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JANIO DE FREITAS
Desintegração
O Estado laico foi empenhado em um enlaçamento religioso cujo despropósito só pode ter deixado o papa estarrecido
NA HORA MESMA em que o papa chegava a Roma, Lula nos
presenteava a primeira revelação, em seu programa "Café com o
presidente", de uma miudeza da sua
audiência privada com Bento 16, que
no Brasil ficou visto mais em sua
versão cardeal Ratzinger. A rigor, é
uma visão estreita e injusta designar
como simples revelação o que é mais
uma obra-prima da criatividade presidencial. Meia dúzia de horas mais
tarde, Lula deu um passo adiante e,
em vez de apenas narrativa, já expôs
a primeira conseqüência governamental e social da conversa.
O "Café" é um programa que não
deixa o ouvinte indiferente. Ou faz
rir de um modo muito saudável para
abrir a segunda-feira, ou provoca do
desalento à irritação, sem que tais
efeitos sejam desejados por seu propósito propagandístico. O presente
incluído no "Café" de ontem misturou, com uma pequena frase, todos
aqueles possíveis efeitos. Lula, informa o próprio, nas considerações
que apresentou ao papa sobre as
realidades regionais incluiu, claro
que como proposta presidencial do
Brasil, a de fazer-se, a par ou acima
das demais, também a "integração
religiosa da América Latina".
Mesmo sem saber o que o papa
disse a respeito, se é que teve condições de dizer alguma coisa, é fácil
presumir o que pensou. O papa, afinal de contas, veio ao Brasil a título
de presidir mais um ato orientador
da secular integração da Igreja Católica por aqui: mais uma Conferência
Geral Episcopal da América Latina e
do Caribe, por ele aberta em Aparecida e que lá continua ainda por vários dias.
Feitas de público as pressões da
Igreja Católica por medidas do governo, em proteção da sua doutrina
e do seu patrimônio, aqui para fora
Lula adotou a resposta lúcida e cortez de que, à margem de sua opinião
pessoal, a Constituição reza que o
Estado brasileiro é laico e aberto a
todos os credos (resposta cuja sugestão está atribuída ora ao ministro
Celso Amorim, ora à ministra Dilma
Rousseff). A portas fechadas, porém,
o Estado laico foi empenhado em
um enlaçamento religioso cujo duplo despropósito -por sua evidência bajulatória e pelo primarismo da
idéia- só pode ter deixado o papa
estarrecido. Mesmo que, diante da
exposição que Lula lhe fez sobre o
obsessivo etanol, enquanto ele pensava em aborto e em perda de fiéis, o
papa notasse estar diante de uma
história pessoal já desintegrada.
A primeira conseqüência objetiva
da conversa, uma outra modalidade
de entrega do Estado laico, veio logo
nas primeiras horas de ausência do
papa: não há hipótese, disse Lula, de
que o seu governo tome alguma providência relativa ao problema do
aborto, ou seja, ao direito da mulher
de tê-lo em condições legais e de segurança médica.
Lula reconheceu há pouco que os
abortos clandestinos constituem,
dadas as decorrências de sua criminosa precariedade, problema grave
de saúde pública. Logo, como problema de saúde pública, é obrigação
moral e legal do governante, em particular do presidente da República,
agir para solucioná-lo ou reduzi-lo
ao mínimo possível. O oposto dessa
atitude é a omissão que, no mínimo,
caracteriza prevaricação. Tanto
mais que deliberada e anunciada.
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