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ELIO GASPARI
Louvada seja
a cadeia de Bonetti
É com imenso prazer que aqui
se festeja a condenação do engenheiro Renê Bonetti a seis anos
e seis meses de prisão, mais uma
indenização de US$ 198 mil que
deverá pagar à sua ex-escrava
Hilda Rosa dos Santos. Deve-se
tão louvável sentença à juíza Débora Chasanow, da corte de
Greenbelt, nos arredores de Washington.
Louvada seja essa cana. O doutor Bonetti importou ilegalmente
sua negra em 1979 e colocou-a a
trabalhar em casa sem lhe pagar
salário.
Madame Bonetti só não foi
junto porque se escafedeu e está
no Brasil. Hilda tornou-se cidadã
americana e Bonetti, presidiário.
O casal dizia uma frase que já
se ouviu em muitas cozinhas brasileiras: "Ela era como uma pessoa da família".
É também com imenso prazer
que se retorna a uma observação
da historiadora Mary Karasch
em seu magnífico livro "A Vida
dos Escravos no Rio de Janeiro
(1808-1850)". Ela ensina: "Os castigos cruéis e excessivos eram
usualmente os motivos que os
abolicionistas davam para a alta
mortalidade dos escravos, mas eu
diria que o simples descaso desempenhava um papel mais significativo do que a crueldade".
Por menos que se goste do casal
Bonetti, deve-se reconhecer que
havia naquela casa um certo descaso pelos direitos da negra que a
limpava e fazia a comida da mesa.
Só pode ter sido por descaso
que a administração da empresa
Agropecuária Córrego da Ponte
ficou quase um ano sem assinar
a carteira de uma de suas empregadas (Rosilene Pereira Neves) e
de um tratorista (Volnei Evangelista Neves). Só as assinou na véspera do lançamento da candidatura de um dos sócios da empresa
à Presidência da República. É óbvio que FFHH, cujo orçamento
familiar sustentava-se na lisura
das relações trabalhistas da Universidade de São Paulo com seus
professores aposentados, nunca
soube desses casos. Se soubesse,
teria assinado as carteiras. Não
soube e não lhe contaram que na
sua fazenda de Unaí havia trabalhadores sem registro. Por quê?
Descaso.
O doutor Bonetti trabalha num
projeto relacionado com o Sivam. Patife coincidência. É notícia corriqueira em todas as reclamações da Comunidade Européia contra o grampo mundial
da National Security Agency
americana que a Raytheon derrubou a concorrente francesa
Thomson depois de ter mostrado
ao governo brasileiro que haviam rolado comissões para favorecê-la. Onde está a contrapartida brasileira? Não se sabe o nome de quem ofereceu dinheiro,
de quem pediu e também não se
sabe se alguém levou. Investigou-se nada. Cumplicidade? Não,
descaso.
As ligações de Eduardo Jorge
com o juiz Lalau eram comprometedoras. Se o Planalto fizesse
caso, seu aparelho legal teria tomado providências para documentar o alcance dessa relação.
Pode parecer maluquice, mas é
assim que funciona a Casa Branca.
No anos 80, o secretário do Tesouro James Baker deu um passa-fora no ministro brasileiro
Bresser Pereira, que tinha um
plano para converter a dívida externa nacional em papéis de longo prazo e valor reduzido. Acusado de ter defendido os interesses
do Banker$ Trust, de quem era
acionista, Baker teve de se explicar. Sua conduta foi considerada
imprópria.
Coisas desse tipo não funcionam em Brasília. Não é por falta
de meios. É apenas descaso. Assim como, por descaso, ninguém
está preocupado em discutir como se formou o consórcio que
comprou a Vale do Rio Doce e,
sobretudo, como o Bradesco tornou-se seu sócio oculto. Quando
essa pequena história der confusão, vão acusar os procuradores.
Muito menos em encarar a realidade financeira das campanhas
eleitorais, em que, para cada real
contabilizado, pelo menos outro
rola por baixo da mesa (conta de
um vitorioso de pelo menos dez
eleições nacionais).
Há um mês foi assaltado um
dos edifícios mais caros e bem
guardados de São Paulo (cada
apartamento vale US$ 2 milhões,
R$ 4.000 de condomínio). Durante uma hora e meia diversos
apartamentos foram varejados.
Ao fim da noite, só três deles deram queixa à polícia. Pareceu-lhes normal não dar queixa e pareceu normal que não o fizessem.
Maior sinal de degradação do
conceito de segurança pública,
uma cidade não pode dar. Mesmo assim, ninguém se incomodou com isso. Egoísmo? Não, descaso. O mesmo descaso que permitiu a Celso Pitta, o Interminável, perseguir o pedaço da população que mora embaixo dos viadutos, tungado-lhes objetos de
uso pessoal.
O Brasil da cordialidade, da
harmonia racial e da índole pacífica teve em Renê Bonetti um radical. No século 19, eram as fragatas inglesas que policiavam a
costa de Pindorama para
apreender navios negreiros (e
ainda se ensina nas escolas que o
imperador Pedro Banana foi um
enérgico defensor da soberania
nacional ao enfrentar o embaixador Christie).
No final deste século 20, finalmente um brasileiro foi para a
cadeia (e provavelmente à bancarrota) por negar a uma negra
seus direitos de cidadã. Bonetti,
como os navios negreiros, foi
aprisionado pela Justiça estrangeira, a americana. Já é alguma
coisa.
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