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LANTERNA NA POPA
Em berço esplêndido
ROBERTO CAMPOS
A recente reedição, pela Editora Topbooks, do livro do embaixador Meira Penna "Em Berço
Esplêndido" constituiu para
mim uma festa cultural de fim
de ano, pela espantosa erudição
do autor, um corajoso defensor
do liberalismo.
Dizia o filósofo Schopenhauer
que os primeiros 40 anos da vida
humana são "o texto"; os 30
subsequentes são "comentários". Nada diz sobre o resto,
pois morreu aos 72 anos. Presume-se que a partir dos 70 a gente
vire nota de rodapé. Orgulho-me de que, da minha geração do
Itamaraty, sobrevivem setentões
e oitentões que são campeões de
erudição, como Oscar Lorenzo
Fernandes (economista, matemático, filósofo e historiador),
Mario Vieira de Mello (filósofo e
cientista político) e José Oswaldo de Meira Penna, proprietário
de cultura ecumênica, que vai
da filosofia à sociologia, à psicologia e à literatura. Felizmente,
nenhum deles virou nota de rodapé. Infelizmente, nenhum deles atingiu posição de comando
na máquina burocrática de nossa política externa. Zelosos de
sua independência crítica, nunca se filiaram às "igrejinhas"
que confundiam deformações
ideológicas com "Realpolitik".
Durante certo tempo, até mesmo em fases do período militar,
um diplomata "progressista" tinha que demonstrar capacidade
de saborear um coquetel maldito, com os seguintes ingredientes: uma pitada de antiamericanismo (como uma espécie de
machismo residual); uma dose
de esquerdismo (suficiente para
provar imunidade ao capitalismo liberal); um toque de paranóia desenvolvimentista (apoio
à política de informática e ao
acordo nuclear com a Alemanha, que gerou mais dívidas que
quilowatts); um verniz de terceiromundismo custoso e ingênuo
(como se a liderança na gafieira
compensasse a bola-preta recebida no Country Clube).
Esse coquetel seria impalatável para alguém como Meira
Penna, que sempre preferiu
Adam Smith a Karl Marx, Hayek a Keynes, Jung a Freud, o liberalismo ao socialismo. Em vez
de paparicar mitos e preconceitos, dedicou-se ele à tarefa de
Entzauberung (desencantamento ou desmistificação), que
Weber considerava prelúdio indispensável da racionalidade
econômica. Foi o que fez em vários livros, como os de minha trilogia preferida, "A psicologia do
subdesenvolvimento" (1972), "O
espírito das Revoluções" (1997) e
"Em berço esplêndido", agora
revisto devido às grandes transformações trazidas pelo colapso
do socialismo. Solidários na angústia, Meira Penna e eu nos temos preocupado ao longo dos
anos com a pergunta não-respondida: por que o Brasil continua pobre e subdesenvolvido? A
pergunta é sobretudo vexatória
agora que o país completa 500
anos, 107 anos a mais que a primeira colonização inglesa na
Virgínia, da qual resultou a
maior superpotência que o
mundo já conheceu.
Com minha deformação profissional de economista, limito-me a explicar nosso atraso pela
"doença dos ismos": o nacionalismo (temperamental), o populismo (perdulário), o estruturalismo (inflacionário), o estatismo (intervencionista) e o protecionismo (anticompetitivo). Há
inúmeras explicações sociológicas que enfatizam fatores culturais, como a herança ibérica,
ora com pessimismo racial (Oliveira Vianna), ora com uma visão condescendente da miscegenação (Gilberto Freire). Não faltam os reducionistas que recorrem a determinismos raciais ou
climáticos, supostamente limitativos das civilizações tropicais.
Meira Penna é bastante original em usar o instrumental de
Carl Gustav Jung para submeter
nossa história a um exame de
psicologia coletiva. Como é sabido, das três grandes vertentes da
psicanálise, Freud enfatiza a libido pan-sexual, Adler, o instinto do poder, e, Jung, o dualismo
entre a atitude extrovertida,
voltada para o mundo exterior,
e a atitude introvertida concentrada sobre imagens e sensações
interiores.
Meira Penna sublinha com razão a básica polarização da cultura ocidental entre um setor
nórdico e um setor mediterrâneo, tendo o primeiro contribuído maciçamente para a expansão técnico/ científica, e o segundo, para as artes e o humanismo. Prometeu e Fausto seriam
protótipos do primeiro, Epimeteu é Don Juan, do segundo.
Neste continente, os Estados
Unidos e os ex-domínios britânicos seriam parte da cultura
nórdica, enquanto o Brasil, com
sua "civilização morena", carrega a herança mediterrânea do
patrimonialismo afetivo. Contrapõem-se assim a civilização
lógico-pragmática e a civilização erótico-intuicionista. Meira
Penna faz uma crítica impiedosa, mas salutar, dos nossos vícios
do familismo paternalista, da
dependência do Estado, como se
fôssemos infantes perpétuos, e
de nossa inconfiabilidade na
execução contratual, em contraste com o pragmatismo racional de nossos irmãos do Norte. Este "sustenta a responsabilidade abstrata do cidadão", facilitando tanto a implantação da
democracia como a competição
no mercado.
No afã de exemplificar arquétipos junguianos, Meira Penna
produziu belas passagens literárias sobre a introversão quase
desumana dos personagens de
Machado de Assis, capazes de
paixões pessoais, porém insensíveis, por pessoas abstratas, sobre
a energia primordial da libido
descrita no "Gabriela, cravo e
canela", de Jorge Amado, assim
como, em dissertações eruditas,
sobre a simbologia do segundo
Fausto de Goethe e do drama
shakespereano de Otelo, que
simboliza a construção racional
por sua sombra, Iago, de um
ciúme irracional e autodestrutivo. A desconstrução por Meira
Penna de mitos e tabus de nossa
cultura morena é uma contribuição importante para nossa
transformação "liberal" tanto
em política como em economia.
Mas fica sempre a dúvida
cruel: haverá salvação para um
país que em seu hino nacional se
declara "deitado eternamente
em berço esplêndido" e cujo
maior exemplo de dinâmica associativa espontânea é o Carnaval?
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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