoliberal levou a uma ruptura que os predispõe a um caminho progressista", respondeu.

CRÍTICA À IMPRENSA
Ciro afirmou que muitos dos conservadores que o apóiam hoje eram aliados do presidente Fernando Henrique Cardoso e que eram respeitados pela "média da grande imprensa brasileira, sempre muito sensível ao argumento da propaganda oficial". Disse haver um "desequilíbrio absoluto de setores amplos da grande imprensa brasileira em favor da agenda oficial e do governo". "Há um complô [da imprensa] em favor do governo, isso é claro."
Ao comentar uma referência de Ciro ao processo de transição no Chile, que na afirmação dele juntou partidários e opositores do general Augusto Pinochet, Eleonora de Lucena perguntou se o candidato estava identificando ACM com os seguidores do ditador chileno.
"Não estou fazendo isso. Por favor, essa é uma intriga bem ao modo Folha de S.Paulo. O que eu estou dizendo, para sustentar uma tese, é que reconciliação é um valor bom, não é um valor negativo. A capacidade de somar forças diferentes para construir um projeto claro que tem o objetivo de devolver ao país instituições que permitam crescer, recuperar a soberania nacional, enfrentar a distribuição de renda perversa e o fato do país estar de joelhos diante da agiotagem nacional, mais do que justifica, pede uma ampla capacidade de somar forças", disse.
A jornalista questionou se o apoio do PFL à candidatura dele poderia significar a hegemonia do partido em uma eventual administração sua.
"Eu tenho parte do PFL. A outra parte do PFL apóia o candidato do governo. Mas o PFL não foi hegemônico neste governo. Toda a política econômica passou longe de qualquer influência do PFL. Todas as agências de financiamento, o centro do poder do Brasil, passaram longe do PFL. Isso foi uma coisa preservada pessoalmente para o grupo do atual presidente da República", declarou.

HEGEMONIA
Ciro, lembrou que citava o termo hegemonia como concebido por [Antonio] Gramsci (1891-1937), sociólogo italiano que fez a revisão de parte das teorias marxistas, e que, se vencer, o hegemônico, aquele que predomina entre partes contraditórias, será ele.
O apoio de ACM a Ciro levou a nova desavença, desta vez com o colunista Gilberto Dimenstein, que afirmou que a saída do ex-senador baiano do governo, deveu-se a uma "briguinha" com Jader Barbalho. "Briguinha chama você. Foi um enfrentamento de forte conteúdo republicano."
Quando Eleonora de Lucena voltou a inquiri-lo sobre o apoio de ACM, Ciro irritou-se: "Vamos passar este tempo inteiro discutindo essa mesma mesquinharia?". Foi aplaudido.

COLLOR
Ciro afirmou que o ex-presidente Fernando Collor é um "galhofeiro". "O Collor me apóia unilateralmente como ato de vingança." O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva pediu que Ciro comparasse seu temperamento e atitudes com as de Collor. "Não sei quanto o preconceito vai se espalhar pelo fato de eu ter o estereótipo de jovem e nordestino. O resto é diferente", disse Ciro.

CIRO E O FMI
Eleonora de Lucena citou frase do candidato de 98, em que ele definiu acordo com o FMI como "o beijo da morte". Pediu sua posição sobre o novo acordo e sobre a reunião com os candidatos convocada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
"É um dever de educação política qualquer brasileiro chamado pelo presidente da República comparecer na hora em que ele quiser. Peço apenas que seja no horário do expediente e sem reserva. Acho que o acordo com o FMI não é uma coisa a ser comemorada como alguns setores de elite tentaram fazer. Dado o descalabro e o rombo que produziram, o desastre seria muito maior e não havia realmente alternativa senão achar dólares onde estivessem. E o único lugar onde havia dólares era no FMI."
Lins da Silva disse que a medida não reduziu o temor do mercado, assustado com as propostas de alongamento da dívida. "Está ficando engraçado se não fosse trágico. Há uma certa cobrança à qual o Lula se rendeu e eu não me rendo. Não estou disposto a vender a alma para ser presidente. Quem mentir para a sociedade brasileira está condenado. Até pode se eleger, mas está condenado a sair pela porta dos fundos do palácio, como o De La Rúa."

