São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 1997.

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RUMO A 98
Primeira-dama afirma que tinha dúvidas sobre candidatura de FHC em 94, mas reconhece que se enganou
`Não sei se FHC será candidato', diz Ruth

MARIA CRISTINA FRIAS
especial para a Folha, de Londres

Pelo menos uma pessoa no Brasil admite a possibilidade de o presidente Fernando Henrique Cardoso não se recandidatar no ano que vem: a mulher dele, a antropóloga Ruth Corrêa Leite Cardoso. ``Não sei se o presidente será candidato'', disse ela em entrevista exclusiva à Folha, na residência do embaixador Rubens Barbosa, em Londres, com um ar mais jovial do que tinha anos atrás, quando o marido assumiu o Itamaraty, na gestão Itamar Franco.
A proximidade com o poder parece ter feito bem à professora aposentada do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo). Diferentemente do que costuma acontecer com os chefes de Estado, uma tendência a que FHC não parece escapar, a primeira-dama (como ela não gosta de ser chamada) remoçou.
Está mais magra, com óculos mais atuais e as roupas num estilo ``casual chic''. Domingo passado, quando a agenda do casal previa apenas a visita de cortesia da chanceler colombiana e um ``almoço campestre'' nos arredores da capital britânica, ela vestia botas e um conjunto pretos. A gola da camisa roxa estava para fora do blazer, bem à la ``seventies''.
Foi um pouco antes dos anos setenta que ela percebeu em si mesma uma mudança importante. ``Sempre fui muito certinha, muito planejada. Aprendi a não ser quando tive 15 dias para sair do país com três crianças'', lembra ela para explicar porque não poderia responder a perguntas sobre uma eventual reeleição do marido -e até sobre sua própria permanência à frente do Conselho Consultivo do Programa Comunidade Solidária.
A antropóloga já havia imposto como condição para a entrevista que não fossem feitas perguntas ``pessoais''. Nem precisava. Como se fosse uma política experimentada, a professora só responde o que convém. Foram-se os tempos de ataques ao PFL.
As respostas quase sempre recaem numa extensa enumeração das atividades do conselho que preside. Mas ela avisa: ``Pode escrever, política não vou ser nunca!'' Comenta que tem aprendido a controlar a loquacidade de professora. ``Quando começo a falar, não paro mais. E é preciso ter corte, especialmente para a televisão'', pondera.
A universidade, entretanto, não foi abandonada: Ruth Cardoso ainda encontra tempo para orientar alunos de doutorado. ``São cinco'', conclui, depois de contá-los com os dedos.
Faculdade e o trabalho em Brasília são os únicos assuntos de que fala com prazer. Nem os livros que está lendo são assunto que motive a professora. ``Ah, detesto essas perguntas, vamos renovar?''
Orgulhosa da posição que alcançou na carreira universitária, ela diz que gosta de ser chamada pelo título que tem: doutora. Pelo andar da carruagem, entretanto, a antropóloga não teria a fleuma britânica necessária para ostentar os títulos mais famosos desta ilha, onde os passos da família real são acompanhados de perto pelos repórteres.
``Os jornais aqui (os ingleses) fazem intrigas'', na opinião da primeira-dama que mais atritos teve com a imprensa brasileira. Provocada sobre esses atritos, ela acha que não lhe cabe nenhuma autocrítica.
``Que eu não possa fazer um passeio com minhas netas sem ter 50 fotógrafos... não vejo necessidade disso.'' A professora vê aí ``um serviço a prestar'', para fazer os jornalistas compreenderem melhor o limite entre o público e o privado. ``Vou continuar militando.'' A pergunta sobre se ela ainda se considera de esquerda recebeu da antropóloga uma sonora gargalhada -e mais uma resposta evasiva.
Para ela, a norte-americana Hillary Clinton ``é brilhante'', e no mundo todo estaria havendo uma renovação do papel de primeira-dama.
De sua parte, diz que tem buscado um novo caminho e que o Brasil não precisa de mais recursos para os programas sociais, mas sim executá-los melhor. Ela afirma que criou novos critérios para distribuição das verbas. ``Os recursos das políticas sociais criavam desigualdades. Quem chorava mais, levava.''
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Folha - Professora, a sra. não gosta da denominação ``primeira-dama''. Como gostaria de ser qualificada pela imprensa?
Ruth Cardoso -
Como já estão me chamando: de professora, de doutora. Queria que isso mudasse e acho que mudou, acho que consegui.
Folha - Em relação ao período dos anos 60/70, o feminismo se tornou menos agressivo nos anos 80/90. Houve retrocesso ou evolução natural?


