São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2001

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ELIO GASPARI

As patrulhas militontas

Terminada a greve de cem dias dos professores das universidades federais, é boa a hora para se pensar em dois fenômenos ocorridos durante a paralisação: a criação de "comandos" ilegítimos e o exercício da prepotência como forma de intimidação.
É comum, e falso, o argumento segundo o qual assembléias com menos de 10% dos interessados não podem decidir em nome de uma categoria. Quem não vai, podia ter ido. Se não foi, não pode negar legitimidade às decisões tomadas por quem foi. Daí a se entregar à direção de um "comando" de professores (ou carpinteiros) escolhidos não se sabe por quem, vai uma distância muito grande. Deixando-se de lado o uso da palavra "comando", com toda a carga de obediência que sugere para a choldra de carpinteiros (ou professores), um movimento coletivo não pode ser dirigido por uma liderança sem origem conhecida. Sobretudo quando se sabe que em algumas faculdades esses "comandos" foram investidos de poder para decidir o que podia e o que não podia funcionar.
No campo da prepotência, houve de tudo nessas assembléias. Uma delas, documentada, informa que em assembléia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, decidiu-se, por 13 votos a um, que se encaminhasse um "pedido de esclarecimento aos professores que fizeram declarações à imprensa".
Numa linguagem críptica, pediam-se "esclarecimentos" aos professores Manolo Florentino e Paulo Bahia. Ambos haviam dado entrevistas defendendo o fim da greve e a volta ao trabalho.
O que vem a ser um "pedido de esclarecimentos"? Florentino e Bahia deveriam ir à próxima assembléia para esclarecer o que disseram? E quem tem autoridade para pedir-lhes isso? Eles podem dizer o que bem entendem e ninguém tem nada a ver com isso. Faça-se justiça ao ministro Paulo Renato Souza. Comeu o pão que o Tinhoso amassou, mas não ameaçou pedir "esclarecimentos" às pessoas que o atacavam. Seu jogo foi desastrado e bruto, porém limpo.
Quem cobrava "esclarecimentos" pelas opiniões alheias eram os coronéis dos inquéritos da ditadura. Os professores do IFCS sabem muito bem disso. A greve teve uma virtude. Inspirou uma aluna do instituto (Raquel Barreto) na cunhagem de um bonito neologismo: "militontos" e "militontas". Designa tanto militantes tontos como tontos militantes.


Uma viagem ao esquecido porão de Getúlio

Enfim um livro contra o "pai dos pobres". Nem tanto contra ele, apenas a conveniente lembrança da repressão política que amparou sua ditadura. Chama-se "Uma das coisas esquecidas - Getúlio Vargas e controle social no Brasil / 1930-1954". Seu autor é R. S. Rose, professor da Universidade Estadual da Califórnia.
Em 1954, quando se matou, Getúlio disse que se sentia sobre um "mar de lama". Rose mostra como boa parte dos 19 anos em que mandou no Brasil foram vividos sobre um mar de violência. Teve para todo mundo. Para a esquerda comunista, a partir de 1935. Para a direita integralista a partir de 1938. Como sempre, quem mais apanhou foi o andar de baixo, mas pouca gente se lembra. Pena que Rose tenha gasto só duas páginas, mas contou a história de José Lourenço, o beato cearense que formou uma comunidade de adoradores do boi "Mansinho", foi preso e obrigado a comer de sua carne. Uma parte de seus crentes resolveu enfrentar as forças da ordem e o caso terminou em 1938, com a tropa chacinando 400 miseráveis. Esse número supera, de longe, todos os mortos pela repressão aos comunistas e integralistas.
Rose é sanguíneo ao descrever os hábitos e as maracutaias dos barões da perseguição política dos regimes de Vargas. Traz uma curiosidade nova. Achou no serviço ativo da polícia carioca em 1951, 13 policiais que foram listados em 1940 para uma homenagem ao chefe de polícia Filinto Muller pela sua campanha de repressão ao comunismo. Nada demais num quadro funcional estável. Depois, com uma curiosidade velha, lembrou que Filinto veio a presidir a Arena, o partido do governo durante a ditadura instalada em 1964. Nada demais num quadro estável de violência política.
O próprio Rose explica o centro de sua preocupação com o esquecimento do lado ditatorial de Vargas: "Seus defensores queriam que acreditássemos que "quem censurava era Lourival Fontes, quem torturava era Filinto Muller, quem instituiu o fascismo foi Francisco Campos, quem deu o golpe foi Eurico Dutra e quem apoiava Hitler era Gois Monteiro'".
Lourival Fontes dirigia o Departamento de Imprensa e Propaganda, que proibiu a a exibição de "O Grande Ditador", de Charles Chaplin. Francisco Campos, o brilhante "Chico Ciência", redigiu a Constituição ditatorial de 1937. Mais tarde escreveria o preâmbulo liberticida do Ato Institucional de 1964.
O general Eurico Dutra foi peça-chave no golpe de 1937, que instituiu o Estado Novo. Em 1940 um soldado viu-o comemorando a tomada de Paris pelas tropas nazistas. Sucedeu Vargas na Presidência, pelo voto da maioria dos brasileiros.
O general Gois Monteiro chamava o 3º Reich de "obra gigantesca de ressurreição nacional". Até aí, há quem concorde. Seu problema, como chefe do Estado Maior do Exército foi ter achado que, depois de ter sido invadida em 1941, a União Soviética estaria "fora de causa" no primeiro semestre de 1942.


