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ARTIGO
Um grande homem público
LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
especial para a Folha
André Franco Montoro foi o
mais notável homem público brasileiro que conheci. Foi um grande governador de São Paulo, fez
por quase 70 anos uma carreira
política sem jaça.
Foi líder da Ação Católica, foi
um dos fundadores do Partido
Democrata Cristão, foi vereador,
foi várias vezes deputado e senador. Foi Ministro do Trabalho de
João Goulart e no governo parlamentarista de Tancredo Neves.
Lutou sempre pela democracia
e pela justiça social, primeiro no
MDB, depois no PMDB, e finalmente no PSDB, do qual se tornou presidente de honra. Foi professor de Introdução ao Direito na
PUC de São Paulo.
Teve sempre ao seu lado uma
mulher solidária e companheira.
Foi pai de sete filhos unidos, voltados, como ele, para as causas
públicas: uma educadora, um
economista e político, um jurista,
um arquiteto, um administrador
público e uma poeta. Em seu governo do Estado, reuniu uma
equipe da qual foi mestre na política: José Serra, Paulo Renato, José
Gregori, Clóvis Carvalho, Andrea
Calabi, Michel Temer, Geraldo
Alkimin, Yoshiaki Nakano, João
Sayad, José Carlos Seixas, João
Yunes, Roberto Gusmão, Antônio Angarita, Gilberto Dupas,
Paulo Sérgio Pinheiro e tantos outros.
Conheci Franco Montoro ainda
adolescente, quando fiz "boca-de-urna" para sua eleição para vereador. Depois, quando o PDC
decidiu apoiar Juarez Távora contra Juscelino Kubitschek, me afastei do partido e da política. Muitos
anos se passaram, Montoro como
ministro do Trabalho, lutando e
logrando a sindicalização rural
-que, garantia, não seria radical.
Montoro na Câmara dos Deputados e depois no Senado, sempre
na oposição ao regime militar,
sempre firme na defesa do regime
democrático.
Quando me encontrava com
ele, eu economista, ele político, ele
se aproximava, conversava, defendia suas idéias, e embora sabendo que eu me julgava um pouco mais à esquerda do que ele, e
mais voltado para a questão do
desenvolvimento nacional, ele
encontrava uma forma de me
convocar para alguma causa pública.
Fui chamado de volta à política
quando ele e seu filho André me
convidaram para participar da
formulação do plano de governo
de São Paulo. Eleito governador,
fui por ele convidado para presidente do Banespa, nos primeiros
dois anos, 1983-84, e para secretário do Governo, nos dois anos seguintes.
Montoro era modesto, não conhecia a arrogância. Foi esse um
dos segredos do grande governo
que realizou em São Paulo, cujo
primeiro ano foi marcado por
grande crise econômica, instabilidade social, desvalorização da
moeda e ajuste fiscal. Montoro
era político e jurista, não era executivo. Sabia disto. Não teve dúvida, portanto, em delegar grande
parte da atividade executiva de
seu governo à sua equipe, principalmente a José Serra.
Ninguém tinha dúvidas de que
ele era o governador, era quem
definia as diretrizes, tomava as
iniciativas e as decisões mais importantes, e nos dava o respaldo
político, mas a administração firme das finanças e um plano de
governo competente foram delegados à sua equipe.
Montoro foi firme e corajoso.
Nada ilustra melhor sua coragem
do que sua luta permanente contra a ditadura, que culminou na
sua decisão de realizar na praça
da Sé, no início de 1984, o grande
comício que deslanchou a campanha das "Diretas-Já". A maioria
dos seus assessores o desaconselhava. Seria perigoso, não apareceria ninguém. Mas Montoro não
hesitou um momento. E o grande
comício que organizou ficará na
história do país.
Montoro era generoso. Derrotada no Congresso a tese das eleições diretas, foi ele quem teve a
iniciativa, ajudado por Roberto
Gusmão, de fazer a articulação
com Tancredo Neves e com os demais governadores de oposição
para lograr a eleição no colégio
eleitoral, de um candidato da
oposição. E, embora fosse o candidato natural, não teve dúvida
em ceder seu posto a Tancredo
Neves, pelas melhores condições
que este tinha de dividir o partido
do governo militar. Como Montoro era generoso, jamais passava
pela sua cabeça abafar os jovens,
ou dividir os companheiros para
garantir seu poder.
Montoro era um notável orador, como todo político deve ser,
e um homem público com a sensibilidade para as necessidades e
demandas da população. Nos
anos 60, sua frase "salário não é
renda" ficou famosa. Ela pode ser
discutível do ponto de vista econômico, mas fazia um enorme
sentido político e social em um
Brasil em que os salários dos trabalhadores eram tão baixos.
Montoro era um homem prático, que vivia com os pés no chão,
mas, ao mesmo tempo, era sempre, e antes de mais nada, um político de princípios. Nunca vi antes e creio que não verei no futuro
um político que, além de fiel a
seus princípios éticos, os reafirmava sempre, em qualquer circunstância. E ao fazê-lo, muitas
vezes se repetia. Mas todos o ouvíamos com a maior atenção e
respeito, porque ali a voz era coerente com a ação.
Um antropólogo francês, Pierre
Clastres, ao procurar caracterizar
o chefe índio americano (exceto
os das grandes civilizações incas,
astecas e maias), afirmou que eles
possuíam três qualidades fundamentais: a coragem, a generosidade, e a capacidade de falar e repetir, todas as tardes, os valores e
crenças de sua tribo. Montoro era
assim: corajoso, generoso, e com
uma infinita capacidade de reafirmar princípios e valores.
Montoro, finalmente, era um
otimista. Ele jamais descria da humanidade. E cria antes na bondade e na capacidade de cooperação
do que no egoísmo dos homens e
mulheres. Ele jamais se dava por
vencido. Ainda na última vez que
o encontrei, ele reafirmava sua
crença no parlamentarismo, e
contava o que estava fazendo para
trazer de novo o problema para a
agenda política do país.
Não sou homem de chorar. Minha mãe me dizia que homem
não chora. Mas nas duas últimas
semanas chorei. Primeiro, quando a nova Orquestra Estadual de
São Paulo e grande coro tocaram
e cantaram o hino nacional na
inauguração da sala de concerto
que Mário Covas construiu na velha e bela estação Júlio Prestes.
Agora, quando minha mulher me
telefonou de São Paulo, nesta manhã, informando a morte do dr.
André. Foram duas emoções
muito fortes: uma de alegria, a outra, de tristeza. Mas ambas relacionadas com a crença no Brasil e
no seu povo, que Montoro sempre professou.
Luiz Carlos Bresser Pereira, 64, é professor
titular de economia da Fundação Getúlio
Vargas (SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma
do Estado (governo Fernando Henrique Cardoso) e da Fazenda (governo Sarney).
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