São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 1998

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A Maraculight acabou em Maracutreva

O colapso de verão da Light deveria levar os responsáveis pela privatização dos serviços públicos brasileiros a refletir sobre o que fizeram, o que estão fazendo e o que pretendem fazer com a patuléia.
Eles sabem como a empresa foi vendida. Conhecem as cláusulas contratuais que engoliram. Sabem que a maraculight nada teve a ver com aquilo que se denomina privatização de empresa de serviços públicos.
Quando a baronesa Thatcher resolveu privatizar as companhias elétricas inglesas, sua primeira providência foi colocar os jovens talentos do partido conservador na administração das estatais. Eles viram como os bichos funcionavam e estudaram a melhor maneira de matá-los. Produziram cartapácios de regulamentos e venderam as ações das empresas ao distinto público. Criaram um cálculo para o reajuste das tarifas no qual os concessionários têm que correr atrás da produtividade.
No tucanato nacional, as coisas acontecem de maneira diversa. Aqui, o talento migra da gestão pública para os bancos aéreos (aqueles que não têm loja no térreo). Alguns dos cérebros que conceberam a venda das empresas públicas trabalham hoje nos bancos que as compraram. É gente que movimenta bilhões de dólares em papelório, mas não se compromete diretamente com a produção de um só parafuso.
No caso da Light, aconteceu de tudo. O leilão estava marcado para abril de 1997, mas foi adiado, por falta de comprador. Como o governo transformou a venda da empresa num dogma de fé, o caso foi resolvido em três etapas.
Primeiro desvalorizou-se a empresa. O BNDES desmanchou o edital do leilão, que exigia pagamento em dinheiro e aceitaram-se moeda$ podres. A Light foi vendida por R$ 2,3 bilhões, mas os compradores desembolsaram apenas R$ 1,8 bilhão.
Depois, atacou-se a bolsa da Viúva. Quitou-se uma dívida de US$ 200 milhões com o governo francês. É certo que algum dia ela haveria de ser paga, mas se sumiu com um artigo do edital que obrigava o comprador a construir uma barragem destinada a regularizar o curso do rio Piraí. Coisa de US$ 80 milhões. Honrou-se um compromisso e estatizou-se o outro.
Como ainda era pouco, na véspera do leilão, o BNDES pingou algo como R$ 150 milhões para fechar o lance vencedor.
Finalmente, foi-se ao bolso do consumidor. No primeiro edital, os novos concessionários tinham direito a cinco anos de reajustes tarifários equivalentes ao IGP-M. (Prerrogativa negada aos trabalhadores na negociação de seus dissídios trabalhistas.) No segundo edital, os cinco anos viraram oito. Se algum jovem talentoso propusesse uma coisa dessas à baronesa Thatcher, ela seria capaz de mandá-lo privatizar uma penitenciária.
Nos dois últimos anos, a Light corrigiu suas tarifas em 20,5%, contra um IGP-M de 17,5%.
Desvalorizou-se a empresa, avançou-se sobre o patrimônio da Viúva, meteu-se a mão no bolso do consumidor, mas tudo isso foi feito em nome da eficiência.
Ninguém melhor que o diretor-geral da Electricité de France, Jack Cizain, para informar como seria o mundo da privatilight:
- Vamos desenvolver a empresa e melhorar os serviços, para que os clientes fiquem muito satisfeitos e consumam mais energia.
Por via das dúvidas, o consórcio estava obrigado a manter índices de regularidade no fornecimento de energia inferiores aos que a Light vinha conseguindo. Contratualmente, estava entendido que a qualidade do serviço podia piorar, mas a galera não foi avisada disso.
Em dezembro, quando se deram os primeiros blecautes, a diretoria da Light foi avisada de que era necessário adotar um plano de emergência para enfrentar a situação. Nessa época, a empresa já triplicara as reclamações dos clientes e era a campeã de queixas entre os concessionários de serviços públicos. Fez nada.
Já tinha feito. Cortou US$ 118 milhões em pessoal (demitiu 1 em cada 3 funcionários) e distribuiu US$ 251 milhões em lucros. Segundo o banco Bozano,Simonsen, seu lucro de 1997 deve ficar em US$ 272 milhões.
O argumento da Light de que a sobrecarga criou problemas insolúveis é absolutamente correto. No meio do verão, ela se viu obrigada a aguentar um aumento de consumo equivalente ao da anexação de uma cidade como Campinas ao Rio de Janeiro. Falta apenas que o diretor-geral da empresa, Michel Gaillard, diga aos clientes muito satisfeitos que passaram a consumir mais energia, que seu chefe, o doutor Cizain, perdeu uma excelente oportunidade de ficar calado.
O doutor Gaillard também deve pensar melhor no que diz. Lançando-se num programa de modernização do seu sistema de cobranças (boa parte dele ajudado pela maciça importação de medidores franceses), ele informou:
- Prestamos um serviço e devemos fazer com que paguem por ele.
Impecável. Tão impecável como a seguinte variante do mesmo raciocínio: - Prestamos um desserviço e devemos pagar por ele.
Se as canções do canto tucano fossem sérias, os concessionários de energia que desgraçam a vida dos consumidores deveriam ser obrigados a pagar multas a cada uma de suas vítimas. Na Inglaterra é assim. Se quiserem copiar a Argentina, também podem. Lá, no primeiro ano em que vigorou o sistema de penalidades, as empresas pagaram US$ 14 milhões em multas.
O doutor Luiz Carlos Mendonça de Barros, presidente do BNDES, privatizou a Light na bacia das almas e vendeu os consumidores como quem vende bois. Com o seu próprio patrimônio, ou com os serviços pelos quais paga, não faz coisas desse tipo.


