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BRASIL PROFUNDO
Para Pio Cinta Larga, envolvimento com hábito urbano é irreversível
Líder cinta-larga afirma que diamante é pior que cocaína
Tuca Vieira/Folha Imagem
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O chefe Nacoça Pio Cinta Larga durante entrevista em Rondônia |
DA ENVIADA ESPECIAL A CACOAL (RO)
A Polícia Federal está na iminência de concluir o inquérito
que vai apontar os autores e os
mandantes dos assassinatos de 29
garimpeiros na reserva indígena
Roosevelt, ocorridos em abril deste ano. No centro da investigação
estão líderes indígenas que teriam
autorizado o massacre.
Nacoça Pio Cinta Larga, 45 presumidos, um dos principais líderes dos cintas-largas, diz que os
índios estão com medo e são hostilizados pela população branca.
Ele diz que o diamante ""é pior
do que cocaína", por causa da extração e do comércio clandestinos, e defende a legalização do garimpo pelo governo federal.
A extração mineral em terras indígenas é proibida pela legislação.
Com português fluente, Pio falou com a Folha no escritório da
Funai, em Cacoal, Rondônia.
(ELVIRA LOBATO)
Folha - O diamante foi uma
benção ou uma desgraça para os
cintas-largas?
Nacoça Pio Cinta Larga - Por um
lado é bom, mas por outro trouxe
muita coisa ruim. Nós queria que
o governo legalizasse, mas, com a
morte dos garimpeiros, a população revoltou contra a gente. Um
índio foi amarrado [na praça central em Espigão do Oeste, após o
massacre, em abril]. A gente ficou
com medo também. Hoje o pessoal só critica índio. Metem o pau
no índio pelos jornais. Não vêem
o que o branco está fazendo lá
dentro. Qualquer fazendeiro
branco, se um monte de gente trabalhar sem permissão na terra dele, vai fazer igual. O diamante é
pior do que cocaína. Não deixam
a gente vender, não deixam trabalhar. Não queremos coisa irregular como agora, vender com medo. Estamos tipo bandido.
Folha - Quando o homem branco
entrou na reserva pela primeira
vez?
Pio Cinta Larga - Nosso primeiro
contato com o homem branco foi
com garimpeiro. Eu era menino
quando chegou o pessoal com peneira.
Folha - O senhor se lembra do primeiro contato?
Pio Cinta Larga - Me lembro.
Umas aldeias contavam que tinha
branco dando coisas. Nós achava
que quando a gente fosse aparecer
eles iam matar nós, mas receberam bem nós. Não teve briga nem
nada. Eles davam comida pra
gente. Em 1972, eu já era rapaz,
conheci dinheiro. Perdi meu pai,
minha mãe, família, quase tudo.
Comecei a se enturmar no meio
de branco. Foi onde nós não teve
saída para continuar no mato.
Aprendi a comer comida de branco. Foi difícil, sabe. Qualquer comida pra mim tinha cheiro forte.
Eu aprendi devagarinho.
Fui aprendendo a falar um pouco [o português]. O pessoal falava
e não tinha significado. Aí comecei a trabalhar, e a Funai pagou salário [de intérprete].
Folha - É verdade que os cintas-largas se acostumaram com o conforto e não querem viver como antes?
Pio Cinta Larga - Olha, a cultura
branca obriga. Não tem como voltar mais. Acostumamos a comer
comida temperada. A cultura do
branco é muito problemática pro
índio. Tem de dar conta da família, tem de dar estudo, tem de pagar conta de luz e água na cidade.
Na aldeia, nem tanto, mas quando precisa de alguma coisa é preciso sair para comprar na cidade.
Hoje se você entrar numa loja não
gasta menos de R$ 100. O índio
tem de comprar tudo. Tem de ir
ao supermercado, mas na hora de
vender o diamante, é proibido. O
índio é perseguido. A polícia pega
ele se tiver com diamante. Se tiver
com muito dinheiro, querem saber onde conseguiu.
Folha - Tem saudade do tempo
em que viviam isolados?
Pio Cinta Larga - Não. Estou chegando à idade avançada, estou vivendo o que posso. Estou preocupado em levar crianças para estudar. Hoje, a gente quer defender o
que é da gente, defender nossos
direitos. Para defender direitos,
tem de estudar.
Folha - Quando só conhecia a selva, o índio era mais feliz?
Pio Cinta Larga - Era mais feliz.
Não tinha essa preocupação.
Folha - Qual é a produção de diamante dentro da reserva?
Pio Cinta Larga - Depende.
Folha - Uma pedra por dia?
Pio Cinta Larga - Duas, três.
Folha - Os senhores sabem avaliar as pedras?
Pio Cinta Larga - Mais ou menos.
Tem um pessoal que trabalha lá e
tem noção. (...) O preço varia, depende da cor, se é perfeito ou não.
O diamante para indústria varia
de US$ 30 a US$ 60 o quilate. O
diamante bom [para joalheria]
chega a US$ 1.800 o quilate. O preço é calculado em dólar, mas o pagamento é em real.
Folha - O que compraram para as
aldeias com o dinheiro?
Pio Cinta Larga - No Roosevelt,
onde moro, fizemos a casa de material, pasto, compramos um
pouco de gado. Não é como o pessoal de fora diz, que há muito diamante. Tem um ano e pouco que
ninguém branco entra lá.
Folha - Como chegam aos compradores, já que é ilegal?
Pio Cinta Larga - Tem pessoas
que vão lá, vêem o negócio, e tal.
Tem sempre comprador. Quem
pagar leva.
Folha - Os compradores que vêm
a Rondônia são os mesmos que
agem nos demais Estados?
Pio Cinta Larga - Parece que é
uma máfia só. Quando um paga
um preço, os outros sabem tudo.
Folha - Como eles sabem que foi
achado um diamante?
Pio Cinta Larga - Tem muita fofoca. O próprio índio diz.
Folha - Quando um índio acha um
diamante valioso ele divide a riqueza com os outros?
Pio Cinta Larga - Os mais velhos
dividem, mas os mais jovens, que
têm a idéia do branco, não querem nem saber. Uma pedra foi
vendida por US$ 7 milhões nos
Estados Unidos [ela teria sido
comprada por R$ 100 mil dos índios]. Deu no jornal. Quem descobriu não contou para os outros.
Folha - Por que foram mortos os
29 garimpeiros?
Pio Cinta Larga - Eu sei mais ou
menos. Tinha um tal de Baiano
Doido que comandava os garimpeiros. Falaram que ele ia assaltar,
que ia matar [os índios]. O índio
descobriu que tinham achado outra grota [com diamante]. Baiano
Doido quis ficar só pra ele e disse
que ia matar os índios. (...) Aí mataram lá. Eu não estava na aldeia.
Isso foi o que a Funai e a Polícia
descobriram. Hoje eu vejo que o
garimpeiro é um pobre coitado.
Entra lá por necessidade.
Folha - O senhor disse à PF, em junho, que o governador de Rondônia pediu participação na produção de diamantes para autorizar a
construção de escolas e melhorar a
estrada de acesso às aldeias.
Pio Cinta Larga - Nós teve conversa em Rolim [município de
Rolim de Moura, RO], no ano
passado. Pedimos que ajudasse
na estrada. Daí ele falou: tem que
ter ajuda da parte de vocês também. Vê 2% aí, e a gente faz estrada. (...).Queremos escola da 1ª à 8ª
série. Na aldeia só tem até a 4ª série, e depois é preciso mandar as
crianças para a cidade. Aí elas
aprendem a beber, a fumar. Isso
não queremos. A aldeia fica vazia.
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