São Paulo, Quarta-feira, 17 de Março de 1999
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JANIO DE FREITAS
Noções que se foram

A imposição dos assuntos econômicos, que tem nos jornais o seu principal agente, encobriu componentes de extrema gravidade na decadência geral brasileira, instaurada pelo obscurantismo da ditadura de 64 e realimentada no pós-ditadura, como avalanche, pela ação aceleradora de certos declínios sobre outros.
A literatura, a música, as artes plásticas, a ciência, o ensino, entre outras possíveis citações, são exemplos muito perceptíveis da degeneração da cultura nacional em incultura. São, porém, exemplos cuja grandiloquência os faz parecer pouco influentes na vida de cada um e, portanto, na destinação do país.
Transformações em geral tomadas por menos culturais, embora não o sejam, têm sido menos percebidas e, no entanto, talvez exprimam melhor as mudanças e, sobretudo, as perdas que consumiram, já, quase toda a identidade que o Brasil elaborava antes da ditadura e não pôde retomar depois dela, por falta dos alicerces. Algumas das incontáveis noções perdidas servirão para dar idéia fácil do problema.
Convencionou-se no Brasil atual que político não precisa ter o que nossos pais chamaram de vergonha na cara. Comprometer-se com um programa de promessas eleitorais e, eleito, jogá-las ao lixo -como governante ou como deputado e senador- não suscita nem crítica, quanto mais a repulsa merecida pelas pessoas sem palavra, quer dizer, sem caráter. Mudar de camisa política tornou-se tão natural que, agora mesmo, 1 em cada 10 deputados mudou de partido antes mesmo de empossado para compor o que mal se denomina, ainda, de Congresso. E tudo bem, a noção de dever político está perdida.
A negociação política é outra das deteriorações repugnantes. A busca de composições em torno de objetivos políticos e administrativos, por adaptações convenientes também às partes, corrompeu-se no cinismo da compra e venda entre o governo, e nele o próprio presidente da República como comprador, e senadores e deputados como vendidos donos de votos. E não só para alguma lei malandra. Até os princípios da Constituição, o documento mais elevado do país, são reduzidos a objetos de compra e venda.
A negociação foi simplificada em negócio baixo. Essa é, aliás, uma contribuição que marca o presente governo. As composições de governos, de alianças e de apoios ocasionais sempre envolveram, aqui como em qualquer país onde haja Parlamento, participações na administração pública e na formulação de planos de ação governamental. Mas o ""toma aqui e vota como eu quero" ou o "se não der o que eu quero, não tem o voto", esse varejo dos traficantes de cargos públicos, quando não de dinheiro sujo, só tem similar em zona de prostituição.
Políticas de governo são a razão de ser dos governos. Aqui, porém, são apenas mais uma noção perdida. Nem há quem ao menos as relembre -a política para a indústria automotiva, a política demográfica, da ocupação do solo nacional, das prioridades industriais inovadoras, e por aí afora. Na Presidência da República, no governo todo, no Congresso, a concepção é que tudo pode acontecer só no vai-da-valsa. Nada precisa ser pensado, planejado, orientado: quem quiser, que faça o que quiser onde quiser. Se for estrangeiro, pode fazer quase tudo de graça, porque o governo federal e os estaduais pagam os gastos com o dinheiro tomado à população.
Se os governantes não sabem o que caracteriza um governo, não saberiam, mesmo, distinguir entre um botequim e um instrumento de ação governamental. Na mediocrização pessoal dos governos (parte da decadência geral), a noção da existência e função desses instrumentos perdeu-se no vazio mental dos poderes.
Os mais recentes anúncios de privatização ilustram bem a noção perdida. Privatizar o Banco do Brasil, sim. Trata-se do maior instrumento, para não dizer único, de sustentação da agropecuária brasileira. É com o Banco do Brasil, presente em quase o país todo, que o governo ainda consegue fazer um arremedo tosco de política agrícola, suficiente para tapear as necessidades gerais. De exportador recordista de soja, o Brasil hoje é importador. E de milho e de feijão, e de leite (com ""o maior rebanho do mundo") e de batata. Quando o Banco do Brasil, do qual o governo depende até para estimar as safras, for vendido, que banco privado cumprirá o seu papel de instrumento de governo?
O mesmo se pode perguntar em relação à Caixa Econômica Federal, também posta no rol privatizável. É o único instrumento de governo para financiamentos de moradia, embora neste governo só alcançasse fracasso sobre fracasso nos planos obtusos de financiamento habitacional. E os Correios, agora. Tão estrategicamente importantes em países europeus, que os governos incluem um Ministério dos Correios. Tão importantemente estratégicos nos Estados Unidos, que o seu secretário, ou ministro, vem logo abaixo do vice-presidente na linha de sucessão presidencial.
Talvez tudo se explique por um modo simples: perdeu-se até a noção de país.


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