São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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ELIO GASPARI

Medo
O governo já decidiu socorrer a Varig. Ainda não anunciou a operação por medo de que ela prejudique o equilíbrio eleitoral.
O esquema é simples: além de crédito do BNDES (US$ 500 milhões), querem usar o dinheiro das taxas extorsivas que a Infraero cobra aos passageiros. Trata-se de cobrir um buraco de US$ 900 milhões. Assim, o cidadão que ficou sem luz paga mais caro pela energia, e o dinheiro que lhe tomam no aeroporto vai para empresas que não conseguem crédito no mercado.

Reação de baixo
A turma politicamente correta deve se convencer de que a questão da segurança pública acabará alavancando uma reação conservadora semelhante à que passou o trator em cima dos liberais americanos nos anos 80.
Durante três dias da semana passada a página de noticiário do Rio do jornal "O Globo" na internet perguntou na sua seção Gramofone se os autores de crimes hediondos deveriam ter direito a habeas corpus. Recebeu em torno de 250 respostas, e o habeas corpus foi cassado por 90% das pessoas que responderam. De cada três opiniões contra o habeas corpus, uma mostrava-se a favor da pena de morte.
A amostra é pequena, seu universo é pouco representativo, a pergunta é indutiva e a ocasião era perversa, mas, pelo cheiro da brilhantina, o vento sopra nessa hedionda direção.
Os defensores da pena de morte diziam que cassar o habeas corpus era pouco. Engano. Nos Estados Unidos a pena de morte e o habeas corpus convivem em paz. Uma coisa nada tem a ver com a outra.
O habeas corpus destina-se a livrar o cidadão de um constrangimento ilegal por parte do Estado. O que ele fez não se discute. Quando uma pessoa que respeita as leis acha que pode tirar esse direito aos outros, deve admitir que alguém tome o seu.
O senador Eduardo Suplicy e parte da esquerda brasileira defenderam a libertação dos sequestradores estrangeiros do empresário Abílio Diniz. Por bom-mocismo, FFHH extraditou-os e pelo menos os dois sequestradores canadenses já estão soltos. Quando vier a conta, não devem reclamar.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música, mas gosta dos hinos que antecedem os jogos da Copa porque a melodia é sempre a mesma e a letra nunca quer dizer nada. Ela zela pela defesa do idioma e concedeu mais uma de sua bolsas de estudo ao prefeito Cesar Maia. Ele disse o seguinte:
"O emprego público estável é um contrafator desejável. Por isso mesmo a Prefeitura do Rio encaminhou projeto de lei acabando com as alternativas de celetização e aponta para a desterceirização e "desONGanização". A hipotética eficiência administrativa maior não pode ser, a longo prazo, um desestabilizador social".
O prefeito quer o voto dos funcionários públicos. Já é alguma coisa.

