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ENTREVISTA
Ministro da Fazenda afirma não ter perfil para entrar em campanha eleitoral pelo grau de ataques pessoais existente
"Nunca fui, não sou nem serei candidato"
Folha - Em agosto de 1998, o sr.
declarou: "Não há razão para que a
crise na Rússia tenha efeitos sobre
o Brasil". Foi uma previsão errada?
Malan - A discussão naquele
momento era a da contaminação.
A Rússia declarou a moratória, o
que teve um efeito sério, em termos de demanda de recomposição de carteiras, em escala internacional. O nosso C-Bond tem
uma característica: ele é o título de
nossa dívida externa de maior volume, de maior liquidez e de
maior peso em mercados secundários. Então quem estava sofrendo perdas e precisava de liquidez
recompôs sua carteira se desfazendo de C-Bonds. Como muita
gente vendeu C-Bonds, e o seu
preço no mercado caiu, interpretou-se que essa desvalorização se
devia à situação brasileira. Na verdade, eles estavam sendo vendidos por outros motivos: a recomposição de carteiras. Os nossos
problemas não eram como os da
Rússia. A minha declaração dizia
respeito a esse contexto. Eu queria
dizer que o Brasil não estava condenado a reeditar a experiência
russa.
Folha - Havia uma defasagem
cambial que não foi corrigida devido à reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso?
Malan - Não. Trabalhávamos
com bandas. Elas eram anunciadas publicamente, uma vez por
ano. Íamos fazer a nova mudança
no final de 1998. No dia 8 de setembro de 1998, antes das eleições, o governo lançou um decreto e uma medida provisória.
Anunciamos que faríamos cortes
no Orçamento nos três meses e
três semanas que faltavam para
terminar o ano. Anunciamos o
nosso compromisso fiscal para
dezembro de 1998. Em 14 de setembro, houve uma reunião no
Palácio do Planalto na qual se decidiu a estratégia que seguiríamos: a busca de apoio internacional ao Brasil. Essa estratégia resultou no apoio ao Brasil de 20 bancos centrais.
Folha - A decisão de não acabar
com a farra cambial não foi tomada
também com base num cálculo
eleitoral?
Malan - Não. Se assim fosse, o
governo não anunciaria cortes expressivos no Orçamento antes das
eleições. Discordo radicalmente
dessa interpretação de farra cambial. Isso não ocorreu. No início
de 1999 não houve uma decisão:
fomos forçados a deixar o câmbio
flutuar, em razão do que ocorreu
nas primeiras semanas de janeiro.
Folha - A Lei de Responsabilidade
Fiscal não deveria ser aplicada
também à diretoria do Banco Central e ao ministro da Fazenda?
Malan - Por quê?
Folha - Porque o sr. vai deixar
uma dívida externa do setor público para o próximo governo que hoje está em mais de US$ 60 bilhões.
Malan - Entrei no governo em
meados de 1993, quando o Brasil
estava num quadro hiperinflacionário. Nos 12 meses que antecederam o lançamento do Real, a inflação foi de 5.000%. A decisão que
tomamos foi a de lidar com a inflação, que era uma tarefa prioritária. Eliminamos o imposto inflacionário, mas continuamos enfrentando a pressão por gastos e o
desequilíbrio fiscal. Tivemos de
fazer novos empréstimos. Essas
decisões não foram de uma pessoa. Foram uma política de governo que visava reduzir a taxa de inflação. Essa política tem a ver com
o funcionamento de uma sociedade. Não foram atos de vontade.
Portanto há limites à responsabilização individual de quem aumentou a dívida pública.
Folha - Com o endividamento externo, o governo Geisel fez a Eletrobrás, a Nuclebrás, o pólo petroquímico e a modernização da Petrobras e outras obras de infra-estrutura. Com os recursos da privatização, o governo de Fernando Henrique Cardoso aumentou as reservas do país e não fez grandes
obras. Isso não é uma distorção?
Malan - Usamos os recursos da
privatização no que deveria ser
feito: reduzir o nosso endividamento. Deve-se notar que o Brasil
tinha dívidas líquidas e certas que
não apareciam nas nossas estatísticas. Vivia-se, novamente, na ilusão de que um dia, num futuro
impreciso, essas dívidas seriam
pagas. O atual governo trouxe essas dívidas para as estatísticas e as
estamos pagando.
Folha - O governo preferiu manter a sua credibilidade no exterior a
investir pesadamente em obras de
infra-estrutura?
Malan - Não se trata de credibilidade no exterior. Precisamos ter
credibilidade interna, doméstica.
Folha - Governos como o de Orestes Quércia ou a prefeitura de Paulo Maluf deixaram as finanças do
Estado e da cidade de São Paulo em
petição de miséria. Sem discutir as
obras que fizeram, ou se elas alegraram empreiteiros, ambos investiram na estrutura viária. Já o governo atual até agora não conseguiu terminar a recuperação da
Fernão Dias. O governo não descurou do investimento?
