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São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

Novo embaixador em Londres afirma que entrada do país na Opaq, órgão ligado à ONU, teria diminuído tensão com EUA

Queria inspeções no Iraque, diz Bustani

Lula Marques - 12.mar.03/Folha Imagem
O embaixador do Brasil no Reino Unido, José Bustani, durante entrevista no Palácio do Itamaraty


DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Depois de onze meses de limbo profissional, o embaixador José Maurício Bustani, 57, dá a volta por cima e assume no governo Lula a Embaixada do Brasil em Londres, uma das mais importantes da carreira, num momento especial: o Brasil aliou-se à França e à Alemanha contra a guerra do Iraque, mas o Reino Unido é o principal aliado dos Estados Unidos a favor da guerra.
O Itamaraty que recupera Bustani mudou, mas o embaixador também mudou. Ao ser destituído do comando da Opaq (Organização para a Proscrição das Armas Químicas, vinculada às Nações Unidas), por pressão dos Estados Unidos, ele era um crítico ácido tanto do governo George W. Bush quanto da gestão do ministro Celso Lafer no Itamaraty, durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Agora, ele não tem mais inimigos. Limita-se a criticar "a miopia" da gestão Lafer.
Um dos motivos para sua queda da Opaq foi seu empenho para incluir o Iraque e a Líbia entre os países-membros. Na quinta-feira passada, ele disse à Folha que, se isso tivesse ocorrido, as inspeções no Iraque teriam sido facilitadas e talvez a guerra não fosse tão iminente hoje.
Ao desembarcar em Londres no próximo domingo, Bustani já poderá encontrar um quadro de guerra praticamente definido pela aliança de Bush com os primeiros-ministros Tony Blair, britânico, e José Maria Aznar, espanhol.
Ontem, na Cúpula de Açores, esses três líderes deram prazo de 24 horas para que a ONU (Organização das Nações Unidas) aprove uma resolução abrindo caminho para a guerra.
Segundo Blair, hoje, segunda-feira, é "o momento da verdade". É este momento que espera Bustani em Londres.
(ELIANE CANTANHÊDE)

Folha - O sr. caiu em desgraça no governo FHC e dá a volta por cima no governo Lula. O que mudou?
José Bustani
- Eu posso garantir que o Bustani não mudou. Provavelmente, o Itamaraty mudou, porque mudou o ministro e voltamos a ter um ministro que eu reputo um dos maiores talentos e capacidades que esta Casa já teve.

Folha - O senhor acha importante o chanceler ser da carreira diplomática? Esse era um dos problemas do Celso Lafer?
Bustani -
Já tivemos bons chanceleres que não eram da carreira, mas isso depende do momento em que vive o país. O Brasil recente, da última década, precisa de um chanceler de carreira. Acho que você trazer uma pessoa de fora não facilita a implementação das linhas de governo. O ministro não pode ser uma figura de enfeite, deve ser uma pessoa de campo, um operador, um negociador. Isso é uma especialização.

Folha - Que faltava ao ministro Celso Lafer?
Bustani -
Eu não sei.

Folha - Então, o que o senhor chamou na sabatina no Senado de "momento míope", referindo-se ao governo anterior?
Bustani -
Houve momento em que a chefia do Itamaraty não soube reagir às pressões que foram colocadas sobre o governo brasileiro para mudar a direção da Opaq. Há duas semanas, os americanos tentaram fazer exatamente a mesma coisa com o diretor do CTBTO (organização para o fim dos testes nucleares, com sede em Viena), Wolfgang Hoffman, da Alemanha. O governo alemão reagiu com muito vigor, e o assunto foi abandonado.
Houve uma miopia no sentido de que o governo não entendeu o meu papel, que não era o de um funcionário internacional, parte das Nações Unidas, mas eleito por indicação do governo brasileiro. Portanto havia responsabilidade do governo pela qualidade do que eu estava oferecendo numa entidade internacional.
Se o governo brasileiro estivesse descontente com o meu trabalho, eu entendo que houvesse apoio a uma gestão para que eu saísse. Mas apenas seis meses antes de isso acontecer, o presidente Fernando Henrique Cardoso visitou a Opaq e fez largos elogios ao que estava sendo feito.

Folha - O que o senhor vê de novo neste Itamaraty no qual o senhor volta por cima?
Bustani -
Não acho que volto por cima, acho que volto para o lugar em que eu deveria ter estado sempre. O que mudou é que o presidente Lula conseguiu transmitir, não só para o Itamaraty, mas para o conjunto dos ministérios, esse sentido de missão.

Folha - O sr. caiu em desgraça por trombar de frente com o governo dos EUA, e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, hoje vice-chanceler, por discordar da proposta norte-americana para a Alca (Área de Livre Comércio para as Américas). A premiação de dois embaixadores que tiveram problemas por causa dos EUA projeta que tipo de política externa? O que se pode inferir disso?
Bustani -
Não posso falar pelo Samuel, mas no meu caso não houve confronto com os Estados Unidos. Eu fui retirado da Opaq por causa dos EUA, é verdade, mas não fiquei sem função por iniciativa dos EUA.