O movimento feminista no país foi vitorioso, a transformação foi profunda


Ruth - Não me preocupo com um refluxo. Acho que teve o momento da criação do novo movimento feminista. E, por um lado, o movimento feminista no Brasil foi muito vitorioso, a transformação da mentalidade foi profunda em todas as camadas sociais. Então é natural uma mudança, um momento de menos visibilidade. As mulheres encontraram modos de institucionalizar sua participação, como as delegacias de mulheres. Não há manifestação de rua. Passou aquela fase.
Folha - E em relação a outros movimentos? Como a sra. vê o projeto que assegura os direitos da união civil para casais de homossexuais?
Ruth -
A luta dos homossexuais não chegou a ter esse reflexo de institucionalização, mas eles encontraram muitos lugares a partir dos quais falar. Acho um processo extremamente controverso e que o fato de existir uma proposta e uma resistência dentro do Congresso reflete exatamente a posição da sociedade brasileira. Ganhará ou não o que estiver assimilado pela população. Eu sou a favor.
Folha - E o fim da pena de prisão para usuário de drogas?
Ruth -
Eu acho que em todos esses assuntos se reflete uma real controvérsia da sociedade. É preciso deixar essas forças se expressarem. Sou a favor de que se amadureça uma posição que seja real.
Folha - A sra. tem procurado dar um cunho diferente, não ornamental, à posição de primeira-dama. E talvez seja lembrada como a primeira-dama mais ativa do Brasil...
Ruth -
Não sei, não... acho que teve outras muito ativas também... (risos)
Folha - Dona Darcy, a mulher do presidente Vargas...
Ruth -
Dona Darcy foi muito discreta, também. Procuro ter uma atuação discreta, acho que não é uma posição que precise ter muita visibilidade, a não ser na situação mais cerimonial. Fora isso, não existe um papel, existe o que a gente tenta fazer.
Folha - A sra. mencionou outras muito ativas...
Ruth -
Olha, nem me lembro. Todas eram diretoras da LBA (Legião Brasileira de Assistência). A dona Darcy foi a criadora da LBA. Mas não era a LBA que se extinguiu agora. Era um apoio às famílias dos pracinhas, que foram para a Segunda Guerra. Foi uma coisa criativa na época, uma coisa importante.
Folha - Outra primeira-dama que ficou marcada no imaginário nacional foi dona Sarah Kubitschek. Que imagem a sra. tem dela?
Ruth -
Não tive nenhuma convivência, não posso avaliar. Achava todos eles muito simpáticos. Foi um período tão interessante do Brasil. Mas não há porque fazer comparações. As primeiras-damas não são eleitas. É um papel complicado, faz parte de um papel do Estado. Ao mesmo tempo, é sempre difícil encontrar um espaço no qual atuar. No momento, no mundo inteiro está havendo uma grande renovação desse papel. As pessoas chegam a essas posições muito mais jovens do que antes, são em geral profissionais, ou militantes políticas, o que não era comum, mas isso gera as reações as mais diversas (risos), de um país para outro.
Folha - Que imagem do seu trabalho a sra. gostaria que ficasse?
Ruth -
Ah, a imagem de que houve uma busca de um caminho diferente, que se deu certo ou não será depois avaliado. Como não tem papel definido, tem que ter uma certa criatividade e eu acho que isso é que é bom.
Folha - Uma crítica muito frequente é a de que o governo estaria sendo melhor sucedido na área econômica do que na área social. Como a sra. responderia a essa crítica?
Ruth -
Acho que essa crítica é uma dessas que é bastante superficial. Vira uma espécie de ``slogan'' que é repetido. Essa visão é sempre apresentada a partir dos recursos alocados no Orçamento. Em qualquer país do mundo é um critério furado. Porque a alocação é feita a partir de um jogo político e depois esses recursos são mudados ou não executados. Então, a grande pergunta é o que foi executado. A execução foi a melhor dos últimos dez anos. Acho que a imprensa e os críticos estão com uma mentalidade muito antiga quanto a isso. Tenho também uma posição bem clara: com as características que os programas sociais tinham, é absolutamente inútil alocar mais verba, não se trata de falta de recursos. Trata-se de uma questão de aperfeiçoamento do planejamento desses programas. Os recursos das políticas sociais no Brasil criam desigualdade tal como eram concebidas porque há um forte corporativismo. Então, temos que mudar o destino dessas políticas. Isso é muito mais importante do que aumentar recursos.


