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São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

ITAJIBA FARIAS FERREIRA CRAVO

Novo ouvidor das polícias de São Paulo exige mais assessores e diz que sede do órgão fica em "cortiço"

"Não esperarei fim do mandato para denunciar eventual boicote"

GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

O advogado Itajiba Farias Ferreira Cravo, 42, assumiu o cargo de ouvidor das polícias de São Paulo, Estado com o maior efetivo policial do país, em meio a um fogo cruzado. Em vez de tomar posição por uma das partes, preferiu dar um puxão de orelha nos dois protagonistas da discussão: o ex-ouvidor Fermino Fecchio e o secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho.
"Acho péssimo levar essa questão sob o ponto de vista pessoal. Quando se personalizou essa discussão, ficou uma questão de rinha, de comadre. E aí o erro é dos dois lados", afirmou Cravo.
O ex-ouvidor diz ter sido boicotado pela Secretaria de Segurança -de quem não teria recebido documentos solicitados e funcionários- por denunciar ações policiais irregulares. O governo nega (veja texto nesta página).
Em entrevista à Folha, o novo ouvidor definiu a sede da Ouvidoria como um "cortiço", reclamou do fato de não ter nem seu próprio computador para trabalhar e disse que o que importa são as instituições, não o ouvidor ou o secretário.
"Muitos policiais têm a imagem da Ouvidoria como uma tia velha burocrata, que não quer enxergar que o dia-a-dia deles pode justificar o descumprimento de determinadas normas", disse.
Segundo ele próprio, seu principal recurso para mudar essa imagem é a experiência com a violência -nos assaltos dos quais foi vítima, nas abordagens "heterogêneas" que sofreu da Polícia Militar e no trabalho de assistente de acusação em julgamentos envolvendo abusos policiais.
 
Folha - O ex-ouvidor Fermino Fecchio deixou o cargo dizendo ter sofrido boicote.
Cravo -
Se ele falou em boicote, quem sou eu para desautorizar? Agora, eu vou cobrar. Estou com a lista [de pedidos] feita e tenho o compromisso do secretário [de Segurança] de que ela será plenamente atendida.

Folha - Mas o senhor não teme sofrer esse eventual boicote?
Cravo -
Vou apontar eventual boicote na primeira semana em que ele começar a existir. Não vou esperar acabar o mandato e não ser reconduzido para apontar isso. O Fermino foi despejado da Ouvidoria e transferido para esse cortiço no início do mandato dele [a Ouvidoria foi transferida de um prédio em Higienópolis, atrás da antiga sede da secretaria, para o 2º andar de um prédio do centro de SP].
Os cargos que não foram providos estão vagos desde que o Mariano [Benedito Mariano, antecessor de Fecchio] saiu da Ouvidoria. Não vou esperar todo esse tempo para reclamar.

Folha - E quando a Ouvidoria vai sair do cortiço?
Cravo -
Daqui um mês a gente vai conversar.

Folha - No momento em que o senhor fala do não-preenchimento das vagas e do cortiço, não está confirmando o boicote?
Cravo -
Eu não posso falar porque eu não tinha proximidade da questão. É como briga de marido e mulher. Trabalhei com os outros dois ouvidores. Benedito Mariano sempre teve tudo à disposição. Eu quero a Ouvidoria que o Mariano teve. E ele teve uma posição sempre crítica.

Folha - O senhor acha que as polêmicas entre o último ouvidor e o secretário explicam essa situação?
Cravo -
Eu acho péssimo levar essa questão sob o ponto vista pessoal. Em algum momento, quando se personalizou, ficou questão de rinha, de comadre. E aí o erro é dos dois lados. A relação entre instituições deve ser mantida entre instituições. Personalizar isso é banalizar não só as instituições, como o processo democrático.

Folha - O ex-ouvidor falava de uma "política da matança" na polícia. Ela existe?
Cravo -
Não tive o acesso que ele teve em dois anos para abordar. Não seria uma pessoa capaz de desautorizar alguém que, seriamente, se debruçou nos dados. Mas não gosto de generalização. Também acho importante acabar com o círculo vicioso de só falar da polícia que extermina. Tive oportunidade de trabalhar com cadetes do Barro Branco [Academia da PM] e percebi ali sangue novo e uma polícia diferente, qualificada.

Folha - Quando o senhor fala em sangue novo, está falando só da academia ou também de quem comanda a polícia?
Cravo -
Existe também uma renovação no âmbito dos coronéis. Mas acho que a renovação ainda não atingiu completamente o comando. Melhorou bastante. Perto de outros governos, a mudança é significativa. Mais por demérito dos outros.

Folha - O senhor concorreu ao cargo de ouvidor quatro vezes. Ainda esperava ser nomeado?
Cravo -
Recebi com surpresa, mas sempre tive esperança de ser ouvidor. Acredito que posso contribuir com minha formação de advogado militante. E também tentar cooptar os bons policiais, a maioria na instituição. Mostrar que a Ouvidoria está do lado da sociedade e deles também.

