São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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ENTREVISTA
Ministro da Fazenda afirma não ter perfil para entrar em campanha eleitoral pelo grau de ataques pessoais existente
"Nunca fui, não sou nem serei candidato"


Folha - Em agosto de 1998, o sr. declarou: "Não há razão para que a crise na Rússia tenha efeitos sobre o Brasil". Foi uma previsão errada?
Malan
- A discussão naquele momento era a da contaminação. A Rússia declarou a moratória, o que teve um efeito sério, em termos de demanda de recomposição de carteiras, em escala internacional. O nosso C-Bond tem uma característica: ele é o título de nossa dívida externa de maior volume, de maior liquidez e de maior peso em mercados secundários. Então quem estava sofrendo perdas e precisava de liquidez recompôs sua carteira se desfazendo de C-Bonds. Como muita gente vendeu C-Bonds, e o seu preço no mercado caiu, interpretou-se que essa desvalorização se devia à situação brasileira. Na verdade, eles estavam sendo vendidos por outros motivos: a recomposição de carteiras. Os nossos problemas não eram como os da Rússia. A minha declaração dizia respeito a esse contexto. Eu queria dizer que o Brasil não estava condenado a reeditar a experiência russa.

Folha - Havia uma defasagem cambial que não foi corrigida devido à reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso?
Malan
- Não. Trabalhávamos com bandas. Elas eram anunciadas publicamente, uma vez por ano. Íamos fazer a nova mudança no final de 1998. No dia 8 de setembro de 1998, antes das eleições, o governo lançou um decreto e uma medida provisória. Anunciamos que faríamos cortes no Orçamento nos três meses e três semanas que faltavam para terminar o ano. Anunciamos o nosso compromisso fiscal para dezembro de 1998. Em 14 de setembro, houve uma reunião no Palácio do Planalto na qual se decidiu a estratégia que seguiríamos: a busca de apoio internacional ao Brasil. Essa estratégia resultou no apoio ao Brasil de 20 bancos centrais.

Folha - A decisão de não acabar com a farra cambial não foi tomada também com base num cálculo eleitoral?
Malan
- Não. Se assim fosse, o governo não anunciaria cortes expressivos no Orçamento antes das eleições. Discordo radicalmente dessa interpretação de farra cambial. Isso não ocorreu. No início de 1999 não houve uma decisão: fomos forçados a deixar o câmbio flutuar, em razão do que ocorreu nas primeiras semanas de janeiro.

Folha - A Lei de Responsabilidade Fiscal não deveria ser aplicada também à diretoria do Banco Central e ao ministro da Fazenda?
Malan
- Por quê?

Folha - Porque o sr. vai deixar uma dívida externa do setor público para o próximo governo que hoje está em mais de US$ 60 bilhões.
Malan
- Entrei no governo em meados de 1993, quando o Brasil estava num quadro hiperinflacionário. Nos 12 meses que antecederam o lançamento do Real, a inflação foi de 5.000%. A decisão que tomamos foi a de lidar com a inflação, que era uma tarefa prioritária. Eliminamos o imposto inflacionário, mas continuamos enfrentando a pressão por gastos e o desequilíbrio fiscal. Tivemos de fazer novos empréstimos. Essas decisões não foram de uma pessoa. Foram uma política de governo que visava reduzir a taxa de inflação. Essa política tem a ver com o funcionamento de uma sociedade. Não foram atos de vontade. Portanto há limites à responsabilização individual de quem aumentou a dívida pública.

Folha - Com o endividamento externo, o governo Geisel fez a Eletrobrás, a Nuclebrás, o pólo petroquímico e a modernização da Petrobras e outras obras de infra-estrutura. Com os recursos da privatização, o governo de Fernando Henrique Cardoso aumentou as reservas do país e não fez grandes obras. Isso não é uma distorção?
Malan
- Usamos os recursos da privatização no que deveria ser feito: reduzir o nosso endividamento. Deve-se notar que o Brasil tinha dívidas líquidas e certas que não apareciam nas nossas estatísticas. Vivia-se, novamente, na ilusão de que um dia, num futuro impreciso, essas dívidas seriam pagas. O atual governo trouxe essas dívidas para as estatísticas e as estamos pagando.

Folha - O governo preferiu manter a sua credibilidade no exterior a investir pesadamente em obras de infra-estrutura?
Malan
- Não se trata de credibilidade no exterior. Precisamos ter credibilidade interna, doméstica.

