São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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NO PLANALTO

Alcoolismo marca três gerações dos Silva

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A notória "reportagem" do "New York Times" fez rosnar as vozes interiores de Lula. O texto revolveu porões recônditos da alma do presidente. Ali se esconde, soterrado por densas camadas de reminiscências, um cemitério de garrafas.
Aristides Inácio da Silva é, entre os espectros que vagueiam pelos subterrâneos da memória de Lula, o mais vivo. Teve fim melancólico. Foi abandonado pela família. Sobrou-lhe a solitária companhia do copo. Foi à cova como indigente.
Lula e os irmãos souberam da morte do pai por carta. A notícia chegou com atraso de 12 dias. Um coveiro se dispôs a desenterrar o morto, para que fosse chorado retroativamente. Lula não quis. O irmão Genival Inácio da Silva recorda-lhe a frase: "Não adianta, já morreu. Deixa como está".
"Meu pai bebia sempre", diz Vavá, como Genival é chamado na intimidade familiar. "Tomava pinga. Depois passou para o conhaque, que era melhor. Depois passou para a cerveja, que era melhor. Se pudesse beber 50 pingas, ele bebia."
José Ferreira de Melo, o Frei Chico, irmão que seduziu Lula para o sindicalismo, lembra: "Deram uma facada nele, uma vez. Foi por causa de cachaça [...]. O cara cortou a barriga dele. Ele quase foi para o espaço. Teve que tirar um rim fora. [...] Meu pai era um homem razoavelmente forte. O que acabou com ele foi a cachaça".
Aristides não deixou saudades. Em vida, fora um genitor cruel. Um episódio marcou o presidente. "Com a maior ignorância do mundo", conta Lula, "[Aristides] pegou uma mangueira, pegou o Frei Chico -o coitadinho estava trocado para ir para a escola-, deu-lhe uma surra! O coitado urinava nas calças de tanto que apanhava."
Lula prossegue: "Quando terminou de bater nele, veio bater em mim. Minha mãe não deixou. Aí ele deu uma mangueirada na cabeça dela e isso foi o começo do processo de separação da minha mãe e do meu pai".
Jaime Inácio da Silva, mais velho dos sete irmãos do presidente, não teve a mesma sorte. "Eu apanhei como cachorro", conta. Marceneiro aposentado, Jaime herdou, por assim dizer, a vocação etílica de Aristides. Nas palavras de Lula, ele "está doente de cachaça". Segundo Frei Chico, "está bebendo como o diabo".
Certa vez, o alcoolismo levou Jaime ao hospital. Ele próprio resume assim a estadia hospitalar de 12 dias: "Até hoje eu não sei por que estive internado. Não sei se foi por causa de cachaça demais. Vai ver que a verdade é essa".
Eurípedes Ferreira de Melo, a dona Lindu, mãe de Lula, desabou de Caetés (PE) para Santos (SP) movida pela esperança de recompor a família. Ao chegar, descobriu que teria de dividir o marido com uma prima. Valdomira, apelido Mocinha. Em segredo, Aristides a trouxera para São Paulo. Lindu fugiu de casa com os filhos.
A mulher postiça tampouco aturou Aristides. "A dona Mocinha também não agüentou ele. Meu pai bebia. Agüentar bêbado é difícil", diz Marinete Leite Cerqueira, irmã do presidente. "Meu pai era um verdadeiro cavalo", acrescenta Maria da Silva, a Maria Baixinha, outra irmã de Lula. "Não era um ser humano. O Vavá foi um que apanhou muito dele."
Estamos folheando o livro "Lula -o Filho do Brasil". Não é obra de nenhum "americano irresponsável". Escreveu-o a jornalista Denise Paraná. Foi impresso, em dezembro de 2002, pela editora Fundação Perseu Abramo, do PT. É a mais completa biografia do ex-sindicalista. Coisa minuciosa. Reproduz depoimentos gravados de Lula, de seus irmãos e amigos. O presidente posou para a foto da capa.
A conjuntura encaminha nossa ênfase para o teor alcoólico dos testemunhos que recheiam o livro. O tema foi injetado na ordem do dia pela "reportagem" de Larry Rohter. Acolhido pelo "New York Times", o texto levantou a suspeita de que a Presidência de Lula é movida a álcool.
Como peça jornalística, o trabalho de Rohter é precário. Baseou-se em mexericos anônimos e em fontes temerárias. Ganhou imerecida sobrevida graças à reação amalucada do Planalto.
Embriagado pelo poder, como que determinado a aprimorar as próprias deficiências, Lula expôs seus pendores imperiais. Mandou cassar o visto de trabalho de Rohter, expulsando-o do Brasil. A decisão ficou de pé por menos de 24 horas. Derrubou-a, em decisão liminar, o STJ.
Sem querer, o texto de Rohter buliu nos traumas interiores de Lula. São dores psicológicas que, recuando na genealogia, alcançam um outro fruto que pende da árvore dos Silva. Chama-se Otília. É a avó materna do presidente.
"Minha vó, coitada, bebia uma cachaça!", lamenta Lula. "Quantas vezes meus irmãos tiveram que pegar ela dormindo no meio do mato, na estrada, na beira do asfalto. [...] Ela bebia muito, muito."
"Tomava muito a velhinha", ressoa Vavá. "Era uma costureira de primeira qualidade. Mas tomava uma cachaça! Caía no barreiro e ficava gritando para a gente ir acudir ela. Morreu de idade e um pouco de pinga também."
E quanto a Lula? Difícil caracterizá-lo como alcoólatra. Fácil, porém, constatar que não é avesso ao copo. Bebe desde a mocidade. Quem conta é o melhor amigo do presidente, Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari.
"Adoro o Lula. Ele para mim é que nem um irmão [...] A gente ia comprar uma pinga e bebia meio a meio, a gente não tinha dinheiro. Cigarro também era meio a meio."
Por mais que a exposição do hábito irrite o presidente, a condição de político legitima a curiosidade jornalística. E, a julgar pelo depoimento que deu a Denise Paraná, a política é a cachaça de Lula.
O presidente disse: "A verdade é o seguinte: política é como uma boa cachaça. Você toma a primeira dose e não tem mais como parar, só quando termina a garrafa". Tintim.


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