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São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2003

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SEM CONSENSO

Vice-presidente diz que "a emenda sairá pior do que o soneto" se a reforma tributária não sair a contento

Alencar diz temer "arremedo" de reforma

Alan Marques/Folha Imagem
O vice-presidente da República, José Alencar, no Palácio do Jaburu


VALDO CRUZ
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

"Não posso ser omisso. Do contrário, como eu vou fazer a barba de manhã e olhar para a minha cara?" Assim o vice-presidente da República, José Alencar (PL), 71, justifica suas críticas às propostas debatidas até agora de reforma tributária e previdenciária.
Alencar concentra sua preocupação na tributária. Teme que a proposta seja um "arremedo" de reforma e que traga "frustração ao povo brasileiro". "Aí, a emenda sairá pior do que o soneto."
Apesar de julgar "genial" a política macroeconômica de Antonio Palocci Filho, principal condutor da reforma tributária, Alencar diz que o ministro da Fazenda "não pode saber tudo" e pede que convoque "os melhores técnicos para fazer um projeto para ele".
Crítico duro da idéia de cobrar o novo ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) no Estado onde o produto é consumido (destino), e não onde é produzido (origem), Alencar acha que essa possibilidade tem de ser abandonada de vez.
Mais: bombardeia a perenização da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), prevista na proposta em preparação na Fazenda.
"Não precisa existir CPMF, não pode existir -ou então que exista só ela", afirma, referindo-se indiretamente à idéia de um imposto único, o que ele descarta hoje.
O vice de Luiz Inácio Lula da Silva pede que a reforma tributária seja seja "simples", "cabal" e "abrangente". Em relação à previdenciária, fala em respeito a "direitos adquiridos" e chega a admitir aposentadoria integral "desde que o sujeito pague para isso".
Alencar nega que esteja em atrito com Lula, a quem faz elogios. Diz que faz suas críticas na condição de "cidadão". "Ainda que vice seja vice, amanhã alguém poderá cobrar: "Mas, Zé Alencar, você não participou disso? Então, você deveria ter participado'". A seguir, trechos da entrevista dada ontem, no Palácio do Jaburu.
 

Folha - O sr. classificou de "bobagem" a proposta de cobrança do ICMS no destino em vez de na origem. Por quê?
José Alencar -
O imposto de origem ou de destino como imposto de consumo é uma besteira porque quem paga é o consumidor, onde quer que ele esteja, não o Estado onde o produto é feito ou vendido. Não é desapreço a ninguém, mas é uma bobagem que me preocupou. Na prática, seria o Estado produtor transferindo mercadorias para que o imposto seja pago no Estado consumidor, o que é um complicador brutal. Estaremos complicando o sistema em vez de simplificá-lo e dando margem ao casuísmo.
Já temos enormes dificuldades a vencer para fazer uma reforma tributária para valer. Vamos aumentá-las à custa de algo que complica o sistema? Estaríamos legislando equivocadamente em cima de circunstâncias. Como a economia é dinâmica, um Estado que consome mais do que produz pode passar a produzir mais. Ora, um Estado tem de se preocupar com o crescimento da produção, não do consumo. Essa discussão sobre destino tem de ser abandonada de vez, e não ficar para ser decidida daqui a dois anos. Por isso, esse pode ser um dos fatores que frustrem a reforma tributária.

Folha - Que outros fatores trariam frustração?
Alencar -
Todo o Brasil espera há muitos anos pela reforma tributária, porque o sistema tributário nacional se transformou num cipoal burocrático que entrava o desenvolvimento. É preciso simplificá-lo, eliminar os impostos em cascata para desonerar as exportações e fazer com que os tributos diretos, como o Imposto de Renda, como deseja o presidente, sejam mais progressivos, cobrando mais de quem ganha mais.
Também tem de ser uma reforma cabal, não um arremedo. Por isso, temo que a proposta de emenda constitucional da reforma tributária possa trazer frustração ao nosso povo se for um arremedo de reforma. Aí, a emenda sairá pior do que o soneto.

Folha - Em reunião, governadores do PSDB criticaram as propostas de reformas tributária e previdenciária aventadas pelo governo até agora, dizendo que elas têm "caráter restrito". O sr. concorda?
Alencar -
Repito as palavras do Lula. Reforma tributária cada um tem uma na cabeça, o que é natural. Escolhemos o caminho clássico e descartamos o heterodoxo, no qual caberia pensar num imposto único, que teria de ter uma alíquota muito alta para compensar todos os impostos de hoje.
Daí a razão para adotarmos o caminho clássico, que há de contemplar basicamente três impostos arrecadadores. Um deles é imposto indireto. Outros dois, diretos. O imposto indireto é o imposto de consumo, qualquer que seja o seu nome, ICMS, IVA [Imposto sobre Valor Agregado] etc. Os outros dois impostos indiretos arrecadadores são o Imposto de Renda e o imposto de propriedade. Um bom sistema teria, então, três impostos arrecadadores, sem prejuízo dos regulatórios.
O Estado não pode abrir mão de impostos que são instrumento de política, como o IOF [Imposto sobre Operação Financeira], instrumento de política monetária. Outro imposto desse tipo é aplicado sobre o comércio exterior.

Folha - A Fazenda avalia que a cobrança no destino seria mais eficaz para evitar guerra fiscal.
Alencar -
Para evitar a guerra fiscal, basta que seja uma legislação nacional.

Folha - Que outros erros existem na proposta de reforma tributária debatida até agora?
Alencar -
A CPMF, por exemplo, não pode continuar. É outro imposto cumulativo.