Folha - Governos como o de Orestes Quércia ou a prefeitura de Paulo Maluf deixaram as finanças do Estado e da cidade de São Paulo em petição de miséria. Sem discutir as obras que fizeram, ou se elas alegraram empreiteiros, ambos investiram na estrutura viária. Já o governo atual até agora não conseguiu terminar a recuperação da Fernão Dias. O governo não descurou do investimento?
Malan
- Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, esses exemplos que você deu, e outros, não ocorrerão mais no futuro. Esse é um grande ganho para a sociedade brasileira. Repito: a inflação mascarava o problema. Foram feitas obras sem que houvesse dinheiro para pagá-las. A confusão de milhões, bilhões e trilhões facilitava os procedimentos aéticos no trato da coisa pública. Não concordo com a afirmação de que o governo não fez nada.

Folha - O governo não fez nenhuma obra marcante, no sentido napoleônico, que é o modelo ao qual o país se acostumou...
Malan
- Há poucos projetos de impacto, anunciados e marqueteados como tal. Talvez sejamos piores de marketing que a ditadura. Mas as obras do governo são expressivas, tanto de infra-estrutura como na área social. Devido, talvez, a uma percepção equivocada, essas obras não aparecem, não são valorizadas. O tempo se encarregará de corrigir essa percepção.


Folha - O sr. disse que não é um fazedor de bolhas de crescimento da economia e o coloca como uma perspectiva de médio prazo. Esse processo não pode ser acelerado?
Malan
- Um surto de crescimento é muito fácil de ser gerado. É só soltar as amarras do crédito público e aumentar os gastos governamentais que se estimula o crescimento a curto prazo. Será um crescimento de curto prazo, porque ele não se sustenta. É preciso ter um crescimento sustentado, com aumento da produtividade da economia.

Folha - Não dá para acelerar mais?
Malan
- O aceleramento não depende hoje, como no passado, de grandes decisões de investimento público, de empresas estatais, de gastos orçamentários. Numa economia como a brasileira, de enorme diversidade, com crescente presença do setor privado, o desenvolvimento não depende só do Estado. Depende de parcerias com o setor privado, de sinalizações de investimento.

Folha - O que o governo pode fazer para melhorar a vida dos 32 milhões de brasileiros que estão na miséria?
Malan
- É preciso ter uma visão em perspectiva dessa questão, para evitar a demagogia fácil. Não basta um ato de vontade para resolver o problema. Há o legado do passado. Foram 350 anos de escravidão e 300 de colônia, de submissão à coroa portuguesa. Somos uma sociedade que começou desigual e continuou desigual durante séculos. Não cuidou da educação primária durante centenas de anos. Em 1940, 70% da população vivia no mundo rural e, portanto, estava fora do debate. Hoje, 80% da população é urbana. Quando Getúlio Vargas foi eleito presidente, em 1950, a população brasileira era de 51 milhões de pessoas, e ele foi eleito com 3,3 milhões de votos. Esse legado transparece hoje e não pode ser resolvido de uma tacada. O historiador Evaldo Cabral de Mello disse, numa palestra no Itamaraty, que alguns círculos no Brasil tendem a responsabilizar o governo pelo que aconteceu no país nos últimos 500 anos. Ele está certo. Em 1980, cerca de 29% da população brasileira vivia em condições de pobreza. Em 1998, eles eram cerca de 20%. Ou seja, a pobreza diminuiu. E um dos motivos foi a queda da inflação.

Folha - A sua posição é de acabar com a pobreza gradualmente, sem maiores intervenções do Estado?
Malan
- A única estratégia viável de lidar com esse problema é ter um sentido de urgência, pois esse é o problema fundamental do Brasil. Mas de uma urgência que não seja baseada no salvacionismo, no puro ato de vontade, no voluntarismo, no exercício de autoridade. Essas coisas são complexas, demandam tempo. O Brasil se comprometeu, no quadro das Nações Unidas, a reduzir à metade as formas extremas de pobreza até 2015. É implausível imaginar que se consiga essa redução em um, dois, três ou quatro anos. Tudo isso demanda pesquisa, estudo. Não existe uma só medida, uma grande solução, um grande programa que por si só vá erradicar a pobreza. Principalmente se esse programa for pensado, concebido, desenhado, monitorado e fiscalizado pela burocracia de Brasília.

Folha - Num trabalho de 1978, o sr. escreveu: "O pensamento conservador no Brasil tem sido razoavelmente bem-sucedido em "vender" politicamente uma dicotomia que consiste na eleição de três "objetivos" (PIB, inflação e balança de pagamentos) como permanentes e prioritários e a considerar os demais "objetivos" como problemas "sociais" a serem eventualmente resolvidos a longo prazo, por meio de um processo lento e gradual, para o qual pedia, ou impunha, paciência." Como os conservadores de seu texto, o sr. está pedindo paciência aos pobres?
Malan
- Não estou pedindo paciência. Pelo contrário. Acho que é muito positiva a impaciência com a pobreza. Sempre defendi essa posição, inclusive no início dos anos 70, quando não era fácil falar isso. Minha visão não mudou. Acho um engano, contudo, que se consiga resolver esse problema sem cuidar das contas do governo, sem fazer a reforma fiscal, sem conseguir um desenvolvimento auto-sustentado. Assim como considero um engano achar que só com o crescimento vegetativo e o desenvolvimento se vá vencer a pobreza. Não estou pedindo ou, muito menos, impondo paciência.
É muito fácil fazer discursos, demonstrar indignação, emoção, paixão. Dizer que a pobreza pode ser erradicada num par de anos é mentira, é iludir o povo, é gerar expectativas fadadas a serem frustradas.

