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JANIO DE FREITAS
Da porta para dentro
Nem o aniversário do ataque
a Nova York e os 30 anos do
golpe contra Allende puderam retirar ao novo presidente argentino, Néstor Kirchner, o mérito do
fato político e social mais significativo da comovida quinta-feira,
11 de setembro, e mais do isso: dos
últimos tempos nos países ditos
"em desenvolvimento". Kirchner
levou a Argentina a impor-se ao
FMI, em vitória sem precedente
no mais de meio século de ação
do Fundo na América Latina.
Estranha foi a reação no Brasil.
Da parte do governo, silêncio, enquanto vários presidentes manifestavam apoio à Argentina, contra as exigências brutais que o
FMI lhe fazia, para formalização
de um acordo/refinanciamento.
Com um comentário bem-humorado mas eloquente ("Parece que
lá algumas pessoas ficaram gripadas por algumas horas"), Kirchner avalizou o noticiário argentino de que também em sentido inverso, dele para Luiz Inácio Lula
da Silva, a comunicação foi impossível, o procurado não era encontrado.
Na tv e nos jornais brasileiros o
noticiário foi todo transformado
em opinião condenatória à Argentina, na unânime denominação de calote dada à sustação do
pagamento de US$ 2,9 bilhões ao
FMI até que fosse feito o novo
acordo. O pagamento se deu menos de 24 depois do vencimento,
mas as referências a "calote de
Kirchner" continuam. Atitude
com dois efeitos: proporciona protetora cobertura ao governo Lula
e sua política econômica afinada
com o FMI, mas, também, implica uma distorção que leva a deduções descabidamente hostis à
Argentina e seu governo. A ocorrência de unanimidades espontâneas não exclui as unanimidades
induzidas, ainda que de modo indireto.
A sequência dos fatos é, porém,
reta e clara, caso incomum em
que não há guinadas, subterfúgios, nem falta de coerência e determinação. Há muito tempo o
FMI mantém atitude de incompreensão deliberada para com o
problema argentino, em sua
maior parte produzido pelo próprio Fundo. Até a onipresente Míriam Leitão, porta-bandeira dos
Encantados com Lula, reconhece
que o tratamento dado ao novo
governo brasileiro pelo FMI o tem
beneficiado e, ao da Argentina, é
de exigências duras. A expressão
melhor seria "ainda de exigências
perversas".
Uma das premissas mais fortes
da campanha eleitoral de Néstor
Kirchner foi em relação ao FMI:
se eleito, não haveria acordo que
aumentasse e nem mesmo que
mantivesse os padecimentos do
povo argentino, cuja recuperação
teria prioridade absoluta. Eleito,
Kirchner reafirmou a determinação de só aceitar negociações que,
permitindo ao país cumprir os
compromissos externos, não prejudicassem as soluções internas. E
chancelou suas promessas com
uma frase pouco antes de empossar-se: "Não vou deixar os meus
princípios na porta do palácio".
As exigências do FMI para o novo acordo foram tão absurdas, e
tão estrangulantes internamente
para a Argentina, que até o governo Bush correu para pressionar por seu abrandamento,
quando Kirchner, na quarta-feira, cumpriu sua repetida advertência de que não quitaria a parcela de dívida com o Fundo, e não
o faria até os termos do acordo se
tornarem suportáveis. A inesperada iniciativa dos Estados Unidos explicou-se com uma razão
lógica: se prolongada, a atitude
de Kirchner tenderia a servir de
exemplo para outros países,
quando o exemplo, aos olhos do
governo e dos investidores americanos, deve ser o do governo Lula.
Vitoriosa a Argentina, dizem as
notícias que o governo brasileiro,
por intermédio do ministro Antonio Palocci, "manifestou solidariedade" ao governo argentino. Já
dissera que, durante o impasse,
Palocci manteve contato frequente com seu congênere argentino,
Roberto Lavagna, ao qual foi
atribuída discordância com determinação mostrada por Kirchner. Mais tarde devem aparecer,
na Argentina, confirmações dos
telefonemas de Palocci, mas para
estimular a aceitação do acordo
nas condições pretendidas pelo
FMI. Sob o argumento de que a
insubmissão prejudicaria o Mercosul, como se a Argentina mantida em desgraça o favorecesse.
O propósito buscado pelo governo dos Estados Unidos, com sua
intervenção positiva, chegou a resultado bastante duvidoso. Os fatos autorizam a suposição de que
Néstor Kirchner deu o passo inicial para uma etapa diferente nas
relações entre FMI e países latino-americanos. O Fundo e o governo
brasileiro começaram, imediatamente, a busca de afirmações públicas que mudam, em benefício
de suas imagens, o que vinham
dizendo sobre seu próximo acordo.
Kirchner fez o que cabe a quem
veio para mudar. E, com isso, fazer a diferença entre os que levem
seus princípios e compromissos
para dentro dos palácios e os que,
conformes à tradição latino-americana, usem os seus da boca para
fora.
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