Malan - Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, esses exemplos
que você deu, e outros, não ocorrerão mais no futuro. Esse é um
grande ganho para a sociedade
brasileira. Repito: a inflação mascarava o problema. Foram feitas
obras sem que houvesse dinheiro
para pagá-las. A confusão de milhões, bilhões e trilhões facilitava
os procedimentos aéticos no trato
da coisa pública. Não concordo
com a afirmação de que o governo não fez nada.
Folha - O governo não fez nenhuma obra marcante, no sentido napoleônico, que é o modelo ao qual
o país se acostumou...
Malan - Há poucos projetos de
impacto, anunciados e marqueteados como tal. Talvez sejamos
piores de marketing que a ditadura. Mas as obras do governo são
expressivas, tanto de infra-estrutura como na área social. Devido,
talvez, a uma percepção equivocada, essas obras não aparecem,
não são valorizadas. O tempo se
encarregará de corrigir essa percepção.
Folha - O sr. disse que não é um
fazedor de bolhas de crescimento
da economia e o coloca como uma
perspectiva de médio prazo. Esse
processo não pode ser acelerado?
Malan - Um surto de crescimento é muito fácil de ser gerado. É só
soltar as amarras do crédito público e aumentar os gastos governamentais que se estimula o crescimento a curto prazo. Será um
crescimento de curto prazo, porque ele não se sustenta. É preciso
ter um crescimento sustentado,
com aumento da produtividade
da economia.
Folha - Não dá para acelerar
mais?
Malan - O aceleramento não depende hoje, como no passado, de
grandes decisões de investimento
público, de empresas estatais, de
gastos orçamentários. Numa economia como a brasileira, de enorme diversidade, com crescente
presença do setor privado, o desenvolvimento não depende só
do Estado. Depende de parcerias
com o setor privado, de sinalizações de investimento.
Folha - O que o governo pode fazer para melhorar a vida dos 32 milhões de brasileiros que estão na
miséria?
Malan - É preciso ter uma visão
em perspectiva dessa questão, para evitar a demagogia fácil. Não
basta um ato de vontade para resolver o problema. Há o legado do
passado. Foram 350 anos de escravidão e 300 de colônia, de submissão à coroa portuguesa. Somos uma sociedade que começou
desigual e continuou desigual durante séculos. Não cuidou da educação primária durante centenas
de anos. Em 1940, 70% da população vivia no mundo rural e, portanto, estava fora do debate. Hoje,
80% da população é urbana.
Quando Getúlio Vargas foi eleito
presidente, em 1950, a população
brasileira era de 51 milhões de
pessoas, e ele foi eleito com 3,3
milhões de votos. Esse legado
transparece hoje e não pode ser
resolvido de uma tacada. O historiador Evaldo Cabral de Mello
disse, numa palestra no Itamaraty, que alguns círculos no Brasil
tendem a responsabilizar o governo pelo que aconteceu no país nos
últimos 500 anos. Ele está certo.
Em 1980, cerca de 29% da população brasileira vivia em condições
de pobreza. Em 1998, eles eram
cerca de 20%. Ou seja, a pobreza
diminuiu. E um dos motivos foi a
queda da inflação.
Folha - A sua posição é de acabar
com a pobreza gradualmente, sem
maiores intervenções do Estado?
Malan - A única estratégia viável
de lidar com esse problema é ter
um sentido de urgência, pois esse
é o problema fundamental do
Brasil. Mas de uma urgência que
não seja baseada no salvacionismo, no puro ato de vontade, no
voluntarismo, no exercício de autoridade. Essas coisas são complexas, demandam tempo. O Brasil
se comprometeu, no quadro das
Nações Unidas, a reduzir à metade as formas extremas de pobreza
até 2015. É implausível imaginar
que se consiga essa redução em
um, dois, três ou quatro anos. Tudo isso demanda pesquisa, estudo. Não existe uma só medida,
uma grande solução, um grande
programa que por si só vá erradicar a pobreza. Principalmente se
esse programa for pensado, concebido, desenhado, monitorado e
fiscalizado pela burocracia de
Brasília.
Folha - Num trabalho de 1978, o
sr. escreveu: "O pensamento conservador no Brasil tem sido razoavelmente bem-sucedido em "vender" politicamente uma dicotomia
que consiste na eleição de três "objetivos" (PIB, inflação e balança de
pagamentos) como permanentes e
prioritários e a considerar os demais "objetivos" como problemas
"sociais" a serem eventualmente resolvidos a longo prazo, por meio de
um processo lento e gradual, para
o qual pedia, ou impunha, paciência." Como os conservadores de seu
texto, o sr. está pedindo paciência
aos pobres?
Malan - Não estou pedindo paciência. Pelo contrário. Acho que
é muito positiva a impaciência
com a pobreza. Sempre defendi
essa posição, inclusive no início
dos anos 70, quando não era fácil
falar isso. Minha visão não mudou. Acho um engano, contudo,
que se consiga resolver esse problema sem cuidar das contas do
governo, sem fazer a reforma fiscal, sem conseguir um desenvolvimento auto-sustentado. Assim
como considero um engano
achar que só com o crescimento
vegetativo e o desenvolvimento se
vá vencer a pobreza. Não estou
pedindo ou, muito menos, impondo paciência.