Folha - É possível diminuir a desigualdade social e a pobreza sem enfrentar o problema da concentração da propriedade agrária?
Malan
- A concentração teve um enorme papel no nosso passado, na gestação de uma sociedade desigual em termos de distribuição de renda e de riqueza. Não acho que a resolução da desigualdade social e da indigência passe pela situação agrária. Ela não é a grande fonte de desigualdade na distribuição de renda. Isso tem muito mais a ver com a educação do que com a propriedade de terra.


Folha - O que o sr. quis dizer quando escreveu que o Brasil tem um problema de auto-estima?
Malan
- Existe nos chamados países que deram certo um respeito pelo passado. Isso acontece na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Japão. Sem um mínimo de auto-estima, de identidade com o passado, é difícil imaginar um país que possa melhorar.
Há no Brasil a tendência, em certos círculos, de achar que o passado do país foi ruim, que o seu presente é péssimo, e ele está condenado a ter um futuro desastroso. O Brasil, no entanto, tem uma enorme força criativa na música, nas artes, na ciência, no humor, na cultura, tem uma vitalidade política muito grande. Assim como eu era muito crítico, na época do regime militar, da visão de destino manifesto, de que estávamos condenados a ser uma grande potência, também acho ingênuo e simplório o discurso na outra direção, o que defende estarmos condenados ao fracasso. A mim incomoda que certas parcelas da elite intelectual brasileira achem que o país é uma choldra. O Nelson Rodrigues perguntava: o que será do Brasil se o brasileiro não puder bradar nos botequins, em alto e bom som, que esse país não tem jeito mesmo? Nunca concordei com essa visão. Não podemos aceitar, como país, como geração, essa visão niilista, fatalista e cínica. Na nossa história, há exemplos de atividade muito positiva.

Folha - O que o sr. acha que há de relevante no passado brasileiro que pode ser resgatado e transformado em exemplo de iniciativa?
Malan
- Se se compara o que aconteceu em termos de fragmentação na América espanhola, constata-se que no Brasil a unidade territorial foi mantida. Isso se deve em boa parte à diplomacia brasileira, ao barão do Rio Branco. Houve uma atividade séria e eficaz para definir fronteiras e fazer acordos com países vizinhos. O Brasil é o quinto maior do mundo. Foi uma política coerente e consistente durante mais de um século. Ela não surgiu do nada. Surgiu da ação de servidores do Estado. Ela não deve ser minimizada e pode servir de exemplo. Veja o analfabetismo, que foi um problema básico. Em 1920, 2 em cada 3 brasileiros com mais de 15 anos eram analfabetos. Em 1950, 1 em cada 2 brasileiros era analfabeto. Agora, 1 em cada 8 brasileiros é analfabeto. Ainda é alto, mas melhorou. Hoje, 97% das crianças até 15 anos estão na escola. É quase a universalização do ensino primário. Estamos, ainda, nos indicadores sociais, piores do que desejaríamos. Mas, na perspectiva histórica, melhoramos muito.

Folha - O sr. cogita ser candidato a presidente?
Malan
- Não, em nenhuma hipótese.

Folha - Nem na hipótese de em 2002 a economia estar crescendo a uma taxa de 8%, o desemprego estar em 4%, o governo federal estar com 80% de ótimo e bom nas pesquisas de opinião pública e o presidente dizer que gostaria que o sr. se candidatasse?
Malan
- Se o Brasil estiver com esses números, o presidente não terá nenhuma dificuldade em achar candidatos. Já conversei inúmeras vezes com o presidente sobre isso. Ele sabe que nunca fui, não sou nem serei candidato.

Folha - Por quê?
Malan
- Esse tipo de empreitada demanda uma série de palavras terminadas em "ão", que não tenho: ambição, vocação, paixão, dedicação, o sentimento de predestinação, filiação partidária e votação. Há uma outra coisa. O grau de personalização, de fulanização do debate público no Brasil, é um pouco mais elevado do que eu gostaria. A empreitada presidencial exige um grau de ataques pessoais que exigem, no nosso sistema político, resposta no mesmo nível ou alguns decibéis mais alta. Exigem, em suma, um certo tipo de personalidade que não é a minha. Agora, se há jornalistas que escrevem que acalento no mais profundo âmago do meu ser que quero ser presidente, só posso dizer que eles estão demonstrando capacidade mediúnica e não que trabalham com informações.


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