|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
REPRESSÃO
Policial aposentado explica o funcionamento da polícia política do governo Getúlio Vargas até o regime militar
Ex-diretor revela como era a espionagem
DA SUCURSAL DO RIO
Quando o estudante Carlos Lacerda foi preso no centro do Rio
panfletando no começo dos anos
1930, foi o policial Cecil de Macedo Borer quem o prendeu. Quando quatro militantes comunistas
foram recrutados como agentes
duplos após o levante de 1935, foi
Borer quem os recrutou.
Em seguida à detenção de integralistas, em 1938, e nazistas, na
década de 40, os interrogatórios
foram conduzidos por Borer.
Quando uma pequena tropa de
espiões se infiltrou em organizações revolucionárias e sindicatos
às vésperas do Movimento Militar
de 1964, seu chefe era Borer. Foi
Borer (pronuncia-se "Borér")
quem comandou a caçada a militantes de esquerda e partidários
do governo João Goulart (61-64)
nos meses posteriores ao golpe.
De 1932, quando tornou-se
agente do serviço secreto do antigo Distrito Federal, até 1965, ao
aposentar-se como diretor do
Dops da Guanabara, Cecil Borer
tornou-se uma legenda da polícia
política -e sinônimo do prédio
da rua da Relação, 40. Aos 87
anos, presidente do Sindicato das
Empresas de Segurança Privada
do Estado do Rio, ele revelou alguns de seus segredos à Folha.
Em 1932, aos 18 anos, Borer foi
um dos 200 atletas convidados
para ingressar na recém-criada
Polícia Especial do governo de
Getúlio Vargas. Alto e parrudo,
era arremessador de peso e disco
do Fluminense (seu irmão mais
novo, Charles, viria a ser presidente do Botafogo). Foi destacado
para o quadro móvel, eufemismo
que designava o serviço de inteligência (espionagem) de Vargas.
Espécie de araponga da primeira metade do século 20, evitava o
prédio da Polícia Central, na rua
da Relação, para não ser reconhecido. "Na época já se encostava
em filhas de pessoas importantes
para namorar, saber das coisas",
lembra Borer. "Pela primeira vez
usamos várias mulheres em serviço de inteligência no Brasil." Para
obter informações, "elas iam até à
cama, se necessário".
Em 1934, Borer passou a dar expediente em tempo integral na
rua da Relação, como chefe de
turma de sindicância e investigações. Nas semanas seguintes à Intentona Comunista de novembro
de 1935, seu principal objetivo era
encontrar os cabeças da conspiração. "Aliciei quatro militantes que
estavam presos. Nós os soltamos,
e eles nos levaram aos líderes, inclusive a Luís Carlos Prestes."
Na época, casas eram invadidas
quando a repressão bem entendia: "Não havia mandado de busca e apreensão, nada disso. A polícia era o poder absoluto". Borer
não é menos sincero ao falar da
parcialidade da Justiça: "No Tribunal de Exceção, a priori a pessoa já estava julgada".
Sessenta e cinco anos depois das
torturas que levaram à demência
irreversível o comunista alemão
Arthur Ernst Ewert, um dos artífices do movimento de 1935, Borer
não esquece a têmpera do homem
que, meses a fio de 1936, se negou
a dar uma só informação aos algozes. "Foi a pessoa com maior
trabalho mental, determinação e
inteligência que já conheci", afirma Borer, referindo-se a Ewert
por seu codinome, Harry Berger.
"Altamente preparado, Berger
resistiu a todo o tipo de pressão.
Batiam nele o dia inteiro no convento do morro de Santo Antônio
[centro do Rio", onde estava preso, e não falava nada."
Borer diz ter conhecido Ewert
quando o alemão passou pela rua
da Relação. Sobre "todo o tipo de
pressão", é reticente: "Punha-se
de pé, nu, sem poder sentar. É
normal. Se em troca disso alguém
passasse informação, você usava.
Quem vivesse a situação não veria
nada de anormal. A ação era compatível com a circunstância. O objetivo era correr contra o tempo".
Em contraste com contemporâneos que nas décadas seguintes se
obstinaram em reescrever suas
biografias, Borer ainda hoje defende a extradição na qual, em
1936, Vargas entregou a judia e
comunista Olga Benário, mulher
de Luís Carlos Prestes, ao governo
nazista da Alemanha, que a mataria num campo de concentração.
"Agora todos condenam", diz.
"Na ocasião, não havia por que
não atender o pedido de extradição da Alemanha." Borer esteve
com Olga na rua da Relação, onde
ela ficou presa dez dias. Lá, cansou-se de interrogar o secretário-geral do Partido Comunista Argentino, Rodolfo Guioldi, outro
líder do "putsch" de 1935. Foi Borer quem o levou de volta a seu
país de origem, onde foi libertado.
Em 1954, às vésperas do suicídio
de Getúlio Vargas no dia 24 de
agosto, Borer foi chamado, conforme suas memórias, para interrogar na Base Aérea do Galeão o
chefe de segurança do presidente,
Gregório Fortunato. Gregório era
acusado de planejar o atentado de
dias antes na rua Tonelero contra
o inimigo supremo de Vargas,
Carlos Lacerda. Lacerda escapou,
mas um segurança, o major-aviador Rubens Vaz, morreu.
Em 1960, quando seu antigo
preso e depois amigo Carlos Lacerda (que abandonara o comunismo e se tornara conservador)
elegeu-se governador da Guanabara, Borer deixou a direção do
Dops e passou um tempo como
delegado de vigilância -antes,
conduzira a seção que investigava
o movimento sindical. Trocou a
perseguição a adversários políticos pela procura de bandidos com
apelidos como Cara de Cavalo,
Coisa Ruim e Mineirinho.
Em 1963, a pedido de Lacerda,
voltou ao Dops. O tempo estava
ficando quente. Borer ensina uma
lição dos tempos em que correu
atrás de criminosos comuns:
"Com os presos políticos, ao contrário do que acontece com os
malandros, é preciso usar a inteligência, não só a força física".
No fim do governo Lacerda, em
1965, Borer deixou o Dops e se
aposentou. "Esqueceu" o nome
dos infiltrados que acompanharam o séquito de Goulart no Uruguai. Conta ter se desfeito do arquivo particular de 700 kg.
Borer assegura não ter saudade
dos tempos de Dops. Não foi convidado para a cerimônia de terça-feira, que marcará a despedida
simbólica da polícia. Sobre o prédio, diz: "Não é que lá residisse a
repressão. Mais que isso: grande
parte da história do Brasil aconteceu ali dentro".
(MM)
Texto Anterior: "Hóspedes" do prédio narram experiências Próximo Texto: Frases Índice
|