São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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LANTERNA NA POPA
Em berço esplêndido

ROBERTO CAMPOS

A recente reedição, pela Editora Topbooks, do livro do embaixador Meira Penna "Em Berço Esplêndido" constituiu para mim uma festa cultural de fim de ano, pela espantosa erudição do autor, um corajoso defensor do liberalismo.
Dizia o filósofo Schopenhauer que os primeiros 40 anos da vida humana são "o texto"; os 30 subsequentes são "comentários". Nada diz sobre o resto, pois morreu aos 72 anos. Presume-se que a partir dos 70 a gente vire nota de rodapé. Orgulho-me de que, da minha geração do Itamaraty, sobrevivem setentões e oitentões que são campeões de erudição, como Oscar Lorenzo Fernandes (economista, matemático, filósofo e historiador), Mario Vieira de Mello (filósofo e cientista político) e José Oswaldo de Meira Penna, proprietário de cultura ecumênica, que vai da filosofia à sociologia, à psicologia e à literatura. Felizmente, nenhum deles virou nota de rodapé. Infelizmente, nenhum deles atingiu posição de comando na máquina burocrática de nossa política externa. Zelosos de sua independência crítica, nunca se filiaram às "igrejinhas" que confundiam deformações ideológicas com "Realpolitik". Durante certo tempo, até mesmo em fases do período militar, um diplomata "progressista" tinha que demonstrar capacidade de saborear um coquetel maldito, com os seguintes ingredientes: uma pitada de antiamericanismo (como uma espécie de machismo residual); uma dose de esquerdismo (suficiente para provar imunidade ao capitalismo liberal); um toque de paranóia desenvolvimentista (apoio à política de informática e ao acordo nuclear com a Alemanha, que gerou mais dívidas que quilowatts); um verniz de terceiromundismo custoso e ingênuo (como se a liderança na gafieira compensasse a bola-preta recebida no Country Clube).
Esse coquetel seria impalatável para alguém como Meira Penna, que sempre preferiu Adam Smith a Karl Marx, Hayek a Keynes, Jung a Freud, o liberalismo ao socialismo. Em vez de paparicar mitos e preconceitos, dedicou-se ele à tarefa de Entzauberung (desencantamento ou desmistificação), que Weber considerava prelúdio indispensável da racionalidade econômica. Foi o que fez em vários livros, como os de minha trilogia preferida, "A psicologia do subdesenvolvimento" (1972), "O espírito das Revoluções" (1997) e "Em berço esplêndido", agora revisto devido às grandes transformações trazidas pelo colapso do socialismo. Solidários na angústia, Meira Penna e eu nos temos preocupado ao longo dos anos com a pergunta não-respondida: por que o Brasil continua pobre e subdesenvolvido? A pergunta é sobretudo vexatória agora que o país completa 500 anos, 107 anos a mais que a primeira colonização inglesa na Virgínia, da qual resultou a maior superpotência que o mundo já conheceu.
Com minha deformação profissional de economista, limito-me a explicar nosso atraso pela "doença dos ismos": o nacionalismo (temperamental), o populismo (perdulário), o estruturalismo (inflacionário), o estatismo (intervencionista) e o protecionismo (anticompetitivo). Há inúmeras explicações sociológicas que enfatizam fatores culturais, como a herança ibérica, ora com pessimismo racial (Oliveira Vianna), ora com uma visão condescendente da miscegenação (Gilberto Freire). Não faltam os reducionistas que recorrem a determinismos raciais ou climáticos, supostamente limitativos das civilizações tropicais.
Meira Penna é bastante original em usar o instrumental de Carl Gustav Jung para submeter nossa história a um exame de psicologia coletiva. Como é sabido, das três grandes vertentes da psicanálise, Freud enfatiza a libido pan-sexual, Adler, o instinto do poder, e, Jung, o dualismo entre a atitude extrovertida, voltada para o mundo exterior, e a atitude introvertida concentrada sobre imagens e sensações interiores.
Meira Penna sublinha com razão a básica polarização da cultura ocidental entre um setor nórdico e um setor mediterrâneo, tendo o primeiro contribuído maciçamente para a expansão técnico/ científica, e o segundo, para as artes e o humanismo. Prometeu e Fausto seriam protótipos do primeiro, Epimeteu é Don Juan, do segundo. Neste continente, os Estados Unidos e os ex-domínios britânicos seriam parte da cultura nórdica, enquanto o Brasil, com sua "civilização morena", carrega a herança mediterrânea do patrimonialismo afetivo. Contrapõem-se assim a civilização lógico-pragmática e a civilização erótico-intuicionista. Meira Penna faz uma crítica impiedosa, mas salutar, dos nossos vícios do familismo paternalista, da dependência do Estado, como se fôssemos infantes perpétuos, e de nossa inconfiabilidade na execução contratual, em contraste com o pragmatismo racional de nossos irmãos do Norte. Este "sustenta a responsabilidade abstrata do cidadão", facilitando tanto a implantação da democracia como a competição no mercado.
No afã de exemplificar arquétipos junguianos, Meira Penna produziu belas passagens literárias sobre a introversão quase desumana dos personagens de Machado de Assis, capazes de paixões pessoais, porém insensíveis, por pessoas abstratas, sobre a energia primordial da libido descrita no "Gabriela, cravo e canela", de Jorge Amado, assim como, em dissertações eruditas, sobre a simbologia do segundo Fausto de Goethe e do drama shakespereano de Otelo, que simboliza a construção racional por sua sombra, Iago, de um ciúme irracional e autodestrutivo. A desconstrução por Meira Penna de mitos e tabus de nossa cultura morena é uma contribuição importante para nossa transformação "liberal" tanto em política como em economia.
Mas fica sempre a dúvida cruel: haverá salvação para um país que em seu hino nacional se declara "deitado eternamente em berço esplêndido" e cujo maior exemplo de dinâmica associativa espontânea é o Carnaval?


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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