Vicentinho se esqueceu

As manifestações da Central Única dos Trabalhadores contra a reforma da Previdência são um exercício de empulhação. Seu presidente, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, apoiou o eixo central da reforma que agora condena.
Vicentinho quebrou a espinha dorsal da oposição à reforma da Previdência porque a apoiou, no dia 15 janeiro de 1996, durante uma reunião com representantes do governo. (Se puxar pela memória se lembrará que, a certa altura, o deputado Jair Meneguelli, seu antecessor na CUT, propôs que abandonassem a mesa de negociação.)
Vicentinho aceitou o principal item da reforma, que é a transformação do tempo de serviço em tempo de contribuição. Fez isso dizendo que conseguira "uma grande vitória". Argumentou que a troca significava apenas uma mudança de expressão. Falso. Significava que os trabalhadores do mercado informal perdiam a capacidade de se habilitar para a aposentadoria por tempo de serviço provando que haviam trabalhado para um patrão que não lhes assinara a carteira. Defendeu-se com uma frase que deve entrar para a história do movimento sindical brasileiro:
- Na discussão não se está excluindo o trabalhador informal. Simplesmente ele não estava incluído.
Essa monstruosidade contra os trabalhadores mais humildes e desprotegidos, é o aspecto essencial da reforma da Previdência. Quando Vicentinho apoiou a exclusão dos não-incluídos, podia pensar que os metalúrgicos de São Paulo, todos com carteira assinada, não precisavam brigar por um assunto desses.
Agora o vento virou. A indústria paulista fechou 162 mil postos de trabalho entre novembro de 1996 e novembro de 1997. Os trabalhadores com carteira assinada que perderam o emprego somaram 91 mil, e os do setor metal-mecânico, 65 mil. Muitos deles serão incluídos no mercado informal e expulsos por tempo indeterminado do sistema previdenciário que Vicentinho apoiou.
Agora Vicentinho diz que está estudando a possibilidade de convocar uma greve geral. Não vai fazê-lo, e, se o fizer, vai fracassar, levando mais gente para o desemprego. Magnífico Tiradentes com o pescoço alheio.


O rio de doces da Vale

Vai mal a privataria. Ainda não passou um ano da venda da Companhia Vale do Rio Doce e os seus acionistas já não se entendem. Aquilo que parecia ser uma controvérsia relacionada com o destino da empresa, ou de suas atividades econômicas, começa a adquirir um forte cheiro de mercado persa.
Há um interesse explícito de pelo menos um dos investidores em fatiar a Vale no menor espaço de tempo possível, ganhar o que puder e cair fora. Ele foi vocalizado pelo NationsBank, a maior casa do Texas e da Flórida. O Nations emprestou US$ 1,2 bilhão para a formação do consórcio que comprou a Vale, além de ter ficado com uma parte do capital do grupo controlador da empresa.
Seu presidente, Richard Gross, deu uma entrevista ao jornal "Charlotte Observer" dizendo, entre outras coisas, o seguinte:
- Nossa missão é ganhar honorários, não juros.
Explicando melhor:
- A Vale do Rio Doce tem mais de 30 subsidiárias que podem ser vendidas. (...) Se o NationsBank conseguir um papel nessas vendas, estará em condições de ganhar mais alguns milhões em honorários de operações bancárias de investimentos.
O NationsBank faz com o seu dinheiro o que bem entende. Chega a ser um prazer ouvir o doutor Gross dizer que "não queremos fazer empréstimos estúpidos e não sermos pagos". Mas, se emprestou dinheiro ao consórcio, tudo o que tinha a receber eram juros. Se investiu na Vale, pode-se supor que a julgasse bom negócio.
Pelo que diz Gross, o Nations acredita estar diante de uma oportunidade para corretar o esquartejamento da empresa. Nesse caso, ou sua competência não requereria que pusesse tamanho ervanário no negócio, ou acredita que sua condição de sócio pode lhe dar uma posição privilegiada para mercadejar as subsidiárias.
É muito provável que a Vale deva ser esquartejada, mas uma coisa é vender a sua operação de alumínio ou de celulose para gerar recursos, e outra é fazer isso para gerar comissões. Nos Estados Unidos, essa distinção é velha e tem nome. Quem vende para arrumar a casa é chamado de reorganizador. A quem vende pela comissão, chamam predador.


