São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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Elio Gaspari

Enfim, a história da seca

Vem aí um ótimo livro. É "Vida e Morte no Sertão - História das Secas no Nordeste Brasileiro nos séculos 19 e 20", do professor Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos. Desambicioso, simples e pequeno (270 páginas), fechará um enorme buraco nas bibliotecas brasileiras. As secas nordestinas já foram estudadas por grandes autores. O baiano Rodolfo Teófilo, morto em 1932, descreveu como ninguém os flagelos do final do século passado no Ceará. O mineiro Guimarães Duque, morto em 1978, tornou-se um clássico do estudo do ambiente sertanejo. O paraibano Celso Furtado sistematizou a concepção de políticas públicas para a região. Apesar disso, ninguém contou a história das secas com início, meio e fim. Esse é o mérito do professor Villa, paulista.
Um estudo que começa contando a história de uma sociedade que, em 1859, tentou enfrentar a seca importando 14 dromedários argelinos não pode ser leitura desinteressante. Muito menos se junto com os dromedários circula pelo sertão uma comissão científica que custou ao Império os olhos da cara e nada produziu. Dela fazia parte o poeta Gonçalves Dias. Tornou-se conhecida como comissão do defloramento, por conta da intimidade que mais exercitou junto aos moradores da região. (Ela custou, só em importação de equipamentos europeus, o dobro do que dispôs o Fundo de Emancipação de Escravos ao longo de três anos, nos quais libertou 3.000 cativos.)
Villa estima que entre 1825 e 1980 as secas mataram 3 milhões de brasileiros. Sua narrativa tem o ritmo de uma desgraça que se move em ciclos. Quando não há seca, não há Nordeste. Quando há, o governo a nega. Em 1878 o senador Afonso Celso dizia que "esta seca há de acabar por decreto". Em 1970 o coronel-ministro Costa Cavalcanti dizia que se estava diante de "uma seca artificial". Quando ela não pode ser mais desmentida, o povo do sertão deixa de ser laborioso e passa a ser visto como uma horda de saqueadores e desordeiros. Nessa etapa, o governo recicla indolência em piedade. Em 1878, quando morreram 500 mil pessoas no Nordeste, o imperador foi a uma cerimônia para recolher fundos para os flagelados, em Lisboa. Em 1970, o general Médici foi a uma frente de trabalho, discursou, perguntou se o pessoal tomava pinga e foi-se embora. (Anos depois FFHH visitou uma frente com sapatos de camurça.)
Segue-se um grande plano. A transposição do rio São Francisco, por exemplo, é uma idéia de 1818. Há também a transposição dos nordestinos para a Amazônia, astúcia que reaparece a cada 50 anos. No final do século 19 remeteram-se 250 mil sertanejos para a floresta. Na década de 40 inventaram-se os soldados da borracha e, com as bênçãos de d. Hélder Câmara, 50 mil flagelados foram para os seringais. Morreram 10 mil, o que dá uma percentagem de 20%. É um número instrutivo, sobretudo levando-se em conta que a taxa de mortalidade entre os soldados de verdade que foram combater na Itália ficou em 1,9% (443 pessoas).
Em 1970 a ditadura militar construiu a Transamazônica e planejou uma rede de agrovilas que deveria receber 100 mil famílias. Assentaram menos de 8 mil. Com o dinheiro gasto poderiam ter dado a cada uma delas um apartamento na Vieira Souto e uma pensão vitalícia e hereditária de R$ 3 mil por mês.
A narrativa termina em 1984. Ela ensina que o progresso dos transportes minorou o efeito das secas. Hoje, com a aposentadoria dos trabalhadores rurais e a merenda escolar, persiste a miséria, mas a noção de flagelo tornou-se uma fantasia sulista. As cenas de "Vidas Secas", que povoam o imaginário nacional, tornaram-se uma peça literária a serviço de uma simplificação propagandística.
Se a seca é uma tragédia, o autor que tem uma fórmula para acabar com ela é um chato. Villa não oferece soluções. Simplesmente conta a história. Conta coisas como o esforço do governo Vargas para impedir que os nordestinos viessem para o Sul na seca de 1952. Pois eles vieram, trazendo a mão-de-obra que ergueu o parque industrial paulista.
Lendo-se uma história repleta de velhos sobrenomes com projetos fracassados, fica uma sensação de mudança. Em 1952, num dos caminhões que desceram de Pernambuco, viajava um garoto de sete anos, cujo pai carregava sacos de café em Santos.
Na semana passada, um conhecedor da política nordestina e personagem da hierarquia nacional, dava sua sentença para os últimos resultados eleitorais:
"Se a eleição de 2002 fosse hoje, o Lula estaria eleito".
O Nordeste pode não ter mudado tanto quanto deveria e Lula pode não ser eleito, mas, pelo menos em matéria de medo, melhorou-se, e muito.

