São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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JANIO DE FREITAS

Acima das versões

O incidente em torno do possível uso de tropa militar, na repressão aos traficantes que se abrigam em favelas cariocas, foi menos simples e mais revelador da atualidade do que as versões, criadas por diferentes conveniências políticas, lhe atribuíram.
O emprego de tropa militar não estava em cogitação, seja pelo governo fluminense ou pelo federal, em nenhum momento entre a eclosão da violência na Rocinha, na noite de quinta para sexta-feira passadas, e as palavras do ministro da Justiça a respeito, na segunda-feira. Indagado sobre a possível decisão do governo federal de empregar tropa militar ou o estado de defesa (sugestão intrigante de Cesar Maia), Márcio Thomaz Bastos disse que o governo se disporia a ambas se a governadora Rosinha Matheus o solicitasse.
Secretário de Segurança fluminense, Anthony Garotinho telefonou ao comandante militar do Leste, general Manuel Luis de Castro, na terça-feira. Informava-o de que seria pedida tropa militar para incorporar-se à ação contra traficantes nas favelas. O general reagiu de imediato, com o argumento conhecido e reconhecido como convincente: a tropa do Exército não tem preparo para tal tarefa, razão pela qual a solicitação deveria ser sustada.
O argumento do secretário, porém, não foi menos fundado, para reafirmar o propósito da solicitação: feita publicamente a oferta do governo federal, o governo fluminense ficava compelido a aceitá-la porque, se a desprezasse e sobreviesse um fato grave, seria acusado inclusive pelo governo federal.
O general foi mais rápido. Logo o ministro da Justiça telefonava a Anthony Garotinho, mas não teria, mesmo, como remover as razões do governo fluminense para não se expor ao risco de recusar a oferta federal. Argumento que se bastava, mas o secretário quis saborear demais a entaladela em que ficaram seus adversários do governo Lula e, na aceitação pública da oferta de tropas, esqueceu que ironias não precisam ser sublinhadas.
Nas versões que se seguiram, a posição do Exército não apareceu jamais. O governo federal não pôde revelar essa recusa, sob pena de criar outro incidente, e ficou ele mesmo como tendo oferecido e depois recuado. Ao governo fluminense interessava sair da armadilha e, de quebra, ainda ganhou o reconhecimento de que controlava a situação na Rocinha. Mas a questão fundamental permanece.
Quais são as responsabilidades das Forças Armadas e, particularmente, do Exército em relação à segurança? Quando o texto original da Constituição, o texto elaborado pelos constituintes, conferiu às Forças Armadas a responsabilidade pela chamada segurança externa, o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney, foi portado da exigência dos militares de que a Constituição lhes entregasse, explicitamente no texto, a responsabilidade pela segurança externa e interna. E, claro, assim foi feito.
Desde o governo Fernando Henrique, o Exército ficou de habilitar parte de sua tropa, como foi divulgado, para a eventualidade de ameaças mais extremadas à segurança pública. De outra parte, as fronteiras corrompidas pelo contrabando de armas de guerra são assunto da segurança externa. E então?
Deve-se discutir o tipo e o grau de possível ação militar. Na Rocinha, por exemplo, até agora não seria necessária mais do que a ação policial. Mas a validade do argumento de que não há tropa militar preparada é uma condescendência absurda para quem mantém as Forças Armadas. Há muito o que pensar e discutir nesse assunto. E se houver um mínimo de seriedade e coragem para fazê-lo, o que é duvidoso.


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