São Paulo, Sábado, 17 de Julho de 1999
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ARTIGO
Franco Montoro

JOSÉ SERRA
especial para a Folha

 "...quanto ao arrependimento na vida pública, é coisa que não carrego comigo. Eu sigo um velho ensinamento do padre Lebret: o importante é você se considerar um Zé-ninguém a serviço de uma grande obra. Sou um Zé-ninguém há 80 anos, mas posso olhar para trás com orgulho e para a frente com esperança."
Franco Montoro, julho de 1996

Era uma noite bem escura e fria de julho, em 1988. Chegamos à Câmara de Vereadores de Cruzeiro, eu e o Geraldo Alckmin, acompanhando Franco Montoro, depois de percorrer todo o Vale do Paraíba empenhados na fundação e organização do PSDB nos municípios.
O Geraldo sempre recorda: já era tarde, atrasáramos muito, não havia mais do que cinco ou seis pessoas no plenário, entre elas o presidente local do partido e o deputado da região. Montoro foi o último a falar: "Meus amigos (...) é o entusiasmo de vocês que nos motiva, que nos estimula nesta luta para mudar o Brasil".
Esse era o Montoro: o homem público mais entusiasmado que conheci, capaz de dedicar o mesmo esforço de persuasão a uma grande multidão e a um pequeno grupo de militantes (preferencialmente jovens).
Contrariando uma lei da política, entrou na vida pública bem moço e deixou-a ontem de madrugada, cinco ou seis décadas depois, mais idealista, lúcido e otimista sobre o futuro. Pertencia àquele grupo de pessoas que, sabendo que vão morrer amanhã, são capazes de dedicar-se, na véspera, a plantar um carvalho.
No Congresso, na Assembléia Legislativa, na Câmara de Vereadores, foi um legislador exemplar. À frente do governo de São Paulo, mostrou que era também um grande executivo. Quando ele assumiu o governo eu havia recém-chegado do exílio e não conhecia de perto as práticas da política oficial: por isso, na ocasião, não valorizei bem o seu estilo de formar uma equipe procurando selecionar os melhores e ignorando ou resistindo de forma desassombrada às pressões fisiológicas.
Fui talvez seu secretário de Estado mais próximo durante três anos, anotando, diariamente, sua paciência infinita, sua tolerância para com os defeitos dos outros e as divergências dos adversários. Era incapaz de insultar alguém, pela frente ou por trás: respeitar o próximo era seu modo de ser. Tinha, como comandante de equipe, uma qualidade rara, que ajudou muito o desempenho do seu governo: não concorria com seus subordinados. Vibrava com seus eventuais sucessos, não tripudiava sobre seus fracassos. Não centralizava a administração embora, diga-se de passagem, soubesse cobrar os resultados e fazer trocas de pessoas nos momentos adequados.
A propósito de erros e fracassos, lembro de um jantar simples, com ele e a dona Lucy, na ala residencial do palácio onde hoje seu corpo é velado. Estávamos no começo do governo e, não sendo da mesma natureza de Montoro, cujo ânimo sempre voava mais alto, eu expunha meus receios sobre o futuro da administração, comprometida pelo descalabro que herdáramos do governo anterior, pela crise econômica que corroía as receitas, pela demanda de serviços sociais da população desempregada e pela combatividade do funcionalismo que, compreensivelmente, tinha pressa em recuperar seu poder aquisitivo corroído. Apesar de que não era dado a conselhos e a emissão de juízos, Montoro fez uma reflexão que tratei sempre de assimilar e que acabei reencontrando muito tempo depois num poema de Kipling, lembrado por Borges: não se perturbe muito pois o êxito e o fracasso são impostores. Ninguém fracassa tanto quanto acredita nem tem tanto êxito como imagina.
A convivência diária no trabalho permitiu-me também aprender pequenos detalhes do seu estilo de fazer política. Em relação à imprensa, por exemplo, ele exibia três particularidades invejáveis, que nunca pude copiar bem, embora tenha me esforçado. Primeiro, nunca reclamava de notícias injustas, por erradas, ou de comentários agressivos, por passionais. Segundo, não costumava falar em "off" para jornalistas. Aliás, Montoro não tinha "off": o que dizia num cochicho, tirando a forma, era o que dizia numa reunião ou num jantar com a dona Lucy ou o Andrezinho. Terceiro, quando alguém o procurava nervoso para comentar ou reclamar de alguma notícia da imprensa, ele invariavelmente respondia que não tinha lido. Com isso, conhecia primeiro a opinião do seu interlocutor, evitava fazer avaliações precipitadas e economizava conversas tensas e demoradas, que ele detestava.
Montoro nasceu conciso; de fato, só perdia a proverbial paciência quanto tinha de ouvir discursos longos nos palanques. Manifestava, embora educadamente, sua pressa e fazia comentários ao pé do ouvido que deliciavam seus companheiros de palanque, como o Fernando Henrique, o Covas, e lembro-me, o dr. Ulysses Guimarães.
Há três anos, quando completou 80 anos, o jornalista Elio Gaspari perguntou-lhe: "Olhando para trás, qual foi seu melhor momento na política? E algum de que se arrependa?" Montoro: "Eu me orgulho de duas coisas. Primeiro de ter iniciado a campanha pelas eleições diretas para presidente. Segundo, de ter sido o primeiro governante brasileiro a lutar obsessivamente pela descentralização dos poderes do Estado e pela participação da sociedade civil no processo de desenvolvimento. Eram idéias consideradas inviáveis. Hoje fazem parte do cotidiano de nossa vida política". A segunda parte da resposta está na na epígrafe: um Zé-ninguém a serviço de uma grande obra.
Poderíamos acrescentar o seu balanço: nós todos nos orgulhamos de termos convivido e procurar seguir o exemplo de um homem que provou a verdade dos filósofos - São Francisco, Buda, Maomé e Maimonides: a melhor forma de servirmos a nós próprios e sermos felizes, é dedicar-se aos outros, diminuir seus sofrimentos e lutar por sua felicidade.


José Serra, 57, é ministro da Saúde.

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