Sobrevivência
As caciquias do PSDB e do PFL estão conversando.
Perceberam que se continuarem brigando vão para o túmulo.

O leitor esclarece
O médico Gonzalo Vecina Neto, presidente da Associação Nacional de Vigilância Sanitária, informa que desde julho os remédios com a droga cisaprida só podem ser vendidos no Brasil com o tipo de receita médica que a farmácia é obrigada a reter. Ademais, a Anvisa notificou os riscos dessa droga a todos os conselhos de medicina e de farmácia.
O laboratório Sintofarma, que produz a marca de fantasia Cispride, tomou a iniciativa de comunicar à classe médica que esse remédio, recomendado para certos distúrbios gástricos, deve ser ministrado com cautela. O Sintofarma orgulha-se de ter procedido com rapidez e competência para evitar que seu produto seja receitado sem necessidade. Nem todos os fabricantes procederam dessa maneira.
Fica assim a situação: depois do aparecimento de casos de arritmia cardíaca e da morte de mais de cem pessoas (inclusive crianças) que tomaram cisaprida nos Estados Unidos, o laboratório que produz o Propulsid retirou-o do mercado. O escritório de advocacia Weitz & Luxenburg (www.masstorts.com) está colocando anúncios nos jornais oferecendo seus serviços às pessoas interessadas em processar o fabricante do remédio (Prepulsid, no Brasil).
Era improcedente a crítica feita à Anvisa e, pelo menos, ao Sintofarma, por não terem divulgado os efeitos colaterais da cisaprida.
Vale listar os nomes dos remédios que contêm cisaprida e continuam sendo receitados no Brasil: Cisatec, Cinetic, Cisapan, Cispride, Enteropride, Kineprid, Pangest e Prepulsid.

Rainha, o com-tudo
Com a revelação de que o sem-terra José Rainha Júnior é acusado de ter pago um automóvel com cheque sem fundos, sem honrar as prestações do financiamento, esse renomado líder dos excluídos brasileiros tornou-se o melhor exemplo do sucesso das políticas sociais de FFHH:
Dirigente do Movimento dos Sem-Terra, é um com-terra. Tem um lote de 14 hectares (equivalente a 20 campos de futebol) no assentamento Che Guevara, no Pontal do Paranapanema.
Simpatiza com o Movimento dos Sem-Teto, mas é um com-teto. Ocupou uma casa da Cesp em Teodoro Sampaio e comprou-a por R$ 4 mil. Valia mais. Na sua sala de visitas há um conjunto de três sofás, tapete vermelho, TV, aparelho de som e um retrato do guerrilheiro heróico. No quarto, ar-refrigerado. Tudo isso e mais uma empregada.
Com terra, casa, carro, ar e criada, ele já explicou (há alguns anos) a fonte de seus direitos:
"Sou um cidadão e pago impostos. O que está errado é haver gente na rua".