"Polêmica" é uma boa leitura

Está no ar uma revista eletrônica de boa qualidade. Chama-se "Polêmica", trata de educação, economia e tudo mais. Entre os colaboradores de sua última edição estão Eliane Zagury, com um artigo sobre a arte da tradução e José Saramago, com um convite à desconfiança de tudo o que possa ser o "factor Deus". (Saramago escreveu "factor" e só um louco traduziria um Prêmio Nobel da Literatura.)
Nessa edição há um artigo do professor Antonio Carlos Pinto Peixoto sobre as coisas do mundo. Vale a pena transcrever um trecho:
"Sem cair no discurso apologético a tudo que os Estados Unidos fizeram ou fazem, constitui um gravíssimo equívoco entrar, neste momento, no antiamericanismo difuso ou militante. Afirmar que os Estados Unidos estão colhendo o que plantaram porque ajudaram a guerra islâmica contra a tentativa de ocupação soviética do Afeganistão contraria a lógica dos fatos. (...) Responsabilizar os Estados Unidos pela agressão que os americanos sofreram é absurdo. Osama bin Laden não é o campeão dos pobres ou dos injustiçados e nem pode ser considerado um herói da luta contra a globalização. Ele é um terrorista, sua ação visou, primordialmente, abalar o prestígio do país hegemônico no mundo e fazer avançar deste modo a causa que ele defende: a do fundamentalismo que se expressa pelo terrorismo".
Serviço: O endereço de Polêmica é http://www2.uerj.br/ºlabore/polemica-3a.htm


Antes do Carnaval

Se El Rey d. Sebastião, que costuma reencarnar nas praias dos Lençóis maranhenses, continuar ajudando Roseana Sarney, ela bota a procissão de sua candidatura na rua no início de fevereiro. Logo depois do programa de televisão do PFL que vai ao ar no final de janeiro.
Até lá, todo seu esforço estará ocupado na costura de uma aliança que há seis meses só era concebida nos manicômios: a do PMDB de Ulysses Guimarães com o PFL de Jorge Bornhausen.


Ana iludiu FFHH

FFHH atrapalhou-se no seu discurso sobre a globalização ao citar frase de Léon Tolstói no início do romance Ana Karenina. Disse o seguinte: "Tolstói (...) começou o romance "Ana Karenina" dizendo que todas as famílias felizes são felizes da mesma maneira, mas cada família infeliz vive sua tristeza de forma única e inconfundível".
Depois, corrigiu o autor: "Não sei sequer se a primeira parte do que disse Tolstói era verdadeira, que todas as pessoas vivem a felicidade da mesma maneira".
Tolstói disse outra coisa. O seguinte: "Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira".
Os governos são como as famílias. O bons se parecem. Os ruins são ruins cada um à sua maneira.