A Goldman Sachs jogou bruto

A casa bancária Goldman Sachs é hoje uma das grandes do gênero em Wall Street. Em 1929, quando foi fundada, viam-na como um covil de especuladores. Hoje, administra um ervanário de US$ 350 bilhões. Muita gente ganhou dinheiro com seus conselhos. E muita gente perdeu.
Em 1998, seus sábios armaram um esquema de alongamento da dívida russa (a 14% de juros anuais), e a casa ganhou US$ 59 milhões no negócio. Pena que tenha produzido um papel que em quatro anos não rendeu um ceitil. Foi também a maior alavanca de acesso de empresas da internet à Bolsa de Nova York. Lançou e abençoou um serviço de noticiário eletrônico chamado TheStreet, cujas ações valeram US$ 71 e hoje valem US$ 2,44.
Culpar os bancos de investimentos pelo mau desempenho de seus clientes é tolice. Mas o negócio da Goldman Sachs com a TheStreet foi outro. Segundo seu ex-editor Dave Kansas, atual colunista do "Wall Street Journal", a casa de Goldman e de Sachs deixou de dizer aos seus clientes que a empresa ia mal, desclassificando-a formalmente. Limitou-se a informar que pararia de acompanhá-la. Essa estratégia foi copiada pela Merrill Lynch, que, por isso y otras cositas más, fez um acordo com a Promotoria de Nova York ao preço de US$ 100 milhões para livrar-se de um processo.
Por conta dessas desgraças, em maio passado, a Goldman Sachs transformou um de seus diretores em ombudsman. Ele deveria dar uma olhada no comportamento de sua empresa diante da sucessão presidencial brasileira. No último dia 6, um de seus analistas, Daniel Tenengauzer, enviou aos clientes um trabalho intitulado "Apresentando o Lulômetro" ("Introducing Lulometer").
O "Lulômetro" baseia-se em duas elegantes equações. Junta dois dados reais, relacionados com operações de câmbio do mercado, e dois pares de incógnitas. Num par ficam as chances de vitória de Serra e a cotação da moeda americana no final de outubro, depois do segundo turno. No outro, as chances de Lula e o valor do dólar pós-eleitoral. O freguês pode brincar com as equações. Se ele estima, por exemplo, que Lula tem 47% de chances de vitória, o Lulômetro avisa que essa previsão implica um dólar de R$ 2,52 na vitória tucana e R$ 3,04 na petista. Inversamente, se ele quer saber qual previsão eleitoral está embutida num dólar de R$ 2,52, é informado que ela corresponde a um palpite de 53% de chances para Serra.
O problema do doutor Tenengauzer está no nome que deu ao brinquedo. Trata-se um "Dólarômetro" que tanto pode ser chamado de "Lulômetro" quanto de "Serrômetro". Ao fulanizá-lo, transformou-o num elemento de satanização do candidato petista, assemelhando-o ao colesterol.
É seu direito, mas é também direito alheio achar que a Goldman Sachs não deve associar seu nome a brincadeiras desse tipo. Sobretudo quando a mesma casa, numa futurologia sobre futebol, informa o seguinte a respeito da candidatura de José Serra:
"Nós acreditamos que suas realizações, a recuperação da popularidade do presidente Cardoso, o amplo apoio da imprensa e dos grupos de pressão financeiros e industriais e grandes investimentos federais são fatores capazes de turbinar a campanha de Serra, levando-o ao palácio presidencial em janeiro de 2003".
Diria melhor se dissesse assim:
"... com o amplo apoio da imprensa, o nosso e o dos grupos de pressão financeiros..."
Até a crise de 1999, a Goldman Sachs nunca disse uma palavra a respeito do populismo cambial do dólar de R$ 1,20. Pelo contrário, durante o ano eleitoral de 1998 fez a gentileza de oferecer um jantar a FFHH em janeiro. Nele, seu presidente disse que "existe um clima de confiança em relação ao Brasil, e eu não acredito num contágio da crise asiática na América Latina".
Com o real na breca, o doutor Armínio Fraga foi para a presidência do Banco Central. Chegou a Brasília com vários nomes para a sua diretoria, entre eles o do economista Paulo Leme, diretor da Goldman Sachs. Num exercício de audácia (ou da incompreensão do que é um risco político), ele defendeu a privatização da Petrobras e do Banco do Brasil. Foi dormir diretor do BC e acordou de novo na Goldman Sachs. O doutor Leme está citado no texto do "Lulômetro", informando uma banalidade segundo a qual o aumento do risco político afastará capitais externos e contribuirá para a deterioração do real.
Os relatórios da Goldman Sachs deveriam circular no Brasil com um carimbo:
"O Ministério da Saúde adverte: lê-los como se fossem ponto de vista de um observador desinteressado faz mal à inteligência".