A mulher que buscava o ravioli perdido

Mais uma comprovação da lei de Gentil Cardoso: "Quem se desloca, recebe. Quem pede tem preferência".
Gianni Garavelli é quem atende o telefone do seu restaurante, o Bravo Gianni, de Nova York, celebrizado por Paulo Francis. Numa noite, do outro lado da linha falava uma senhora. Ela dizia que buscava um lugar onde pudesse comer o ravioli com recheio de carne e molho de tomate que lhe marcara a memória da infância.
Gianni explicou-lhe que raramente colocava esse prato no menu porque os americanos cismaram com a origem do recheio do ravioli, supondo-o reciclagem de sobras. De qualquer forma, aos domingos, quando janta com os garçons e cozinheiros, quase sempre faz esse prato. A senhora interessou-se e Gianni deu à conversa a marca do seu estilo: "Se você quiser, passe aqui no domingo. Será minha convidada".
A mulher não comia um bom ravioli de carne desde os anos 80. Nas últimas semanas, ligara para 52 restaurantes italianos de Manhattan. Só oito o serviam. Um tinha gosto de queijo. Outro estava cru. Apareceu até molho com tomates secos. Quando telefonou para o Bravo Gianni, estava perto de desistir.
No domingo, Gianni surpreendeu-se ao receber uma senhora que se dizia convidada da caçadora de ravioli. Achou esquisito. Pronta a mesa, conversaram sobre a receita e as dificuldades da massa: "Ela precisa ser muito delicada, porque é dupla". Gianni contou a história da receita e mostrou como é complexa a fórmula do recheio. Leva seis tipos de carne e até espinafre.
A convidada fartou-se. Seguindo um hábito da cidade, levou as sobras (que comeu na manhã seguinte, antes de tomar café).
A história parecia terminada, com um dono de restaurante fazendo a felicidade de uma desconhecida, quando a convidada dirigiu-se a Gianni:
"Preciso pagar. Eu sou Alex Witchell, do "The New York Times", e estou trabalhando".
Voltou três vezes, inclusive com o marido. Sempre comendo ravioli e sempre pagando.
Semanas depois, Gianni conseguiu a glória dos cozinheiros. Ganhou uma página inteira no "Times". Nela o seu ravioli foi chamado de "nirvana", "celestial" e "divino".
É verdade que se trata de um prato para ser comido em feitio de oração, mas sempre fica a impressão de que Gianni Garavelli teve sorte. Numa cidade onde os restaurantes tratam clientes desconhecidos como se fossem zumbis, teve prazer em oferecer um prato de comida a uma mulher anônima que buscava um sabor perdido. "Na manhã seguinte, quando percebi que não precisava ir para o colégio, pensei que ia chorar", escreveu Alex Witchell.
Depois do artigo, o ravioli reapareceu em diversos restaurantes da cidade.

Poesia

Armando Freitas Filho

(60 anos, poeta, autor de "Fio Terra", seu 12º livro)

29/06/98
Vestido de sua nudez, pendurado
na madrugada. Primeira pele
deslizante, largada para trás
durante o pega dos corpos.
Agora, o que se apanha e aperta
com a mão molhada de carne
é o que mais se esmerou na vida
e estava encoberto, à espera:
queda de flanco, curva rápida
estirão e
êxtase!
11/05/98
Difícil de abrir o dia, o sol
a luxuosa luz da manhã
o céu que a montanha sonha
o alto-mar feito de leões.
A única vitória é a própria vida
com o corpo batendo ponto
e o fogo fechado do troféu, na mão.
Que arde mesmo não estando
cercado pelo sofrimento, se gasta
em passo igual ao da natureza
diminuindo dia a dia a chama
que mais queima do que exalta.

27/05/98
Dia de mão única. De uma linha só.
Reta, rua, avenida, ida, sem ponto.
Ditado direto, de cor. Não se perde
em praças, esquinas, largos
nem se conclui em becos fechados.
Dia de nenhuma vida particular
mas da existência inteira, retilínea.
Dia aberto, com todo céu e chão
parece que não acaba nunca
perpendicular ao horizonte.
1º/07/98
Amanheceu. O céu se esclarece.
Mas não resolve a noite
que ainda não largou o mar
o fim da escada, o gosto crespo
amarfanhado do seu cabelo debaixo.
Nem fechou tudo o que foi aberto
e, por natureza, é noturno: olhos
de furiosas jóias no cofre, o íntimo
que sem ser do júbilo, não é da lágrima.
É do instinto, que subsiste assim
e cintila - subterrâneo.
Retrato no telefone
Beijo sua voz no bocal preto.
Do outro lado da linha, no espaço
em branco, no escuro, nua
sem batom, cor de carne, o fio
o dispositivo do riso que se retira:
sorriso, sussurro, espécie de soluço
que se detém nos dentes, e não
sobe aos olhos, atrás dos óculos de sol.

Pé no freio
Se depender do ministro de Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, a construção da usina nuclear de Angra 3 não sai.


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