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JANIO DE FREITAS
Noções que se foram
A imposição dos assuntos econômicos, que tem nos jornais o
seu principal agente, encobriu
componentes de extrema gravidade na decadência geral brasileira, instaurada pelo obscurantismo da ditadura de 64 e
realimentada no pós-ditadura,
como avalanche, pela ação aceleradora de certos declínios sobre outros.
A literatura, a música, as artes plásticas, a ciência, o ensino,
entre outras possíveis citações,
são exemplos muito perceptíveis da degeneração da cultura
nacional em incultura. São, porém, exemplos cuja grandiloquência os faz parecer pouco
influentes na vida de cada um
e, portanto, na destinação do
país.
Transformações em geral tomadas por menos culturais,
embora não o sejam, têm sido
menos percebidas e, no entanto,
talvez exprimam melhor as mudanças e, sobretudo, as perdas
que consumiram, já, quase toda
a identidade que o Brasil elaborava antes da ditadura e não
pôde retomar depois dela, por
falta dos alicerces. Algumas das
incontáveis noções perdidas
servirão para dar idéia fácil do
problema.
Convencionou-se no Brasil
atual que político não precisa
ter o que nossos pais chamaram
de vergonha na cara. Comprometer-se com um programa de
promessas eleitorais e, eleito,
jogá-las ao lixo -como governante ou como deputado e senador- não suscita nem crítica, quanto mais a repulsa merecida pelas pessoas sem palavra,
quer dizer, sem caráter. Mudar
de camisa política tornou-se
tão natural que, agora mesmo,
1 em cada 10 deputados mudou
de partido antes mesmo de empossado para compor o que mal
se denomina, ainda, de Congresso. E tudo bem, a noção de
dever político está perdida.
A negociação política é outra
das deteriorações repugnantes.
A busca de composições em torno de objetivos políticos e administrativos, por adaptações
convenientes também às partes,
corrompeu-se no cinismo da
compra e venda entre o governo, e nele o próprio presidente
da República como comprador,
e senadores e deputados como
vendidos donos de votos. E não
só para alguma lei malandra.
Até os princípios da Constituição, o documento mais elevado
do país, são reduzidos a objetos
de compra e venda.
A negociação foi simplificada
em negócio baixo. Essa é, aliás,
uma contribuição que marca o
presente governo. As composições de governos, de alianças e
de apoios ocasionais sempre envolveram, aqui como em qualquer país onde haja Parlamento, participações na administração pública e na formulação
de planos de ação governamental. Mas o ""toma aqui e vota como eu quero" ou o "se não der o
que eu quero, não tem o voto",
esse varejo dos traficantes de
cargos públicos, quando não de
dinheiro sujo, só tem similar em
zona de prostituição.
Políticas de governo são a razão de ser dos governos. Aqui,
porém, são apenas mais uma
noção perdida. Nem há quem
ao menos as relembre -a política para a indústria automotiva, a política demográfica, da
ocupação do solo nacional, das
prioridades industriais inovadoras, e por aí afora. Na Presidência da República, no governo todo, no Congresso, a concepção é que tudo pode acontecer só no vai-da-valsa. Nada
precisa ser pensado, planejado,
orientado: quem quiser, que faça o que quiser onde quiser. Se
for estrangeiro, pode fazer quase tudo de graça, porque o governo federal e os estaduais pagam os gastos com o dinheiro
tomado à população.
Se os governantes não sabem
o que caracteriza um governo,
não saberiam, mesmo, distinguir entre um botequim e um
instrumento de ação governamental. Na mediocrização pessoal dos governos (parte da decadência geral), a noção da
existência e função desses instrumentos perdeu-se no vazio
mental dos poderes.
Os mais recentes anúncios de
privatização ilustram bem a
noção perdida. Privatizar o
Banco do Brasil, sim. Trata-se
do maior instrumento, para
não dizer único, de sustentação
da agropecuária brasileira. É
com o Banco do Brasil, presente
em quase o país todo, que o governo ainda consegue fazer um
arremedo tosco de política agrícola, suficiente para tapear as
necessidades gerais. De exportador recordista de soja, o Brasil hoje é importador. E de milho e de feijão, e de leite (com ""o
maior rebanho do mundo") e
de batata. Quando o Banco do
Brasil, do qual o governo depende até para estimar as safras, for vendido, que banco privado cumprirá o seu papel de
instrumento de governo?
O mesmo se pode perguntar
em relação à Caixa Econômica
Federal, também posta no rol
privatizável. É o único instrumento de governo para financiamentos de moradia, embora
neste governo só alcançasse fracasso sobre fracasso nos planos
obtusos de financiamento habitacional. E os Correios, agora.
Tão estrategicamente importantes em países europeus, que
os governos incluem um Ministério dos Correios. Tão importantemente estratégicos nos Estados Unidos, que o seu secretário, ou ministro, vem logo abaixo do vice-presidente na linha
de sucessão presidencial.
Talvez tudo se explique por
um modo simples: perdeu-se até
a noção de país.
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