Folha - Mas na proposta do governo ela continua e não tem prazo para acabar nem para ter a alíquota de 0,38% diminuída para 0,08%.
Alencar -
Ainda não há proposta do governo. Está tudo em estudo.

Folha - Nas duas minutas de proposta de emenda constitucional da reforma tributária feitas por Palocci, a CPMF está mantida.
Alencar -
Isso é porque o imposto garante, com 0,38%, R$ 20 bilhões por ano. Mas ele tem de substituir isso pelo imposto clássico. Não precisa existir CPMF, não pode existir -ou então que exista só ela.

Folha - Qual o sentido então da proposta de Palocci, que, idealmente, gostaria de aplicar a cobrança do ICMS no destino e que está prevendo a continuidade da CPMF? Inexperiência? Incompetência?
Alencar -
Não é incompetência nem inexperiência. O Palocci está dando um exemplo ao mundo de competência e de seriedade. Agora, é claro que isso é assim mesmo. É legislação, e legislação tem de ser discutida.
Agora, não podemos pensar que vamos mandar para o Congresso um projeto e que ele vai ser aprovado imediatamente. Temos de respeitar o Congresso, que vai discutir. Estou falando antes da ida da mensagem presidencial para que ela vá dentro de um texto que tenhamos condições de defender. Não adianta inventar.
Isso não é um problema para ser resolvido numa platéia, mas por pessoas que entendam disso e que sejam tecnicamente capazes. O Palocci, como ministro da Fazenda e homem público, é dos melhores que tem. Ele pode convocar os melhores técnicos para fazer um projeto para ele. Ele não pode, por exemplo, saber tudo, ninguém sabe tudo.
Ele sabe até mais do que deveria, porque é um médico que está fazendo um trabalho genial de respeito aos princípios macroeconômicos, aplaudido no mundo inteiro. A macroeconomia está correta, mas estou falando da reforma tributária. Tenho o sonho de ver o Brasil caminhando para um país de primeiríssimo mundo.

Folha - O sr. está dizendo isso tudo em que condição, como vice ou empresário?
Alencar -
Que empresário?! Como cidadão.

Folha - Não é a visão de empresário do sr.?
Alencar -
De forma alguma. Se eu for verificar o interesse da minha empresa, eu não ia mexer com isso, não. Para mim, tanto faz. Estou rigorosamente em dia com o pagamento dos meus impostos. Não estou preocupado com isso. Para ganhar dinheiro, eu estaria na minha empresa, não estaria aqui, não. Estou aqui tentando trazer alguma contribuição para a vida pública.

Folha - A declaração do sr. deu a impressão de algum desentendimento entre o sr., Lula e Palocci. Por que o sr. está falando isso agora?
Alencar -
Tenho certa responsabilidade porque, queiram ou não, ainda que vice seja vice, amanhã alguém poderá cobrar: "Mas, Zé Alencar, você não participou disso? Então, você deveria ter participado". Só que tenho experiência, tenho 71 anos de idade. A forma de participar não tem outra senão dizer com transparência o que você pensa. Estou aqui há três meses, estou falando hoje. Poderia ter falado ontem.

Folha - Mas gostaríamos de falar da natureza da observação do sr. O sr. é o vice-presidente, empresário de sucesso?
Alencar -
Não, esse negócio de empresário de sucesso não me dá nenhuma autoridade. Tenho muitos patrões. Tenho 175 milhões de patrões, devo satisfação a esses patrões. Esse negócio de empresário não quer dizer nada.

Folha - O sr. falou com o Lula sobre essas questões?
Alencar -
Olha, não, eu tenho falado... veja bem: nesses detalhes, completos, ainda não. Porque as coisas vão acontecendo. Chega um momento em que a sua idéia amadurece.

Folha - O sr. sentiu necessidade de verbalizar sua discordância...
Alencar -
Óbvio e ululante. Não posso deixar de dizer o que eu estou pensando. Estou falando aquilo que acho que preciso falar. Estou aqui para tentar prestar um serviço ao meu país. Não posso ser omisso. Do contrário, como eu vou fazer a barba de manhã e olhar para a minha cara? Tenho que poder olhar para a minha cara e ficar satisfeito com ela.

Folha - O sr. teme que a reforma previdenciária também seja menos abrangente do que o sr. deseja?
Alencar -
Imagino que ela também seja uma reforma cabal e que não violente direitos adquiridos. Isso é premissa básica. Se violentar um direito legítimo adquirido, o camarada ganha no Judiciário. Então, só tem um caminho: o Executivo convocar os melhores atuários e fazer um projeto de sistema previdenciário da estaca zero. E dizer: essa é a nova Previdência. A que está aí é o que podemos chamar de imprevidência social. Para a Previdência nova, poderão migrar todos que quiserem. Num primeiro momento você inverte a tendência de crescimento do déficit e, ainda que haja teto, pode até trabalhar como aposentadoria por valor integral. Tem um custo. É como se fosse uma empresa.

Folha - O sr. não acha que deveria haver um teto?
Alencar -
Dentro de uma previdência normal, pode até ser integral, desde que o sujeito pague para isso. O Estado não pode pagar para você um teto altíssimo sem que você tenha pago para isso.

Folha - Vamos falar de detalhes da Previdência. E a taxação de inativos, o sr. defende a cobrança?
Alencar -
Na Previdência nova não deve nem haver essa discussão, essa pergunta seria um despropósito. Na situação atual, existe caso que se trata de direito legítimo adquirido. Se isso não é um direito legítimo... quem vai dizer isso não sou eu, é o Judiciário.


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