Folha - A Ouvidoria chega a ser odiada pela categoria?
Cravo -
Ódio é uma palavra muito forte. Mas ela não é bem vista.

Folha - Que imagem os policiais têm da Ouvidoria?
Cravo -
Eu acho que eles têm a imagem de uma tia velha burocrata, que não quer enxergar que o dia-a-dia deles pode justificar o descumprimento de determinadas normas.
Algumas burocracias podem ser desnecessárias. Mas, na polícia, o devido processo legal é uma garantia democrática. Eles têm essa visão deturpada da Ouvidoria como alguém que possa atrapalhar o trabalho deles.

Folha - O senhor vai conseguir quebrar essa imagem?
Cravo -
Ou saio daqui com pelos menos uma parte da polícia enxergando que a Ouvidoria é uma aliada, ou fracasso no meu papel.

O senhor já fez sua lista de pedidos para a secretaria?
Cravo -
É a complementação do quadro funcional. Existem oito cargos vagos. Providos, são sete. A gente está pedindo simplesmente o cumprimento da lei que criou a Ouvidoria.

Folha - E equipamentos?
Cravo -
Temos nove computadores, mas todos com problemas. E o ouvidor, por exemplo, não tem computador. Fiz constar isso na lista de pedidos.

Folha - A mudança de sede está na lista?
Cravo -
O fundamental é gente e estrutura material. A questão da mudança ou da reforma, para mim, pode ser subsequente.

Folha - O senhor já foi vítima de abuso policial?
Cravo -
Eu trabalho de terno e gravata, normalmente. Enquanto trabalho assim, nunca fui abordado ou me pediram documento.
Coincidentemente, todas as abordagens que sofri da Polícia Militar foram quando estava na casa de praia, sem terno e gravata. Em todas as abordagens, eu estava dirigindo um carro vestindo camiseta e bermuda.

Folha - Quantas vezes?
Cravo -
Se eu falar que pelo menos duas ou três vezes por ano, é uma boa média.

Folha - O senhor avalia essa situação como um critério preconceituoso da polícia?
Cravo -
Eu não sei efetivamente qual é a palavra. Mas eu sei que o critério é, no mínimo, pouco recomendável. Indica, no mínimo, a falta de critério ou critério um pouco duvidoso.

Folha - O senhor já foi assaltado?
Cravo -
Fui assaltado tantas vezes que perdi a conta. Furtos eu não conto. Assaltos a mão armada, foram tranquilamente mais de cinco.

Folha - Na rua, no carro...
Cravo -
Três no carro. Já fui assaltado dentro de uma pizzaria, fiquei deitado no chão, e o cara ficava gritando: "cuidado que eu estou com o dedo mole hoje".

Folha - Sequestro relâmpago também?
Cravo -
Foi pior. Na Copa do Mundo de 98, eu voltava para casa eu fui abordado por esses "nóias" [usuários de crack] quando colocava a chave na porta de casa. Eram bem moleques. Cheguei a levar pontos, porque eles bateram na minha cabeça com a arma.

Folha - Vítimas de criminosos costumam falar em ódio e sentimento de vingança. O senhor sentiu isso?
Cravo -
Cada vez que sou assaltado, fico mais convicto da minha posição na defesa dos direitos fundamentais. Porque esse é o erro da sociedade.
A sociedade busca a figura da pena como uma questão de vingança. Isso é um erro causado pela ignorância.

Folha - E ameaças por causa do trabalho em favor dos direitos humanos?
Cravo -
Era muito comum, em júris na Justiça Militar, deixarem bilhetinhos nos meus códigos [Código Penal etc.]. Na Justiça Militar, até me acostumei.

Folha - Que tipo de bilhete?
Cravo -
Em um dos casos, tinha uma rima pobre assim: "se o senhor gosta de comida, prepare-se que vai comer formiga" (ri). Primeiro, era uma ameaça inócua. O ameaçador já tinha temor referencial, me chamava de senhor. Segundo, a pobreza da rima era triste.

Folha - Nenhuma dessas ameaças se concretizou?
Cravo -
Em 95 ou 97, não me lembro, eu ia sair com o carro quando percebi um homem vindo com um arma. Deitei no banco e engatei a primeira [marcha]. Ele atirou e conseguiu quebrar três vidros, mas não me feri.

Folha - Esse atentado foi esclarecido?
Cravo -
Não. Não faço idéia a qual caso estaria relacionado. Naquela época eram tantos casos com que a gente lidava que eu não consegui descobrir a relação.

Folha - A experiência de vítima ajuda no trabalho de ouvidor?
Cravo -
Acho fundamental. Acho, inclusive, que minha experiência é o diferencial em relação aos meus antecessores.
Mais do que advogado, sou advogado militante. Frequentei tribunais, frequentei delegacias. Aprendi na prática que o desrespeito aos direitos humanos é fruto da ignorância.



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