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ARTIGO
Franco Montoro
JOSÉ SERRA
especial para a Folha
"...quanto ao arrependimento na vida pública, é coisa que não carrego
comigo. Eu sigo um velho ensinamento do padre Lebret: o importante
é você se considerar um Zé-ninguém
a serviço de uma grande obra. Sou
um Zé-ninguém há 80 anos, mas
posso olhar para trás com orgulho e
para a frente com esperança."
Franco Montoro, julho de 1996
Era uma noite bem escura e fria de julho, em
1988. Chegamos à Câmara de Vereadores de
Cruzeiro, eu e o Geraldo
Alckmin, acompanhando Franco Montoro, depois de percorrer todo o
Vale do Paraíba empenhados na fundação e
organização do PSDB
nos municípios.
O Geraldo sempre recorda: já era tarde, atrasáramos muito, não havia mais do que cinco ou
seis pessoas no plenário,
entre elas o presidente
local do partido e o deputado da região. Montoro foi o último a falar:
"Meus amigos (...) é o
entusiasmo de vocês
que nos motiva, que nos estimula
nesta luta para mudar o Brasil".
Esse era o Montoro: o homem
público mais entusiasmado que
conheci, capaz de dedicar o mesmo esforço de persuasão a uma
grande multidão e a um pequeno
grupo de militantes (preferencialmente jovens).
Contrariando uma lei da política, entrou na vida pública bem
moço e deixou-a ontem de madrugada, cinco ou seis décadas
depois, mais idealista, lúcido e
otimista sobre o futuro. Pertencia
àquele grupo de pessoas que, sabendo que vão morrer amanhã,
são capazes de dedicar-se, na véspera, a plantar um carvalho.
No Congresso, na Assembléia
Legislativa, na Câmara de Vereadores, foi um legislador exemplar.
À frente do governo de São Paulo,
mostrou que era também um
grande executivo. Quando ele assumiu o governo eu havia recém-chegado do exílio e não conhecia
de perto as práticas da política oficial: por isso, na ocasião, não valorizei bem o seu estilo de formar
uma equipe procurando selecionar os melhores e ignorando ou
resistindo de forma desassombrada às pressões fisiológicas.
Fui talvez seu secretário de Estado mais próximo durante três
anos, anotando, diariamente, sua
paciência infinita, sua tolerância
para com os defeitos dos outros e
as divergências dos adversários.
Era incapaz de insultar alguém,
pela frente ou por trás: respeitar o
próximo era seu modo de ser. Tinha, como comandante de equipe, uma qualidade rara, que ajudou muito o desempenho do seu
governo: não concorria com seus
subordinados. Vibrava com seus
eventuais sucessos, não tripudiava sobre seus fracassos. Não centralizava a administração embora, diga-se de passagem, soubesse
cobrar os resultados e fazer trocas
de pessoas nos momentos adequados.
A propósito de erros e fracassos,
lembro de um jantar simples,
com ele e a dona Lucy, na ala residencial do palácio onde hoje seu
corpo é velado. Estávamos no começo do governo e, não sendo da
mesma natureza de Montoro, cujo ânimo sempre voava mais alto,
eu expunha meus receios sobre o
futuro da administração, comprometida pelo descalabro que
herdáramos do governo anterior,
pela crise econômica que corroía
as receitas, pela demanda de serviços sociais da população desempregada e pela combatividade
do funcionalismo que, compreensivelmente, tinha pressa em
recuperar seu poder aquisitivo
corroído. Apesar de que não era
dado a conselhos e a emissão de
juízos, Montoro fez uma reflexão
que tratei sempre de assimilar e
que acabei reencontrando muito
tempo depois num poema de Kipling, lembrado por Borges: não
se perturbe muito pois o êxito e o
fracasso são impostores. Ninguém fracassa tanto quanto acredita nem tem tanto êxito como
imagina.
A convivência diária no trabalho permitiu-me também aprender pequenos detalhes do seu estilo de fazer política. Em relação à
imprensa, por exemplo, ele exibia
três particularidades invejáveis,
que nunca pude copiar bem, embora tenha me esforçado. Primeiro, nunca reclamava de notícias
injustas, por erradas, ou de comentários agressivos, por passionais. Segundo, não costumava falar em "off" para jornalistas. Aliás,
Montoro não tinha "off": o que
dizia num cochicho, tirando a forma, era o que dizia numa reunião
ou num jantar com a dona Lucy
ou o Andrezinho. Terceiro, quando alguém o procurava nervoso
para comentar ou reclamar de alguma notícia da imprensa, ele invariavelmente respondia que não
tinha lido. Com isso, conhecia
primeiro a opinião do seu interlocutor, evitava fazer avaliações
precipitadas e economizava conversas tensas e demoradas, que
ele detestava.
Montoro nasceu conciso; de fato, só perdia a proverbial paciência quanto tinha de ouvir discursos longos nos palanques. Manifestava, embora educadamente,
sua pressa e fazia comentários ao
pé do ouvido que deliciavam seus
companheiros de palanque, como o Fernando Henrique, o Covas, e lembro-me, o dr. Ulysses
Guimarães.
Há três anos, quando completou 80 anos, o jornalista Elio Gaspari perguntou-lhe: "Olhando para trás, qual foi seu melhor momento na política? E algum de que
se arrependa?" Montoro: "Eu me
orgulho de duas coisas. Primeiro
de ter iniciado a campanha pelas
eleições diretas para presidente.
Segundo, de ter sido o primeiro
governante brasileiro a lutar obsessivamente pela descentralização dos poderes do Estado e pela
participação da sociedade civil no
processo de desenvolvimento.
Eram idéias consideradas inviáveis. Hoje fazem parte do cotidiano de nossa vida política". A segunda parte da resposta está na
na epígrafe: um Zé-ninguém a
serviço de uma grande obra.
Poderíamos acrescentar o seu
balanço: nós todos nos orgulhamos de termos convivido e procurar seguir o exemplo de um homem que provou a verdade dos
filósofos - São Francisco, Buda,
Maomé e Maimonides: a melhor
forma de servirmos a nós próprios e sermos felizes, é dedicar-se
aos outros, diminuir seus sofrimentos e lutar por sua felicidade.
José Serra, 57, é ministro da Saúde.
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