São Paulo, quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

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ELIO GASPARI

Envenenaram a relação Brasil-Argentina

Fenomenal a política externa de Lula. Deu à China as chaves das alfândegas brasileiras e dispensou os Estados Unidos de policiarem o Haiti (cujo presidente ajudaram a depor). Tudo isso num grande cenário de inédita encrenca com a Argentina.
Lula e Néstor Kirchner estranharam-se. Isso aconteceu muito mais por conta do temperamento mercurial do presidente argentino do que pela pretensão de liderança interplanetária do governante brasileiro. Não é a primeira vez que o inquilino do Planalto tem que descascar esse tipo de abacaxi. Fernando Henrique Cardoso agüentou Carlos Menem, de quem tinha aquele horror que os professores da Sorbonne têm de sessentões que usam pulseira de ouro. Ernesto Geisel aturou Juan Perón, evitando encontrá-lo. Emílio Médici suportou uma grosseria do general Agustín Lanusse durante um jantar no Itamaraty, em 1972.
Há na atual encrenca argentina uma agenda comercial que a diplomacia de Lula vem administrando como pode. É uma briga racional, com argentinos e brasileiros defendendo seus interesses. Se fosse só isso, bastaria um conserto no aspecto pessoal da relação dos dois presidentes e ia-se em frente. Infelizmente, tem mais.
O ponto crítico da encrenca está na conduta felina da ekipekonômica brasileira diante da delicada negociação do governo argentino com seus credores internacionais. Os doutores acham que a proposta de Kirchner de pagar só uma parte dos US$ 103 bilhões do que devem à banca internacional é irracional, inviável e estapafúrdia. Que seja assim. O que é que o governo brasileiro tem a ver com isso?
Em 1982 o general Leopoldo Galtieri achou que podia invadir colônia britânica das ilhas Malvinas, faturar a união de seu povo e prorrogar sua ditadura. Se o general bebesse menos, suspeitaria que a Inglaterra haveria de surrar seus generais habituados à valentia de jogar presos dopados no oceano. A idéia de Galtieri era irracional, inviável e estapafúrdia. A diplomacia brasileira solidarizou-se com a Argentina ao limite da insanidade. Lembrou que desde 1833 apoiava o pleito anticolonialista, negou pouso aos aviões de guerra britânicos e falou o mínimo possível.
Lula devia passar os olhos num papelório que o general João Figueiredo levou para Washington, onde se encontraria com o presidente Ronald Reagan em maio de 1982. Leria o seguinte: "O Brasil é um país vizinho e amigo da Argentina. Nossa posição terá sempre presente essa circunstância. A paz, a prosperidade e o bem-estar em nossa região dependem, para o futuro, dessa relação, sem ressentimentos e dúvidas".
Se não tiverem ateado fogo a esse documento (tem duas páginas), bem que o chanceler Celso Amorim poderia mandar cópias para os doutores da ekipekonômica que futricam a negociação da dívida argentina. Um deles, Murilo Portugal, representante do Brasil no FMI, já provocou reclamações públicas na imprensa de Buenos Aires.
O braço financeiro do governo petista não precisa militar na tese da renegociação, mas também não precisa atrapalhar. Muito menos fazer isso em Washington, sugerindo que é preciso endurecer com os argentinos para evitar que um êxito de Kirchner contamine os bugres do partido do presidente brasileiro, levando-os de volta às besteiras de suas plataformas dos anos 70, 80 e 90.
Como dizia o embaixador Ítalo Zappa: tem gente que, em vez de ir direto para o serviço, devia passar a manhã dando expediente na embaixada americana.


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