São Paulo, segunda-feira, 15 de novembro de 2004

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BRASIL PROFUNDO

Para Pio Cinta Larga, envolvimento com hábito urbano é irreversível

Líder cinta-larga afirma que diamante é pior que cocaína

Tuca Vieira/Folha Imagem
O chefe Nacoça Pio Cinta Larga durante entrevista em Rondônia


DA ENVIADA ESPECIAL A CACOAL (RO)

A Polícia Federal está na iminência de concluir o inquérito que vai apontar os autores e os mandantes dos assassinatos de 29 garimpeiros na reserva indígena Roosevelt, ocorridos em abril deste ano. No centro da investigação estão líderes indígenas que teriam autorizado o massacre.
Nacoça Pio Cinta Larga, 45 presumidos, um dos principais líderes dos cintas-largas, diz que os índios estão com medo e são hostilizados pela população branca.
Ele diz que o diamante ""é pior do que cocaína", por causa da extração e do comércio clandestinos, e defende a legalização do garimpo pelo governo federal.
A extração mineral em terras indígenas é proibida pela legislação.
Com português fluente, Pio falou com a Folha no escritório da Funai, em Cacoal, Rondônia.
(ELVIRA LOBATO)
 

Folha - O diamante foi uma benção ou uma desgraça para os cintas-largas?
Nacoça Pio Cinta Larga -
Por um lado é bom, mas por outro trouxe muita coisa ruim. Nós queria que o governo legalizasse, mas, com a morte dos garimpeiros, a população revoltou contra a gente. Um índio foi amarrado [na praça central em Espigão do Oeste, após o massacre, em abril]. A gente ficou com medo também. Hoje o pessoal só critica índio. Metem o pau no índio pelos jornais. Não vêem o que o branco está fazendo lá dentro. Qualquer fazendeiro branco, se um monte de gente trabalhar sem permissão na terra dele, vai fazer igual. O diamante é pior do que cocaína. Não deixam a gente vender, não deixam trabalhar. Não queremos coisa irregular como agora, vender com medo. Estamos tipo bandido.

Folha - Quando o homem branco entrou na reserva pela primeira vez?
Pio Cinta Larga -
Nosso primeiro contato com o homem branco foi com garimpeiro. Eu era menino quando chegou o pessoal com peneira.

Folha - O senhor se lembra do primeiro contato?
Pio Cinta Larga -
Me lembro. Umas aldeias contavam que tinha branco dando coisas. Nós achava que quando a gente fosse aparecer eles iam matar nós, mas receberam bem nós. Não teve briga nem nada. Eles davam comida pra gente. Em 1972, eu já era rapaz, conheci dinheiro. Perdi meu pai, minha mãe, família, quase tudo. Comecei a se enturmar no meio de branco. Foi onde nós não teve saída para continuar no mato. Aprendi a comer comida de branco. Foi difícil, sabe. Qualquer comida pra mim tinha cheiro forte. Eu aprendi devagarinho.
Fui aprendendo a falar um pouco [o português]. O pessoal falava e não tinha significado. Aí comecei a trabalhar, e a Funai pagou salário [de intérprete].

Folha - É verdade que os cintas-largas se acostumaram com o conforto e não querem viver como antes?
Pio Cinta Larga -
Olha, a cultura branca obriga. Não tem como voltar mais. Acostumamos a comer comida temperada. A cultura do branco é muito problemática pro índio. Tem de dar conta da família, tem de dar estudo, tem de pagar conta de luz e água na cidade. Na aldeia, nem tanto, mas quando precisa de alguma coisa é preciso sair para comprar na cidade. Hoje se você entrar numa loja não gasta menos de R$ 100. O índio tem de comprar tudo. Tem de ir ao supermercado, mas na hora de vender o diamante, é proibido. O índio é perseguido. A polícia pega ele se tiver com diamante. Se tiver com muito dinheiro, querem saber onde conseguiu.

Folha - Tem saudade do tempo em que viviam isolados?
Pio Cinta Larga -
Não. Estou chegando à idade avançada, estou vivendo o que posso. Estou preocupado em levar crianças para estudar. Hoje, a gente quer defender o que é da gente, defender nossos direitos. Para defender direitos, tem de estudar.

Folha - Quando só conhecia a selva, o índio era mais feliz?
Pio Cinta Larga -
Era mais feliz. Não tinha essa preocupação.

Folha - Qual é a produção de diamante dentro da reserva?
Pio Cinta Larga -
Depende.

Folha - Uma pedra por dia?
Pio Cinta Larga -
Duas, três.

Folha - Os senhores sabem avaliar as pedras?
Pio Cinta Larga -
Mais ou menos. Tem um pessoal que trabalha lá e tem noção. (...) O preço varia, depende da cor, se é perfeito ou não. O diamante para indústria varia de US$ 30 a US$ 60 o quilate. O diamante bom [para joalheria] chega a US$ 1.800 o quilate. O preço é calculado em dólar, mas o pagamento é em real.

Folha - O que compraram para as aldeias com o dinheiro?
Pio Cinta Larga -
No Roosevelt, onde moro, fizemos a casa de material, pasto, compramos um pouco de gado. Não é como o pessoal de fora diz, que há muito diamante. Tem um ano e pouco que ninguém branco entra lá.

Folha - Como chegam aos compradores, já que é ilegal?
Pio Cinta Larga -
Tem pessoas que vão lá, vêem o negócio, e tal. Tem sempre comprador. Quem pagar leva.

Folha - Os compradores que vêm a Rondônia são os mesmos que agem nos demais Estados?
Pio Cinta Larga -
Parece que é uma máfia só. Quando um paga um preço, os outros sabem tudo.

Folha - Como eles sabem que foi achado um diamante?
Pio Cinta Larga -
Tem muita fofoca. O próprio índio diz.

Folha - Quando um índio acha um diamante valioso ele divide a riqueza com os outros?
Pio Cinta Larga -
Os mais velhos dividem, mas os mais jovens, que têm a idéia do branco, não querem nem saber. Uma pedra foi vendida por US$ 7 milhões nos Estados Unidos [ela teria sido comprada por R$ 100 mil dos índios]. Deu no jornal. Quem descobriu não contou para os outros.

Folha - Por que foram mortos os 29 garimpeiros?
Pio Cinta Larga -
Eu sei mais ou menos. Tinha um tal de Baiano Doido que comandava os garimpeiros. Falaram que ele ia assaltar, que ia matar [os índios]. O índio descobriu que tinham achado outra grota [com diamante]. Baiano Doido quis ficar só pra ele e disse que ia matar os índios. (...) Aí mataram lá. Eu não estava na aldeia. Isso foi o que a Funai e a Polícia descobriram. Hoje eu vejo que o garimpeiro é um pobre coitado. Entra lá por necessidade.

Folha - O senhor disse à PF, em junho, que o governador de Rondônia pediu participação na produção de diamantes para autorizar a construção de escolas e melhorar a estrada de acesso às aldeias.
Pio Cinta Larga -
Nós teve conversa em Rolim [município de Rolim de Moura, RO], no ano passado. Pedimos que ajudasse na estrada. Daí ele falou: tem que ter ajuda da parte de vocês também. Vê 2% aí, e a gente faz estrada. (...).Queremos escola da 1ª à 8ª série. Na aldeia só tem até a 4ª série, e depois é preciso mandar as crianças para a cidade. Aí elas aprendem a beber, a fumar. Isso não queremos. A aldeia fica vazia.


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