São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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JANIO DE FREITAS

Tim e os outros

Pela pessoa , pelo profissional e pela atrocidade atordoante de que foi vítima, o repórter Tim Lopes justifica toda a emoção emergida do seu desaparecimento. Não se justifica, porém, o sentido dado a grande parte dessa emoção, criador de ficções perigosas como o surgimento de uma espécie de terror contra jornalistas, ameaças à liberdade de imprensa e risco para a democracia.
Em qualquer lugar do mundo, ameaçar a segurança de um foco de bandidagem sujeita a riscos, inclusive o de morte. Risco que não advém só da criminalidade instalada nas favelas, mas de vários outros gêneros de máfias, que podem ser de empreiteiros, de policiais (caso do ex-coronel e ex-deputado Hildebrando Paschoal, que matava com motosserra no Acre), de bicheiros, a do combustível adulterado e, tantas vezes, de políticos corruptos.
Terror contra jornalistas há na Colômbia, onde muitos têm sido caçados e mortos, ou pela guerrilha de esquerda, ou pela guerrilha direitista.
A liberdade de imprensa está reprimida, sim, mas não pela bandidagem favelada. Está sempre reprimida por muitos jornalistas e certos proprietários de mídia, com suas práticas diárias de deformação e sonegação de informações, por sujeição a interesses oficiais ou particulares, como por conveniências materiais diretas.
E de que fronteiras da democracia se trata, ao falar da criminalidade produzida nas favelas? Os direitos dos pobres em geral são mesmo aqueles conferidos pela Constituição?
Em sete anos e meio de um governo que se diz construtor de um grande futuro, o que foi feito para reduzir as fontes de onde brota, em quantidade crescente e cada vez mais letal, a criminalidade urbana? Nem aquilo a que se dedicou por tanto tempo, e com tantos sacrifícios para a população e o país, foi feito: bastou que meia dúzia de mafiosos financeiros e outros tantos políticos se lançassem no terrorismo eleitoreiro, já o governo teve que correr para se refugiar no colo do FMI e aumentar em monumentais US$ 10 bilhões a dívida com que deixa o Brasil sufocado.
Nada foi ou é feito para reduzir as fontes da criminalidade e, pior, é muito o que estimula seu crescimento e ferocidade. Duas manchetes internas, ambas dos últimos dias, nos dois jornais mais importantes de Rio e S.Paulo: "Receita do comércio na década de 90 cresceu 60% e o salário caiu 22,5%" (Globo) e "Indústria de SP demite mais do que contrata". Dois pequenos e repetitivos adendos ao que se lê dia após dia, ano a ano, sobre a construção da realidade que Márcio Pochman assim resume, na mais recente das contribuições excelentes que vem dando para pensar-se o presente e o futuro: o Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de desempregados.
Isso não decorre, é claro, da dimensão populacional, porque há países com população equivalente ou maior e nem por isso com 14 milhões de desempregados. À parte a gravidade do ponto de vista humanitário, quando se fala do desemprego e da consequente falta de perspectiva, mesmo que mínima, para a juventude pobre, o que se está exprimindo é a existência de uma condenação de muito dessa massa a um ambiente embrutecedor, em que tudo o que é humano vai se degradando até reduzir-se, no extremo já banal, à própria matéria e seu instinto, sem emoções, sentimento ou qualquer noção.
Cidades como Rio e S.Paulo estão transformadas em depósitos de pobres. Resultado de um processo. Diante do qual, tudo o que a mídia fez e faz são ondas de sensacionalismo. É a exploração mercantil-emocional de um ou outro episódio. As políticas e não-políticas geradoras da degradação ficam intocadas. Para rechear o sensacionalismo, a falsa defesa do interesse público escala um culpado, assim proporcionando a conveniente guarda a quem tenha real responsabilidade pela degradação social e pela omissão nas restrições à criminalidade. Agora mesmo, a Associação Paulista de Magistrados precisou publicar "Nota de Repúdio" a um artigo em que os juízes de S.Paulo são acusados de melhorar seus vencimentos "com gordas propinas pagas pelas quadrilhas".
O sensacionalismo que se vale da tragédia de um jornalista sério como Tim Lopes é mais um momento típico da mídia brasileira em relação à criminalidade. Tão poucos dias depois do desaparecimento de Tim, um casal foi também preso, torturado e assassinado quando entregava uma cesta de café da manhã no dia dos namorados, nas cercanias de uma favela no subúrbio carioca ironicamente chamado Piedade. A jovem e marido que, guarda penitenciário, ocupava-se de um trabalho complementar, seriam menos humanos do que jornalistas? A tortura e morte de que padeceram seriam menos revoltantes? Sim, a julgar pela maneira muito discreta com que o caso foi tratado na mídia do Rio. Talvez para não desconcentrar a exploração do outro caso.
É fora das favelas que está a maior parcela da responsabilidade pelo aumento incontrolado da violência urbana. E, nesta parcela, grande parte não é gerada nas cidades mais presentes no noticiário, S.Paulo e Rio. Mas não só nelas o tempo se encurta para a ação e se estreitam as possibilidades de ainda reverter a criminalidade, antes que venha a provocar, então verdadeiramente, ameaça ao que aqui se chama democracia.



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