São Paulo, Sábado, 17 de Julho de 1999
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ARTIGO
Um grande homem público

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
especial para a Folha

André Franco Montoro foi o mais notável homem público brasileiro que conheci. Foi um grande governador de São Paulo, fez por quase 70 anos uma carreira política sem jaça.
Foi líder da Ação Católica, foi um dos fundadores do Partido Democrata Cristão, foi vereador, foi várias vezes deputado e senador. Foi Ministro do Trabalho de João Goulart e no governo parlamentarista de Tancredo Neves.
Lutou sempre pela democracia e pela justiça social, primeiro no MDB, depois no PMDB, e finalmente no PSDB, do qual se tornou presidente de honra. Foi professor de Introdução ao Direito na PUC de São Paulo.
Teve sempre ao seu lado uma mulher solidária e companheira. Foi pai de sete filhos unidos, voltados, como ele, para as causas públicas: uma educadora, um economista e político, um jurista, um arquiteto, um administrador público e uma poeta. Em seu governo do Estado, reuniu uma equipe da qual foi mestre na política: José Serra, Paulo Renato, José Gregori, Clóvis Carvalho, Andrea Calabi, Michel Temer, Geraldo Alkimin, Yoshiaki Nakano, João Sayad, José Carlos Seixas, João Yunes, Roberto Gusmão, Antônio Angarita, Gilberto Dupas, Paulo Sérgio Pinheiro e tantos outros.
Conheci Franco Montoro ainda adolescente, quando fiz "boca-de-urna" para sua eleição para vereador. Depois, quando o PDC decidiu apoiar Juarez Távora contra Juscelino Kubitschek, me afastei do partido e da política. Muitos anos se passaram, Montoro como ministro do Trabalho, lutando e logrando a sindicalização rural -que, garantia, não seria radical. Montoro na Câmara dos Deputados e depois no Senado, sempre na oposição ao regime militar, sempre firme na defesa do regime democrático.
Quando me encontrava com ele, eu economista, ele político, ele se aproximava, conversava, defendia suas idéias, e embora sabendo que eu me julgava um pouco mais à esquerda do que ele, e mais voltado para a questão do desenvolvimento nacional, ele encontrava uma forma de me convocar para alguma causa pública.
Fui chamado de volta à política quando ele e seu filho André me convidaram para participar da formulação do plano de governo de São Paulo. Eleito governador, fui por ele convidado para presidente do Banespa, nos primeiros dois anos, 1983-84, e para secretário do Governo, nos dois anos seguintes.
Montoro era modesto, não conhecia a arrogância. Foi esse um dos segredos do grande governo que realizou em São Paulo, cujo primeiro ano foi marcado por grande crise econômica, instabilidade social, desvalorização da moeda e ajuste fiscal. Montoro era político e jurista, não era executivo. Sabia disto. Não teve dúvida, portanto, em delegar grande parte da atividade executiva de seu governo à sua equipe, principalmente a José Serra.
Ninguém tinha dúvidas de que ele era o governador, era quem definia as diretrizes, tomava as iniciativas e as decisões mais importantes, e nos dava o respaldo político, mas a administração firme das finanças e um plano de governo competente foram delegados à sua equipe.
Montoro foi firme e corajoso. Nada ilustra melhor sua coragem do que sua luta permanente contra a ditadura, que culminou na sua decisão de realizar na praça da Sé, no início de 1984, o grande comício que deslanchou a campanha das "Diretas-Já". A maioria dos seus assessores o desaconselhava. Seria perigoso, não apareceria ninguém. Mas Montoro não hesitou um momento. E o grande comício que organizou ficará na história do país.
Montoro era generoso. Derrotada no Congresso a tese das eleições diretas, foi ele quem teve a iniciativa, ajudado por Roberto Gusmão, de fazer a articulação com Tancredo Neves e com os demais governadores de oposição para lograr a eleição no colégio eleitoral, de um candidato da oposição. E, embora fosse o candidato natural, não teve dúvida em ceder seu posto a Tancredo Neves, pelas melhores condições que este tinha de dividir o partido do governo militar. Como Montoro era generoso, jamais passava pela sua cabeça abafar os jovens, ou dividir os companheiros para garantir seu poder.
Montoro era um notável orador, como todo político deve ser, e um homem público com a sensibilidade para as necessidades e demandas da população. Nos anos 60, sua frase "salário não é renda" ficou famosa. Ela pode ser discutível do ponto de vista econômico, mas fazia um enorme sentido político e social em um Brasil em que os salários dos trabalhadores eram tão baixos.
Montoro era um homem prático, que vivia com os pés no chão, mas, ao mesmo tempo, era sempre, e antes de mais nada, um político de princípios. Nunca vi antes e creio que não verei no futuro um político que, além de fiel a seus princípios éticos, os reafirmava sempre, em qualquer circunstância. E ao fazê-lo, muitas vezes se repetia. Mas todos o ouvíamos com a maior atenção e respeito, porque ali a voz era coerente com a ação.
Um antropólogo francês, Pierre Clastres, ao procurar caracterizar o chefe índio americano (exceto os das grandes civilizações incas, astecas e maias), afirmou que eles possuíam três qualidades fundamentais: a coragem, a generosidade, e a capacidade de falar e repetir, todas as tardes, os valores e crenças de sua tribo. Montoro era assim: corajoso, generoso, e com uma infinita capacidade de reafirmar princípios e valores.
Montoro, finalmente, era um otimista. Ele jamais descria da humanidade. E cria antes na bondade e na capacidade de cooperação do que no egoísmo dos homens e mulheres. Ele jamais se dava por vencido. Ainda na última vez que o encontrei, ele reafirmava sua crença no parlamentarismo, e contava o que estava fazendo para trazer de novo o problema para a agenda política do país.
Não sou homem de chorar. Minha mãe me dizia que homem não chora. Mas nas duas últimas semanas chorei. Primeiro, quando a nova Orquestra Estadual de São Paulo e grande coro tocaram e cantaram o hino nacional na inauguração da sala de concerto que Mário Covas construiu na velha e bela estação Júlio Prestes. Agora, quando minha mulher me telefonou de São Paulo, nesta manhã, informando a morte do dr. André. Foram duas emoções muito fortes: uma de alegria, a outra, de tristeza. Mas ambas relacionadas com a crença no Brasil e no seu povo, que Montoro sempre professou.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 64, é professor titular de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo Fernando Henrique Cardoso) e da Fazenda (governo Sarney).


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