Mau agouro

Logo depois da vitória americana na Guerra do Golfo, em 1991, George Bush pai chegou bater a marca dos 80% de popularidade. Sua reeleição era tão certa que o Partido Democrata achou melhor deixar que um tal de Bill Clinton avançasse com sua candidatura. No ano eleitoral de 1992, no meio de uma crise econômica, a lanchonete Gray's Papaya (o melhor cachorro-quente de Nova York), colocou um cartaz na sua porta anunciando a promoção "Especial da Recessão". Oferecia dois sanduíches e um suco por US$ 1,99.
Um supersticioso assegurava que se aquele cartaz estivesse lá no dia da eleição, Bush perderia a Presidência. Foi o que aconteceu.
Agora a popularidade de seu filho George W. chegou a 86%. Viajantes vindos de Nova York informam que o cartaz "Especial da Recessão" voltou para a calçada. O pacote agora custa US$ 2,45.
Serviço: O Gray's Papaya fica no cruzamento da Broadway com a rua 72.


ENTREVISTA
Aloizio Mercadante
(47 anos, deputado feral pelo PT de São Paulo)

O senhor conseguiu aprovar, por unanimidade, uma moção da Câmara dos Deputados recomendando a FFHH a suspensão das negociações para a criação da Alca. Essa posição aparentemente patriótica não engessa a área de ação do Executivo?
De maneira nenhuma. A Câmara dos Deputados dos Estados Unidos é que engessou a capacidade negociadora do presidente Bush. Eles aprovaram um conjunto de condições que deverão ser cumpridas pelos negociadores americanos na criação da Alca. Em nome do livre-comércio, engessaram seu protecionismo. Hoje os americanos impõem uma tarifa média de 45,6% aos 15 produtos brasileiros mais vendidos no seu mercado. No outro lado da conta, a tarifa média que o Brasil cobra aos 15 principais produtos que os americanos nos vendem é de 13,5%. Essa disparidade foi um dos fatores que nos transformou num grande colaborador do crescimento econômico da era Clinton. Entre 1995 e 2000, o balanço do nosso comércio com os Estados Unidos lhes rendeu um superávit de US$ 14 bilhões. Criamos mais de 200 mil empregos na economia americana. Se as barreiras aos nossos produtos fossem removidas, aumentaríamos as exportações em alguma coisa entre US$ 4 e US$ 6 bilhões ao ano.

Em que casos específicos as condições colocadas pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos prejudicam o Brasil?
Eles determinaram ao governo Bush que não negocie as salvaguardas já existentes para sua produção, bem como os mecanismos que protegem aquilo que chamam de "setores sensíveis". Para ficarmos só no protecionismo tarifário, manterão as barreiras para o aço, têxteis, calçados, açúcar e suco de laranja. No caso do açúcar, nós lhes podemos vender 52,7 mil toneladas, numa tarifa de 43%. Acima disso, o governo americano taxa o nosso produto em 236%. Isso encarece a tonelada em cerca de US$ 350, dificultando nossa entrada no mercado americano. A Câmara dos Deputados americana disse ao Executivo que ele deve negociar a Alca sem mexer em coisas desse tipo. Nada mais natural que a nossa Câmara diga ao presidente brasileiro que, nessas condições, a negociação torna-se inaceitável. A Câmara deles defende os interesses deles. A nossa defende os interesses nossos.

Se não devemos negociar a Alca, o que devemos fazer?
Devemos negociar a Alca. O que não devemos é negociar com um Executivo americano engessado pelo protecionismo. Se podemos negociar de verdade, negociemos. Se não podemos, fica tudo como está. Podemos fazer acordos, discutir produto por produto. Outro caminho é negociar a integração a sério, como fizeram os europeus. Lá, criou-se um fundo de compensação para impedir que países como Portugal e a Grécia tivessem suas economias devastadas por gigantes como a Alemanha e a França. Os Estados Unidos detêm 76% do PIB das Américas. O Brasil, que vem em segundo lugar, detém menos de 6%. Outro dia o secretário de Estado americano, Colin Powell, disse que a Alca é uma boa idéia porque permitirá aos Estados Unidos vender, "sem obstáculos ou restrições", mais produtos e serviços para um mercado de US$ 11 trilhões. Eu digo a mesma coisa. A Alca será uma boa idéia se permitir ao Brasil vender mais produtos e serviços para um mercado de US$ 11 trilhões. Se for um boa idéia só para eles, será a negociação do pescoço com a guilhotina.


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