São Paulo, quarta, 17 de junho de 1998

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ELIO GASPARI
Menem chuta sem bola

Quando a estrela de Tony Blair começou a brilhar na Inglaterra, um craque do Partido Conservador deu-lhe a seguinte ferroada:
"É pena que na política não possamos fazer como no futebol. Compraríamos o seu passe e estava tudo resolvido".
"Ele não entendeu que a política é uma coisa mais divertida que futebol", respondeu Blair.
Mais divertida talvez não seja, mas certamente mais criativa.
Há jogadores que fazem maluquices, mas por mais doidos que já tenham aparecido nos campos de todo o mundo, jamais se soube de um jogador que dava passes sem bola ou de outro que, recebendo-os, transformasse-os em gols. Em política isso é relativamente fácil.
Na semana passada, por exemplo, o jornal argentino "La Nación" publicou uma reportagem informando que uma eventual vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na sucessão presidencial brasileira ameaçava a continuidade do Mercosul. Essa ameaça derivaria de um compromisso de Lula com uma maxidesvalorização do real. Rolada a bola, Menem chutou, insinuando que Lula poderia destruir o Mercosul.
O passe não teve bola. Lula não defende a maxidesvalorização do real. O chute de Menem foi apenas um chute, destinado a engordar a lista de bruxarias que se pretende atribuir ao candidato do PT. Falta pouco para que o acusem de planejar a revogação da Lei Áurea ou a proibição dos desfiles de escolas de samba.
Como se Menem tivesse dito uma coisa verdadeira, o vice-chanceler argentino, Andres Cisneros, argumentou que "devemos nos acostumar à idéia de que existem coisas como o Mercosul, em defesa do qual todos têm o direito de opinar".
As pessoas podem se acostumar ao que bem entenderem, mas o doutor Cisneros está trocando as bolas. Uma coisa é defender o Mercosul. Outra é defender o sistema cambial que marca a atual fase das relações econômicas Brasil-Argentina.
Para começo de conversa, a Argentina não tem moeda. Soberana e resolutamente, abdicou do direito de tê-la quando atrelou o seu valor ao do dólar americano. Ou seja, quem zela pelo valor da moeda americana é o Federal Reserve Board. Essa política pode ser boa ou má, mas é essencialmente argentina. Brasileira, não é.
O presidente Menem não nasceu ontem. Ele sabe muito bem que Lula não defende a maxidesvalorização do real. Aceitou o passe imaginário e chutou a bola inexistente para mostrar ao Planalto que está em boa forma física. Seu objetivo foi hostilizar Lula, defender os interesses argentinos e, de quebra, dar uma ajuda a FFHH, com quem não simpatiza e de quem já levou tanto afagos quanto trancos.
Qualquer pessoa capaz de somar dois e dois sabe perfeitamente que uma vitória de Lula fere os interesses da comunidade financeira internacional. Banqueiros, corretores e empresas de consultoria que rodam pelo mundo em busca de bons negócios acham FFHH apenas razoável. Gostariam que ele pisasse mais fundo nas políticas fiscais e na privataria.
O que está em questão para o eleitor brasileiro não é a percepção de que a banca internacional tem de Lula ou a sua incapacidade de reverter essa imagem, até porque o problema não é de imagem, mas de essência. Está em questão o direito do eleitor brasileiro de eleger para a Presidência da República um cidadão de quem essa corporação não gosta.
O dilema da preservação da pureza do crédito internacional já foi posto na mesa da sucessão presidencial em 1978. As eleições eram indiretas e havia dois candidatos, o general João Baptista Figueiredo, jogando pelo governo, com o apoio da banca, e o general Euler Bentes Monteiro, pela oposição (com o discreto apoio do professor Fernando Henrique Cardoso). Ele defendia uma desaceleração do endividamento externo e por isso foi acusado de primitivo, nacionalista e insensato. Foi derrotado. Três anos depois o sonho globalizador da época terminou numa quebradeira.
Não há um só banqueiro, chanceler ou presidente estrangeiro que seja capaz de dizer o que é bom para Brasil sem antes examinar direito o que é bom para seu negócio ou para seu país. Vivem disso e seria tolice supor que fizessem diferente, assim como é julgar que os brasileiros são tolos quando se pensa que eles são capazes de acreditar na filantropia política dos outros.
O chute de Menem foi tão grosseiro que levanta a possibilidade de se estar criando um risco adicional para FFHH. Numa hora em que a perplexidade e o oportunismo fazem escassear os aliados internos que partem em sua defesa, abundam no exterior os corajosos defensores de sua política, como se lhe fosse mais fácil vencer a eleição em Paris, Buenos Aires ou Nova York.
Parece a piada iraniana, na qual a imperatriz Farah Diba, vendo o Xá do Irã perdido, perguntou ao primeiro-ministro por que não se fazia por ele o que se fizera por De Gaulle, em 1968, na França.
"O quê?", perguntou o primeiro-ministro.
"Uma grande passeata, descendo o Champs Elysées", respondeu a senhora.
"Passeata no Champs Elysées eu consigo, majestade. Aqui em Teerã é que não dá mais."
O mais triste na precipitação da baixaria é que os defensores de FFHH estão puxando navalhas sem a menor necessidade. A campanha eleitoral ainda não começou. Ele caiu nas pesquisas mas continua à frente. Sua capacidade de corrigir os erros é muito maior que a dos seus adversários de mostrar que são capazes de fazer o certo. Até os seus inimigos reconhecem que é o favorito. Nada disso justifica que se imponha a sua figura o toque de histeria do Enéas.



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