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São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2003

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QUESTÃO INDÍGENA

Presidente da maior organização de índios na América do Sul diz que órgão federal é "assistencialista e tutelar"

Líder cobra definição do governo Lula e fim da Funai

EDUARDO SCOLESE
DA AGÊNCIA FOLHA

Presidente da principal organização indígena da América do Sul, o índio brasileiro Sebastião Manchineri, 33, diz que a Amazônia está "furiosa" com a ação de traficantes e madeireiros. Para ele, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa pelo menos sinalizar suas intenções para a causa indígena e de imediato extinguir a Funai (Fundação Nacional do Índio), uma entidade "assistencialista, burocrática e tutelar".
Desde 2001, Manchineri, ou Haji Yine (nome indígena), preside a Coica (Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica), que representa 400 povos indígenas de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. Seu mandato vai até 2005.
Criada em 1984 no Peru e hoje com sede no Equador, a Coica se mantém com doações de ONGs e governos de países europeus. A seguir, trechos da entrevista, por telefone, de Quito (Equador):
 

Agência Folha - Como o sr. analisa a situação indígena na América do Sul, principalmente na Colômbia, onde há o tráfico e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)?
Sebastião Manchineri -
A situação é muito conflitiva na Amazônia. É violência total. A Colômbia é um exemplo claro disso. Não temos muita opção mesmo. Nem é difícil entrar [no narcotráfico]. O difícil é sair dessa situação porque esses atores vêm e nos puxam para um lado. Depois vêm os atores do governo, os paramilitares. Entre a guerrilha, o governo e os paramilitares, ninguém sabe em quem confiar. E os índios ficam na encruzilhada, sem alternativa, com os três grupos nos julgando como inimigo, traficante, espião, colaboradores. Ou seja, a gente já é pouco [na Colômbia] e, nessas circunstâncias, nos levam ao extermínio mesmo.

Agência Folha - E em outros países?
Manchineri -
Existem atos semelhantes na fronteira do Peru com o Brasil, como o narcotráfico e a ação dos madeireiros. As madeireiras têm a mesma prática do tráfico. A diferença é que elas têm a permissão do Estado. Mas os problemas são os mesmos, sofremos o mesmo tipo de injustiça. Não temos muitas alternativas. Temos pensado de maneira positiva, que a gente não vai ser eliminado assim tão fácil, mas parece ser um processo bastante previsível.

Agência Folha - E a situação no Brasil, onde índios têm exigido demarcações de terra, invadido sedes da Funai e feito até pessoas reféns?
Manchineri -
Temos visto o assassinato de líderes indígenas nos últimos meses, além das ameaças no Congresso Nacional. Um exemplo disso é a Raposa [terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, pleiteada por políticos locais]. As propostas de emendas querem acabar com nossos direitos constitucionais, como as demarcações de terra.

Agência Folha - Que avaliação o sr. faz dos primeiros cinco meses de governo Lula?
Manchineri -
Não que tenha piorado, mas as coisas vieram mais à tona. O governo não tomou posições firmes sobre o tema, precisa sinalizar qual é o horizonte que ele vai dar ao tema indígena. Ele não fez isso. Fica discutindo que vai reformular a Funai, colocando pessoas para assumir funções. Sabemos que isso não vai funcionar. A Funai tem de ser eliminada, criando um órgão novo, com idéias novas, pessoas novas, programas e ações novas.

Agência Folha - Quais são as críticas à Funai?
Manchineri -
A Funai é um órgão baseado em princípios assistencialistas e tutelares. Esse processo não é mais útil aos povos indígenas. A Funai tem um quadro impossível de se trabalhar. É tão burocrático, que as pessoas só vivem de favores.

Agência Folha - Então qual seria um modelo ideal?
Manchineri -
Precisamos criar um órgão ligado diretamente à Presidência que atue em coordenação permanente com as organizações indígenas, que seja eficaz tanto para a demarcação de terra como para agilizar as investigações sobre crimes.

Agência Folha - O sr. tem acompanhado a situação de conflitos na fronteira do Brasil com o Peru, onde tribos isoladas estão guerreando com os Ashaninkas? Qual é a consequência disso para os índios brasileiros, mesmo com o foco estando do lado peruano?
Manchineri -
Não podemos permitir que um grupo [de madeireiros] enriqueça em nome da miséria e da calamidade de outros povos. Temos orientado os governos [do Brasil e do Peru] a fazer uma proteção naquela área. Há um instigamento provocado [pelos madeireiros]. Eles querem o conflito para que os índios sumam daquela região e parem de denunciar o desmatamento.

Agência Folha - Como o sr. avalia a participação política dos índios na América do Sul? Existe a possibilidade de um maior espaço?
Manchineri -
Quando entramos na política para negociar direitos indígenas, passamos a não interessar mais para os demais [parlamentares]. Essa situação não é conveniente. No Brasil, a solução para a política indígena não é ser deputado, senador. A nossa possibilidade de continuar como povos é fortalecer nossos sistemas e organizações e valorizar as nossas ações internas. Se continuarmos querendo ser políticos, haverá cada vez mais crises de identidade.

Agência Folha - Já se falou muito sobre uma suposta intenção internacional de intervir na Amazônia. O sr. teme que isso ocorra?
Manchineri -
A Amazônia já está invadida. Em cada país há uma base dos Estados Unidos. Eles têm um forte controle externo em toda a região. No Brasil, eles estão em Alcântara [no Maranhão]. Esses atores vêm, fortalecem os grupos, encontram com os governos e depois justificam suas ações.
As Farc, os paramilitares, todos foram orientados e financiados por eles. Mas agora, quando o governo colombiano não tem mais o controle interno, [os EUA] vêm dar uma de bonzinho, dizendo que são a salvação para a paz. As Farc são um exemplo, uma justificativa de intervenção externa que afetaria todos os países amazônicos. Nossos governos não têm passado de meros expectadores.

Agência Folha - Os povos indígenas precisam de alguns "subcomandantes Marcos" [líder zapatista, no México] para lutar por seus direitos?
Manchineri -
Todos nós buscamos ter tranquilidade e paz, mas quem perdeu um familiar com uma bomba jamais esquece. Eu quero dizer que as ações desses terroristas disfarçados de governo vão criar mais e mais violência. Somos guerreiros, e não guerrilheiros, e, por natureza, nos defendemos. Esperamos que os nossos mecanismos de defesa, que são as leis, sejam eficazes.


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