São Paulo, quarta-feira, 16 de agosto de 2000


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ELIO GASPARI
Louvada seja a cadeia de Bonetti

É com imenso prazer que aqui se festeja a condenação do engenheiro Renê Bonetti a seis anos e seis meses de prisão, mais uma indenização de US$ 198 mil que deverá pagar à sua ex-escrava Hilda Rosa dos Santos. Deve-se tão louvável sentença à juíza Débora Chasanow, da corte de Greenbelt, nos arredores de Washington.
Louvada seja essa cana. O doutor Bonetti importou ilegalmente sua negra em 1979 e colocou-a a trabalhar em casa sem lhe pagar salário.
Madame Bonetti só não foi junto porque se escafedeu e está no Brasil. Hilda tornou-se cidadã americana e Bonetti, presidiário.
O casal dizia uma frase que já se ouviu em muitas cozinhas brasileiras: "Ela era como uma pessoa da família".
É também com imenso prazer que se retorna a uma observação da historiadora Mary Karasch em seu magnífico livro "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)". Ela ensina: "Os castigos cruéis e excessivos eram usualmente os motivos que os abolicionistas davam para a alta mortalidade dos escravos, mas eu diria que o simples descaso desempenhava um papel mais significativo do que a crueldade".
Por menos que se goste do casal Bonetti, deve-se reconhecer que havia naquela casa um certo descaso pelos direitos da negra que a limpava e fazia a comida da mesa.
Só pode ter sido por descaso que a administração da empresa Agropecuária Córrego da Ponte ficou quase um ano sem assinar a carteira de uma de suas empregadas (Rosilene Pereira Neves) e de um tratorista (Volnei Evangelista Neves). Só as assinou na véspera do lançamento da candidatura de um dos sócios da empresa à Presidência da República. É óbvio que FFHH, cujo orçamento familiar sustentava-se na lisura das relações trabalhistas da Universidade de São Paulo com seus professores aposentados, nunca soube desses casos. Se soubesse, teria assinado as carteiras. Não soube e não lhe contaram que na sua fazenda de Unaí havia trabalhadores sem registro. Por quê? Descaso.
O doutor Bonetti trabalha num projeto relacionado com o Sivam. Patife coincidência. É notícia corriqueira em todas as reclamações da Comunidade Européia contra o grampo mundial da National Security Agency americana que a Raytheon derrubou a concorrente francesa Thomson depois de ter mostrado ao governo brasileiro que haviam rolado comissões para favorecê-la. Onde está a contrapartida brasileira? Não se sabe o nome de quem ofereceu dinheiro, de quem pediu e também não se sabe se alguém levou. Investigou-se nada. Cumplicidade? Não, descaso.
As ligações de Eduardo Jorge com o juiz Lalau eram comprometedoras. Se o Planalto fizesse caso, seu aparelho legal teria tomado providências para documentar o alcance dessa relação. Pode parecer maluquice, mas é assim que funciona a Casa Branca.
No anos 80, o secretário do Tesouro James Baker deu um passa-fora no ministro brasileiro Bresser Pereira, que tinha um plano para converter a dívida externa nacional em papéis de longo prazo e valor reduzido. Acusado de ter defendido os interesses do Banker$ Trust, de quem era acionista, Baker teve de se explicar. Sua conduta foi considerada imprópria.
Coisas desse tipo não funcionam em Brasília. Não é por falta de meios. É apenas descaso. Assim como, por descaso, ninguém está preocupado em discutir como se formou o consórcio que comprou a Vale do Rio Doce e, sobretudo, como o Bradesco tornou-se seu sócio oculto. Quando essa pequena história der confusão, vão acusar os procuradores. Muito menos em encarar a realidade financeira das campanhas eleitorais, em que, para cada real contabilizado, pelo menos outro rola por baixo da mesa (conta de um vitorioso de pelo menos dez eleições nacionais).
Há um mês foi assaltado um dos edifícios mais caros e bem guardados de São Paulo (cada apartamento vale US$ 2 milhões, R$ 4.000 de condomínio). Durante uma hora e meia diversos apartamentos foram varejados. Ao fim da noite, só três deles deram queixa à polícia. Pareceu-lhes normal não dar queixa e pareceu normal que não o fizessem. Maior sinal de degradação do conceito de segurança pública, uma cidade não pode dar. Mesmo assim, ninguém se incomodou com isso. Egoísmo? Não, descaso. O mesmo descaso que permitiu a Celso Pitta, o Interminável, perseguir o pedaço da população que mora embaixo dos viadutos, tungado-lhes objetos de uso pessoal.
O Brasil da cordialidade, da harmonia racial e da índole pacífica teve em Renê Bonetti um radical. No século 19, eram as fragatas inglesas que policiavam a costa de Pindorama para apreender navios negreiros (e ainda se ensina nas escolas que o imperador Pedro Banana foi um enérgico defensor da soberania nacional ao enfrentar o embaixador Christie).
No final deste século 20, finalmente um brasileiro foi para a cadeia (e provavelmente à bancarrota) por negar a uma negra seus direitos de cidadã. Bonetti, como os navios negreiros, foi aprisionado pela Justiça estrangeira, a americana. Já é alguma coisa.


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