É muito fácil fazer discursos, demonstrar indignação, emoção,
paixão. Dizer que a pobreza pode
ser erradicada num par de anos é
mentira, é iludir o povo, é gerar
expectativas fadadas a serem frustradas.
Folha - É possível diminuir a desigualdade social e a pobreza sem
enfrentar o problema da concentração da propriedade agrária?
Malan - A concentração teve um
enorme papel no nosso passado,
na gestação de uma sociedade desigual em termos de distribuição
de renda e de riqueza. Não acho
que a resolução da desigualdade
social e da indigência passe pela
situação agrária. Ela não é a grande fonte de desigualdade na distribuição de renda. Isso tem muito mais a ver com a educação do
que com a propriedade de terra.
Folha - O que o sr. quis dizer
quando escreveu que o Brasil tem
um problema de auto-estima?
Malan - Existe nos chamados
países que deram certo um respeito pelo passado. Isso acontece
na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Japão. Sem um
mínimo de auto-estima, de identidade com o passado, é difícil
imaginar um país que possa melhorar.
Há no Brasil a tendência, em
certos círculos, de achar que o
passado do país foi ruim, que o
seu presente é péssimo, e ele está
condenado a ter um futuro desastroso. O Brasil, no entanto, tem
uma enorme força criativa na
música, nas artes, na ciência, no
humor, na cultura, tem uma vitalidade política muito grande. Assim como eu era muito crítico, na
época do regime militar, da visão
de destino manifesto, de que estávamos condenados a ser uma
grande potência, também acho
ingênuo e simplório o discurso na
outra direção, o que defende estarmos condenados ao fracasso.
A mim incomoda que certas parcelas da elite intelectual brasileira
achem que o país é uma choldra.
O Nelson Rodrigues perguntava:
o que será do Brasil se o brasileiro
não puder bradar nos botequins,
em alto e bom som, que esse país
não tem jeito mesmo? Nunca concordei com essa visão. Não podemos aceitar, como país, como geração, essa visão niilista, fatalista e
cínica. Na nossa história, há
exemplos de atividade muito positiva.
Folha - O que o sr. acha que há de
relevante no passado brasileiro
que pode ser resgatado e transformado em exemplo de iniciativa?
Malan - Se se compara o que
aconteceu em termos de fragmentação na América espanhola,
constata-se que no Brasil a unidade territorial foi mantida. Isso se
deve em boa parte à diplomacia
brasileira, ao barão do Rio Branco. Houve uma atividade séria e
eficaz para definir fronteiras e fazer acordos com países vizinhos.
O Brasil é o quinto maior do mundo. Foi uma política coerente e
consistente durante mais de um
século. Ela não surgiu do nada.
Surgiu da ação de servidores do
Estado. Ela não deve ser minimizada e pode servir de exemplo.
Veja o analfabetismo, que foi um
problema básico. Em 1920, 2 em
cada 3 brasileiros com mais de 15
anos eram analfabetos. Em 1950, 1
em cada 2 brasileiros era analfabeto. Agora, 1 em cada 8 brasileiros é analfabeto. Ainda é alto, mas
melhorou. Hoje, 97% das crianças
até 15 anos estão na escola. É quase a universalização do ensino
primário. Estamos, ainda, nos indicadores sociais, piores do que
desejaríamos. Mas, na perspectiva histórica, melhoramos muito.
Folha - O sr. cogita ser candidato
a presidente?
Malan - Não, em nenhuma hipótese.
Folha - Nem na hipótese de em
2002 a economia estar crescendo a
uma taxa de 8%, o desemprego estar em 4%, o governo federal estar
com 80% de ótimo e bom nas pesquisas de opinião pública e o presidente dizer que gostaria que o sr.
se candidatasse?
Malan - Se o Brasil estiver com
esses números, o presidente não
terá nenhuma dificuldade em
achar candidatos. Já conversei
inúmeras vezes com o presidente
sobre isso. Ele sabe que nunca fui,
não sou nem serei candidato.
Folha - Por quê?
Malan - Esse tipo de empreitada
demanda uma série de palavras
terminadas em "ão", que não tenho: ambição, vocação, paixão,
dedicação, o sentimento de predestinação, filiação partidária e
votação. Há uma outra coisa. O
grau de personalização, de fulanização do debate público no Brasil,
é um pouco mais elevado do que
eu gostaria. A empreitada presidencial exige um grau de ataques
pessoais que exigem, no nosso
sistema político, resposta no mesmo nível ou alguns decibéis mais
alta. Exigem, em suma, um certo
tipo de personalidade que não é a
minha. Agora, se há jornalistas
que escrevem que acalento no
mais profundo âmago do meu ser
que quero ser presidente, só posso dizer que eles estão demonstrando capacidade mediúnica e
não que trabalham com informações.
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