O futebol é antídoto contra a empulhação

Se o rapaz que concebeu o "Lulômetro" diz que um dos elementos de sua equação foi calculado "com uma fórmula de Black e Scholes", a choldra tem mais é que abaixar a cabeça para tomar a lição. Myron Scholes ganhou o prêmio Nobel de Economia de 1997 com seus estudos sobre a previsibilidade dos preços no mercado financeiro. (Criou um fundo chamado LTCM, que foi à garra em 1998 com um espeto de US$ 100 bilhões, mas lembrar coisas desse tipo é coisa de pobre.)
Felizmente, a casa bancária onde trabalha o doutor do "Lulômetro" fez um "futebolômetro" para que a patuléia possa conferir a qualificação de seus especialistas. Futebol tem uma vantagem. É jogado em público e ganha quem faz gol. Não tem espaço para empulhação.
Deve-se agradecer ao analista Jim O'Neill, da Goldman Sachs, pela oportunidade que deu ao andar de baixo de avaliar suas previsões no mundo da bola.
Ele produziu um livrinho de 56 páginas intitulado "A Copa do Mundo e a Economia". Ao contrário do trabalho de Tenengauzer, tem um leve toque de humor. Em 1998, a Goldman Sachs acertou três dos quatro semifinalistas, e isso estimulou um novo exercício. O livrinho lista cada país, dá um retrato de sua situação econômica e analisa cada seleção, avaliando seu futuro. Suas previsões:
-Colocou o Brasil como azarão, garantindo-lhe apenas a chegada às oitavas de final. Depois, teria um futuro negro, pois enfrentaria a Argentina, França ou Inglaterra.
-Previu que os quatro semifinalistas seriam Espanha, Itália, Argentina e França. Dois já foram para casa.
-Duvidou discretamente que Bélgica, Irlanda e Senegal se classificassem. Em compensação, acreditou no Uruguai e em Camarões. Ambos estão em casa.
Talvez seja possível tirar dessa previsão desastrosa algumas conclusões sobre os tiques que afetam o funcionamento das cabeças dos feiticeiros do mercado.
1) Aposte no que os outros apostam.
O'Neill fez a mesma previsão dos apostadores para as semifinais, com uma exceção: tirou o Brasil e colocou a Espanha.
2) Aposte no que está dando certo na série estatística.
Isso explica a entrada de Camarões (campeão da África) e o esquecimento do Senegal. Explica também o naufrágio das previsões no Grupo F, onde escolheu os derrotados.
3) Tome o mínimo de riscos possível, de forma a mostrar que você toma riscos, nada mais que isso.
Deu à Coréia uma "esperança" com ponta de ironia e fez fé no Paraguai. Acertou nos dois casos.
Pelos critérios analógicos da Goldman Sachs, quem é respeitado quando fala de economia deve ser ouvido quando fala de futebol. Resta saber se ela admite que quem entende de futebol tem o direito de votar em paz no candidato a presidente que bem entender.

ENTREVISTA

José Alexandre Scheinkman
(54 anos, professor de economia da Universidade Princeton)

A que o senhor atribui esse repentino nervosismo da banca internacional em relação ao Brasil?
A três fatores que se superpõem e que, se você tirar qualquer um deles da cena, pode afetar os outros, mas não os elimina. Há um nervosismo mundial que resulta das crises do final dos anos 90 e da recessão nos EUA. O risco passou a custar mais caro. Em comparação com 1997, as empresas americanas pagam hoje um adicional três vezes maior sobre as taxas de Tesouro. As taxas adicionais dos países emergentes mudaram de patamar e nunca mais voltaram aos níveis anteriores à crise de 1997. Antes da crise da Ásia, a sobretaxa paga por um país emergente era, na média, inferior a 4%. Hoje, é 7%. Essa incerteza foi agravada pela mudança imprevista e para pior, da política econômica do governo americano. Na segunda camada, fica o Brasil, com uma taxa de poupança medíocre e uma dívida interna que já passou os 55% do PIB, à qual está amarrada uma economia com um setor externo muito pequeno. Na terceira camada, está a eleição presidencial, com dois dos três candidatos (Lula e Ciro Gomes) associados a propostas de reestruturação da dívida. Se você olha para esses três fatores na ordem inversa, o que vê? Um país onde dois candidatos defendem a reestruturação da dívida, num mundo onde o risco ficou mais caro e a economia americana, mais incerta. O que as pessoas estão fazendo é quantificar a soma desses riscos. Inclusive os brasileiros que se protegem comprando dólares.

O que o próximo presidente deveria fazer?
Os candidatos que defendem a reestruturação deveriam ser mais claros. Na minha opinião, eles não deveriam ter levantado esse assunto. A reestruturação é às vezes inevitável, mas nunca deve ser antecipada. Já que o fizeram, devem dizer com clareza o que querem fazer. Seja qual for o governo, a economia brasileira continuará precisando de capitais externos. Deve-se levar em conta que o nervosismo de hoje está exagerado, não reflete uma desconfiança no longo prazo. É coisa mais imediata, e os US$ 10 bilhões do FMI ajudarão a baixar a tensão. O novo presidente terá que decidir entre três caminhos: cortar despesas públicas para melhor pagá-la, reestruturá-la ou aceitar uma taxa mais alta de inflação.

O senhor mencionou a má qualidade da política econômica americana. O presidente Bush não acabou virando um fator de risco maior que o Lula?
A política do governo americano revelou-se surpreendente. Esperava-se uma administração com forte grau de racionalidade, e veio o contrário. Ninguém era capaz de prever coisas como o protecionismo do aço e o aumento absurdo do subsídio à agricultura. Essas medidas não melhoram a economia americana. Pelo contrário, pioram-na, diminuindo, por exemplo, a competitividade da indústria de automóveis, obrigada a comprar o aço mais caro. Foram decisões eleitorais, pequenas. Os Estados Unidos tornaram-se um parceiro comercial menos previsível e menos confiável.



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