Primeiras-damas não são eleitas. É difícil encontrar um espaço no qual atuar


Folha - E no caso de reeleição, a sra. permaneceria nessa função?
Ruth -
Não sei se estaria interessada em continuar na mesma linha, eu posso estar fazendo outras coisas. Não sei o que vai acontecer daqui a dois anos. Eu era muito certinha, muito planejada. Achava que sabia tudo o que queria que acontecesse. Deixei de ser quando tive que sair do país, em 15 dias, com três crianças. A polícia estava na nossa porta. Aí aprendi muito e uma das coisas foi isso, que planos a longo prazo... Acho que o Comunidade Solidária é uma experiência. Foram escolhidos 1.111 pequenos municípios, por um critério objetivo, com estatísticas. Não houve nenhuma negociação política. A política social também era criadora de desigualdades e os recursos eram gastos em lugares com possibilidades de resolver os problemas sem o governo federal. Do lado do conselho, que é onde eu trabalho mesmo, estamos fazendo vários programas. Empresas privadas subvencionam. Um deles, com ONGs pequenas -são essas que eu quero- e a população candidata a virar trombadinha. Estamos trabalhando com o problema dessa população, que eu espero que acabe.
Folha - No início, a sra. estava um pouco relutante em assumir o papel de primeira-dama. A sra. tomou gosto pela atividade política?
Ruth -
Não estava relutante. E esse trabalho não é política. Estou procurando dar eficiência à política social, mas acho que é mais a nível executivo do que político. Meu trabalho foi justamente eliminar a influência político-partidária. Para trabalhar, preciso ter feição apartidária. A empresa não trabalha comigo se eu aparecer com uma face partidária.
Folha - Essa sua experiência não seria útil na política? A sra. teria interesse?
Ruth -
Nenhum interesse. Pode escrever com todas as letras que jamais eu me candidatarei a qualquer coisa.
Folha - E se houver reeleição, a sra. pretende participar da campanha?
Ruth -
Não sei dizer isso com antecedência, nem se o presidente será candidato. Porque o estatuto da reeleição é uma coisa. A candidatura à reeleição é outra. Dois anos são dois anos.
Folha - Mas a sra. é favorável à reeleição?
Ruth -
Do estatuto, sempre fui.
Folha - Do seu marido?
Ruth -
Se ele for candidato, eu esperaria que ele ganhasse. Acho que ele está fazendo um bom governo.
Folha - A sra. o aconselha a se candidatar?
Ruth -
Daqui a dois anos a gente vê.
Folha - A sra. está respondendo como uma política, professora...
Ruth -
Não, acho que estou realista...
Folha - A sra. aguentaria toda a pressão de um mandato novamente? A sra. teve dúvidas se ele deveria se candidatar.
Ruth -
Naquele momento eu tinha uma dúvida, mas se demonstrou na prática que eu não tinha razão, porque ele era ministro da Fazenda e estava levando um plano que eu acho importantíssimo. Não tinha razão primeiro porque ele ganhou a eleição e, segundo, porque está fazendo um governo no qual a estabilidade econômica está garantida. O meu medo é que era infundado.
Folha - E se fosse hoje, que conselho a sra. daria a ele?
Ruth -
Mas não é hoje. Eu não vou me colocar numa condição que é falsa porque política é isso, é exatamente a evolução de uma série de condições que podem estar tão boas quanto estão hoje e podem estar negativas; pode ser mais interessante que tenha outra pessoa. Podem surgir novas lideranças. Acho que alguém que faça propostas a tão longo prazo não é uma pessoa que considere que o jogo político é um jogo absolutamente mutável.
Folha - A sra. disse que o papel de primeira-dama está mudando no mundo todo. Que imagem a sra. tem, por exemplo, de Hillary Clinton?
Ruth -
Acho que é uma mulher brilhante, uma pessoa extremamente interessante. Mas o que acontece no jogo político americano é muito diferente do que acontece no Brasil. A própria Hillary Clinton me disse que no Brasil eu tenho uma liberdade maior para fazer esse trabalho com a sociedade civil do que ela tem nos Estados Unidos. Porque eu acho que a posição da mulher no Brasil é diferente, há um apoio muito grande, enquanto que lá existe uma visão muito tradicional, que pesa. Acho que ela é uma mulher muito interessante que está procurando o caminho dela. Mas nada pode ser visto como modelo.
Folha - Sua relação com a imprensa não tem sido das melhores, todo mundo sabe que a sra. frequentemente reprova o comportamento de repórteres que a abordam, que a sra. considera invasivo...


Faço um trabalho para aumentar a igualdade. Isso é ser de esquerda? Eu acho que é


Ruth - Eu acho que é absolutamente desnecessário este tipo de assédio. A imprensa no Brasil tem uma certa dificuldade de lidar com o limite entre o privado e o público. Tem um interesse excessivo por áreas da vida privada que não são de interesse público. Áreas da vida privada que têm repercussão pública, eu concordo inteiramente que a imprensa deva se interessar por elas. Vou continuar reclamando.
Folha - E da parte da sra., haveria alguma autocrítica nesse relacionamento com a imprensa? Não acha que possa vir a se acostumar...
Ruth -
Não vou me acostumar. Acho que estou prestando um serviço, na minha posição, podendo reclamar disso, porque a imprensa tem que aprender seus próprios limites. Os jornais daqui (os ingleses) ficam fazendo... (hesita) intrigas etc. No Brasil, os grandes jornais não precisam disso. Têm outra maneira de noticiar, de fazer uma análise mais sofisticada. Que eu não possa fazer um passeio com minhas netas sem ter 50 fotógrafos... eu não vejo necessidade disso. Vou continuar militando.
Folha - A sra. ainda se considera de esquerda?
Ruth - Ah, não sei o quer quer dizer isso (risos). Só se você me explicar o que entende por esquerda.
Folha - Aquilo que todos nós entendíamos por esquerda.
Ruth -
Quem é que é de esquerda? Você é leninista? Eu não sou. Aliás, nunca fui (ri muito). Então, não tem problema. Eu acho que essa distinção não tem sentido. Eu faço um trabalho que visa aumentar a igualdade, isso é ser de esquerda? Eu acho que é. Este é o meu rumo e é para isso que eu estou trabalhando ativamente.

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