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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Da porta para dentro

Nem o aniversário do ataque a Nova York e os 30 anos do golpe contra Allende puderam retirar ao novo presidente argentino, Néstor Kirchner, o mérito do fato político e social mais significativo da comovida quinta-feira, 11 de setembro, e mais do isso: dos últimos tempos nos países ditos "em desenvolvimento". Kirchner levou a Argentina a impor-se ao FMI, em vitória sem precedente no mais de meio século de ação do Fundo na América Latina.
Estranha foi a reação no Brasil. Da parte do governo, silêncio, enquanto vários presidentes manifestavam apoio à Argentina, contra as exigências brutais que o FMI lhe fazia, para formalização de um acordo/refinanciamento. Com um comentário bem-humorado mas eloquente ("Parece que lá algumas pessoas ficaram gripadas por algumas horas"), Kirchner avalizou o noticiário argentino de que também em sentido inverso, dele para Luiz Inácio Lula da Silva, a comunicação foi impossível, o procurado não era encontrado.
Na tv e nos jornais brasileiros o noticiário foi todo transformado em opinião condenatória à Argentina, na unânime denominação de calote dada à sustação do pagamento de US$ 2,9 bilhões ao FMI até que fosse feito o novo acordo. O pagamento se deu menos de 24 depois do vencimento, mas as referências a "calote de Kirchner" continuam. Atitude com dois efeitos: proporciona protetora cobertura ao governo Lula e sua política econômica afinada com o FMI, mas, também, implica uma distorção que leva a deduções descabidamente hostis à Argentina e seu governo. A ocorrência de unanimidades espontâneas não exclui as unanimidades induzidas, ainda que de modo indireto.
A sequência dos fatos é, porém, reta e clara, caso incomum em que não há guinadas, subterfúgios, nem falta de coerência e determinação. Há muito tempo o FMI mantém atitude de incompreensão deliberada para com o problema argentino, em sua maior parte produzido pelo próprio Fundo. Até a onipresente Míriam Leitão, porta-bandeira dos Encantados com Lula, reconhece que o tratamento dado ao novo governo brasileiro pelo FMI o tem beneficiado e, ao da Argentina, é de exigências duras. A expressão melhor seria "ainda de exigências perversas".
Uma das premissas mais fortes da campanha eleitoral de Néstor Kirchner foi em relação ao FMI: se eleito, não haveria acordo que aumentasse e nem mesmo que mantivesse os padecimentos do povo argentino, cuja recuperação teria prioridade absoluta. Eleito, Kirchner reafirmou a determinação de só aceitar negociações que, permitindo ao país cumprir os compromissos externos, não prejudicassem as soluções internas. E chancelou suas promessas com uma frase pouco antes de empossar-se: "Não vou deixar os meus princípios na porta do palácio".
As exigências do FMI para o novo acordo foram tão absurdas, e tão estrangulantes internamente para a Argentina, que até o governo Bush correu para pressionar por seu abrandamento, quando Kirchner, na quarta-feira, cumpriu sua repetida advertência de que não quitaria a parcela de dívida com o Fundo, e não o faria até os termos do acordo se tornarem suportáveis. A inesperada iniciativa dos Estados Unidos explicou-se com uma razão lógica: se prolongada, a atitude de Kirchner tenderia a servir de exemplo para outros países, quando o exemplo, aos olhos do governo e dos investidores americanos, deve ser o do governo Lula.
Vitoriosa a Argentina, dizem as notícias que o governo brasileiro, por intermédio do ministro Antonio Palocci, "manifestou solidariedade" ao governo argentino. Já dissera que, durante o impasse, Palocci manteve contato frequente com seu congênere argentino, Roberto Lavagna, ao qual foi atribuída discordância com determinação mostrada por Kirchner. Mais tarde devem aparecer, na Argentina, confirmações dos telefonemas de Palocci, mas para estimular a aceitação do acordo nas condições pretendidas pelo FMI. Sob o argumento de que a insubmissão prejudicaria o Mercosul, como se a Argentina mantida em desgraça o favorecesse.
O propósito buscado pelo governo dos Estados Unidos, com sua intervenção positiva, chegou a resultado bastante duvidoso. Os fatos autorizam a suposição de que Néstor Kirchner deu o passo inicial para uma etapa diferente nas relações entre FMI e países latino-americanos. O Fundo e o governo brasileiro começaram, imediatamente, a busca de afirmações públicas que mudam, em benefício de suas imagens, o que vinham dizendo sobre seu próximo acordo.
Kirchner fez o que cabe a quem veio para mudar. E, com isso, fazer a diferença entre os que levem seus princípios e compromissos para dentro dos palácios e os que, conformes à tradição latino-americana, usem os seus da boca para fora.



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