Folha - O que muda no governo Lula em relação à política com os EUA?
Bustani -
Os Estados Unidos são o parceiro mais importante do mundo, são importantíssimos. Você tem que encontrar um modus vivendi. Evidentemente, um modus vivendi com altivez e que não seja em detrimento dos interesses do Brasil.
Nós temos vontades próprias e temos a obrigação de defender os interesses da população brasileira. Você não precisa ser potência militar ou potência econômica para ser ouvido. Se bastasse isso, não precisava de Conselho de Segurança, bastava ter um só nome, o dos Estados Unidos. Estaria tudo resolvido. Por que a voz do presidente Lula está sendo ouvida por Chirac [presidente francês", Schröder [premiê alemão", pelo próprio Blair e pelo próprio Bush? Porque ele tem o que dizer. Isso caracteriza uma afirmação da identidade nacional.

Folha - O Brasil se aliou claramente à França e à Alemanha contra a guerra do Iraque, e o senhor será embaixador justamente no Reino Unido, que é o principal aliado dos Estados Unidos a favor da guerra. Qual o desafio?
Bustani -
A questão iraquiana é extremamente importante. Estamos às portas de uma guerra de grandes consequências que vão muito além daquela área, inclusive para o Brasil, mas não se pode dividir o mundo em torno dessa questão. Até porque a questão Iraque nunca pode ficar fora do contexto maior da solução do problema maior no Oriente Médio, de Israel e da Palestina.
Também é preciso ficar claro o papel do Blair de tentar uma ponte entre os interesses americanos e os da União Européia.
Já com o Iraque é mais complicado, porque a administração Bush tem uma percepção muito específica sobre isso. Isso pode ter dificultado um pouco a atuação do Blair e o tenha levado a certas posições que parecem, ou pareceram, de completo alinhamento com os EUA, o que não é tão evidente quanto parece.
Não há uma insistência para haver uma guerra, mas para não haver uma guerra. Qualquer iniciativa de qualquer país neste momento, inclusive do Brasil, deve ser bem vinda.

Folha - Uma posição do Brasil, portanto, pode ajudar a empurrar o Reino Unido para o outro lado, contra a guerra?
Bustani -
Acho que a posição de um embaixador brasileiro na Inglaterra é transmitir ao governo inglês as preocupações, visões e percepções do presidente Lula. E ele tem se manifestado de maneira transparente e eficaz.
Além disso, tenho ótimas relações com o Reino Unido e sou muito grato a eles pelo apoio que sempre me dedicaram na Opaq.

Folha - Por que o seu nome, então, demorou tanto a ser aceito como embaixador em Londres? Houve resistências?
Bustani -
De maneira nenhuma, tudo foi feito dentro do tempo regulamentar. O que ocorreu é que meu nome saiu na imprensa muito antes que a indicação fosse formalizada pelo governo brasileiro. Daí a sensação de demora, que não é verdadeira.

Folha - Uma das críticas que o senhor enfrentou na Opaq foi por tentar ampliar o quadro de países-membros incluindo, por exemplo, Iraque e Líbia. Isso não carimba o sr. como simpático a eles, ou contra os Estados Unidos?
Bustani -
Absolutamente. Eu não defendia a posição do Iraque, mas a posição daqueles que queriam que o Iraque aceitasse as inspeções. Dentro da Opaq, ele estaria sujeito às inspeções normalmente, como os demais. Juntamente com as Nações Unidas, nós poderíamos, desde aquela época, desbloquear a ação dos inspetores, aliviando uma crise que se acirrava.

Folha - É legítimo supor que os EUA se opunham radicalmente para ter um pretexto posterior para a guerra?
Bustani -
Eu não posso falar pelos Estados Unidos. Mas, se a inclusão na Opaq tivesse sido aceita naquele momento, quem sabe a presença dos inspetores das Nações Unidas tivesse sido precoce e muito mais eficaz do que vem sendo hoje? A minha intenção foi, exclusivamente, trazer o Iraque para as inspeções.

Folha - O sr. chega a Londres no próximo domingo (dia 23). Até lá já terá estourado a guerra?
Bustani -
Espero que não. Tenho muita fé de que os esforços sejam bem-sucedidos.

Folha - O sr. reclamava muito da arrogância dos EUA nos organismos internacionais, inclusive na própria ONU. E, agora, o que muda?
Bustani -
As Nações Unidas serão o que os Estados quiserem que elas sejam. É preciso que ela tenha uma personalidade que reflita a visão do conjunto dos Estados. Os EUA são os grandes financiadores e é natural que tenham um poder adicional de pressão, mas esse poder tem que ser contestado pelo poder de convencimento dos demais países, como Alemanha, Índia, Brasil, África do Sul, incluindo estes países emergentes. Alguns deles têm grande poder de influência até pela capacidade individual de seus líderes ou de seus delegados.

Folha - E a entrada do Brasil no Conselho de Segurança?
Bustani -
As chances do Brasil crescem. Aliás, o próprio Brasil cresce no cenário internacional, isso já está ficando evidente no governo Lula, tanto com o chanceler Amorim quanto com o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia.


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