DÍVIDA E CALOTE
Então, Ciro explicou sua proposta de mudança de perfil da dívida. "O Brasil tem US$ 750 bilhões [de dívida] em números redondos, cujo termo médio de vencimento, ou termo final de vencimento, é de 30 meses. Claramente o fluxo fiscal brasileiro hoje não suporta o perfil, e apenas o perfil, de vencimento da dívida interna. Portanto precedida a aprovação de três passos estruturais, a dívida tem de ser alongada, negociadamente, sem unilateralidade, sem quebra de contrato, nem pensar em calote", afirmou.
Na visão dele, os passos estruturais que devem preceder essa negociação são: "Reforma tributária para desonerar a cadeia produtiva e deslocar o peso do financiamento sadio do Estado para o consumo das classes altas e para a apropriação de grande capital e propriedades. Fundar todas as condições delicadas, complexas, mas profundamente necessárias, para tornar a previdência social um regime público de capitalização. Terceiro passo estratégico: eliminar o mais breve possível, fazendo-se tudo o que tem que ser feito, o déficit externo".
Só assim, na visão de Ciro, poderia ser iniciada a discussão da mudança de perfil da dívida. "Essas três providências permitiriam a redução das taxas de juros e aí o Brasil começa um círculo virtuoso de expansão da atividade econômica. Com isso, se dão as condições para um alongamento negociado, não compulsório, sem quebra de contrato, sem unilateralidade dos prazos da dívida."

RISCO BRASIL
Lins da Silva retrucou por que não se acredita nisso, já que o risco Brasil continua subindo. "Essa é uma isca para os incautos que o Lula engoliu de inexperiente que é", criticou Ciro.
Dimenstein questionou se, em resposta ao mercado, ele poderia manter Armínio Fraga no Banco Central. "Não tenho compromisso de cargo com ninguém, pode serrar meu braço. Não há quem arranque um compromisso de cargo meu. Nem com aliado, nem com adversário."
Lins da Silva afirmou que, por mais que o candidato se diga preparado para gerenciar a crise, o dólar continua subindo. "Você aceita a premissa da propaganda oficial que tenta empurrar para a oposição que criticava o modelo a culpa do desmonte do modelo. Vou tentar explicar por que o dólar está subindo e eu acho que depois do dia 15 [amanhã] vai cair. Há uma oferta de dólar muito contraída e uma demanda monstruosa de dólar. O preço do dólar nessa circunstância sobe, não tem erro. Não adianta candidato falar, fazer carta aos banqueiros, tentar dizer que tem compromisso com a estabilidade. Dia 15 agora há um vencimento de uns US$ 2,5 bilhões em títulos cambiais", afirmou, acusando de manobra especulatória os "carregadores de títulos cambiais".
Ciro voltou em seguida a dizer que podem "serrar o seu braço": "Não quero ser presidente do Brasil domesticado pelo mercado."

CIRO E OS BANCOS
Eleonora perguntou se, num governo Ciro, os bancos vão perder. "Um setor está recolhendo nessa mesma conjuntura de crise os maiores lucros da história do sistema financeiro mundial desde que os fenícios inventaram as taxas de juros", insinuou Ciro.
O presidenciável disse que os bancos estão auferindo lucro em cima dos títulos do governo e disse que é a mesma coisa de "estarem colocando a cesta dos ovos de ouro em cima de um homem alquebrado". Eleonora perguntou se, na visão dele, o Brasil vai quebrar. "Você é que está dizendo", respondeu. A editora-executiva retrucou que só perguntava. "Estou propondo mudar. Se mudar, não quebra."

CONFISCO
Uma leitora pediu o compromisso de Ciro de que não mexeria na "poupança do povo" nem fazer alguma forma de confisco. "Eu não vou mexer na poupança do povo, não vou fazer confisco na poupança de ninguém. Deixa eu acrescentar para a sua inteligência, quem faz não anuncia. É só lembrar o que o Collor fez com o Lula no debate de 89."

DROGAS
A leitora Daniela Franco perguntou se Ciro já havia usado drogas. "Fumo cigarro, bebo esporadicamente. No passado, até já bebi cachaça demais da conta, mas passei da idade."

PRIMEIRA-DAMA
Lins da Silva perguntou se Patrícia Pillar terá algum cargo na área de cultura: "Não tenho compromisso de cargo com ninguém", disse rindo. "A minha mulher é uma pessoa muito politizada. Vai ter a possibilidade de ter uma forte influência naturalmente."



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