Na porta do cofre

O ministro Pedro Malan está barricado para impedir a consumação de um grave atentado contra a bolsa da Viúva.
No lusco-fusco de uma votação do Congresso, as empreiteiras credoras de muitos bilhões de reais junto aos governos de diversos Estados, enfiaram uma emenda que dá ao governo o poder de rolar essas dívidas.
A União tem até 31 de março para aceitar as dívidas. $e as aceitar, os empreiteiros levam o seu, e os Estados caloteiros terão 30 anos para lhe devolver o dinheiro. Num ano qualquer, uma coisa dessas é um verdadeiro presente. Em ano eleitoral, é a própria chegada de Papai Noel.
Se Malan conseguir segurar a porta do cofre até a noite de 31 de março, salva-se o erário, pois o dispositivo caduca.


Entrevista
Pedro Corrêa do Lago

(39 anos, colecionador de documentos e de autógrafos desde os 12, autor do livro "Documentos Autógrafos Brasileiros".)
O senhor tem uma coleção de 20 mil documentos da História do Brasil e os autógrafos de todos os reis de Portugal, imperadores e presidentes da República. Qual foi o mais difícil?
Foi o autógrafo de d. Sebastião, o rei de Portugal, morto em 1578. Isso era previsível, porque ele morreu aos 23 anos. Surpreendentemente, tive dificuldades para achar autógrafos do deputado Carlos Luz, que foi presidente da República por dois dias em 1955. Ainda estou atrás do padre Antonio Vieira. O grande sonho dos colecionadores é achar um papel escrito por Pedro Álvares Cabral, mas esse ninguém tem. Nem em Portugal. Há autógrafos que parecem fáceis e são difíceis. Noel Rosa, por exemplo. Há autógrafos fáceis e comoventes. Pelé não nega autógrafo e frequentemente faz dedicatórias. Deve valer uns R$ 50. É provável que a assinatura mais cara seja a do Tiradentes, valendo entre R$ 5 mil e 10 mil.
No Estados Unidos, há um grande mercado de autógrafos. Está enlouquecido. Pagam mais por uma carta de Al Capone do que por outra, de Franklin Roosevelt. No Brasil, esse mercado não existe. Isso é bom, porque evita que sumam papéis públicos, ou é ruim porque não incentiva a preservação dos papéis familiares?
Quando se paga US$ 50 mil por uma carta de um bandido, alguém está louco. Já o manuscrito do discurso que o presidente Abraham Lincoln fez em Gettysburg valia o US$ 1,2 milhão que custou. É um documento da história. A questão do mercado é falsa. Os documentos que se perdem fora dos arquivos públicos. Muitas vezes, debaixo do nosso nariz. Quantas cartas de Leila Diniz já se terão perdido? Quantas cartas de Castro Alves se perderam? Os colecionadores preservam. O diário do Antonio Conselheiro foi conservado por particulares. Se dependesse do governo, queimavam. O mercado incentiva. Há pouco, vendeu-se um lote de 40 cartas de Carlos Drummond de Andrade por R$ 5.000. Um preço médio de R$ 125 por carta.
O que o senhor sugere a uma criança de 12 anos que queira começar sua coleção e a um casal de 72 anos que queira se livrar dos papéis empoeirados da família?
Ao jovem sugiro que não se acanhe em escrever para as pessoas pedindo o autógrafo. A assinatura, pura e simples, é uma coisa meio boba. É melhor pedir que autografem uma fotografia ou suscitar uma resposta interessante. Um conselho: é útil mandar junto com o pedido um envelope selado e endereçado. Isso estimula a pessoa.
Ao casal, sugiro que descubra uma instituição interessada nos papéis. Se não quiserem fazer isso, podem botar tudo numa caixa e despachá-la para o Arquivo Nacional. Lá há gente qualificada. Jogar papel fora é uma tristeza. Eu daria metade da minha coleção para ter um documento do Cabral, ou de Camões. Eles não existem porque ninguém lhes deu valor.


Capitão sem porto

Circula entre o gabinete do ministro da Marinha e o Palácio do Planalto uma daquelas propostas que fazem a glória de Brasília.
O almirante Mauro Cesar Pereira quer transferir o comando da Capitania do Porto de Itajaí para Florianópolis. As coisas ficarão assim:
1) o capitão dos portos, com patente de capitão-de-mar-e-guerra, vai para Florianópolis, que não tem porto. As tarefas de vigilância naval naquela cidade são cumpridas por uma equipe comandada por um sargento. Fiscalizam as lanchas de passeio do Iate Clube;
2) Itajaí, que ficará sem o capitão-de-mar-e-guerra, continuará tendo um porto. É o maior porto pesqueiro da América do Sul, um dos dez maiores do Brasil. O serviço ficará a cargo de um capitão-de-fragata.
O autor da proposta deveria pensar grande. Se o capitão dos portos não é necessário em Itajaí, por que mandá-lo para Florianópolis? Viveria melhor em Paris.



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