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ALÉM DA TRANSIÇÃO
Decreto assinado 13 dias antes da posse deixou pendentes mais de 2.000 contratos administrados pela Caixa
FHC transfere dívida milionária para Lula
MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A garagem da Prefeitura de Tapes, a 105 quilômetros de Porto
Alegre (RS), guarda um trator 0
km que deveria ser usado no cultivo de frutas. A pouca distância
dali, postes e transformadores
que deveriam levar eletricidade a
uma comunidade rural foram retirados e levados a um depósito.
No país inteiro, passa de 1.000 o
número de obras paralisadas ou
serviços prestados e não-pagos
em consequência de um decreto
assinado no final do mandato de
Fernando Henrique Cardoso.
A 13 dias de deixar o cargo, FHC
baixou decreto mandando cancelar todas as despesas ainda pendentes do Orçamento da União
de 2001. Na véspera de passar a
faixa ao sucessor, assinou outro
decreto deixando escapar alguns
gastos, como o Disque-Aids. O resultado levou ao limbo mais de
2.000 contratos administrados
pela Caixa Econômica Federal,
que representam apenas parte das
despesas canceladas e dizem respeito sobretudo a projetos de urbanização e saneamento.
O próprio texto do decreto indica que os pagamentos que viessem a ser reclamados deveriam
ser bancados com o dinheiro do
Orçamento para 2003, o mesmo
que acaba de receber cortes de R$
14 bilhões ou mais de 20% das
despesas não obrigatórias.
Só no Ministério do Esporte, os
chamados "restos a pagar" de
2001 somam cerca de R$ 40 milhões. Isso representa mais de
90% de tudo o que o ministro Agnelo Queiroz tem para administrar até dezembro depois do bloqueio de verbas anunciado na última terça-feira. Se o ministro
usar o orçamento da pasta para
honrar a conta pendente de quadras e ginásios cuja construção está em andamento, vão lhe sobrar
R$ 3,1 milhões para manter a máquina e fazer novos investimentos. Isso sem contar com os pagamentos pendentes de 2002.
Outros ministérios estão em situação semelhante, como a pasta
de Cidades e a de Integração Nacional -as duas que enfrentam o
maior percentual de cortes no Orçamento deste ano (85% e 90%
dos gastos foram congelados).
Só os contratos já executados e
cujos recursos são repassados pela CEF somam uma dívida de R$
118 milhões. A conta total pode
chegar perto de R$ 500 milhões,
segundo estimativa feita com base
em dados do Tesouro Nacional.
Solução, por ora, não há.
"O nome é calote"
O prefeito de Tapes, Luiz Carlos
Garcez, diz que sua sorte foi ter
deixado na garagem o trator, objeto de contrato com o Ministério
da Agricultura para um projeto de
fruticultura: "O trator chegou
perto do Natal, fiquei com medo
da transição e preferi deixar parado; sorte minha, agora pelo menos tenho como tentar devolver".
Ele ainda não sabe o que dizer à
empresa contratada para o projeto de eletrificação rural. A CEF informou que o pagamento está
suspenso até segunda ordem.
"Em português claro, o nome
disso é calote", diz o presidente da
Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski. Ele participou de reunião na quarta-feira
com o subchefe de Assuntos Federativos da Casa Civil, Vicente
Trevas, para discutir o problema,
objeto de reclamações de oito entre dez telefonemas dados por
prefeitos à Esplanada dos Ministérios. Ziulkoski contabiliza cerca
de 1.500 municípios em apuros.
Em documento que levou ao
Planalto, a Confederação orienta
os prefeitos a paralisar as obras,
suspender os contratos e tentar
uma negociação no que diz respeito ao pagamento de multas e
prejuízos, mas fala em cobrar da
União na Justiça dinheiro do (já
mirrado) Orçamento de 2003 para honrar os compromissos.
"O governo [passado" criou
uma lei para moralizar a gestão do
dinheiro público e chega ao final
do mandato cometendo uma irresponsabilidade", criticou, referindo-se à Lei de Responsabilidade Fiscal. A LRF diz que nos últimos dois quadrimestres do mandato, o governante não pode assumir compromissos com despesa
que não possa ser paga até o fim
do período ou que tenha parcelas
a serem pagas no ano seguinte
sem ter disponibilidade no caixa.
Na prática, FHC não tinha alternativa: a regra manda cancelar as
despesas comprometidas (empenhadas) num determinado ano
até o final do ano seguinte.
No total, Fernando Henrique
deixou de herança para o governo
Lula, além da polêmica conta de
2001, ainda por contabilizar o que
terá de ser honrado, mais R$ 10
bilhões de pagamentos pendentes
referentes a 2002.
Na última quinta-feira, o ministro Guido Mantega (Planejamento) resolveu congelar uma parcela
de R$ 6,8 milhões dessa última
conta, referente a obras que ainda
não teriam saído do papel.
Caso o governo tivesse honrado
todas as despesas, sem deixar os
"restos a pagar", o superávit primário obtido no último ano da
era FHC seria bem menor do que
R$ 52,3 bilhões: ficaria abaixo da
meta acertada com o FMI.
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