São Paulo, sexta-feira, 17 de agosto de 2001

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INTELIGÊNCIA MILITAR

Contabilidade oculta do serviço de espionagem do Exército é maquiada para esconder natureza de custos

Arapongas omitem origem de seus gastos

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A contabilidade oculta do serviço de inteligência do Exército é maquiada de propósito, para esconder a natureza dos gastos. Exceto o próprio Exército, ninguém exerce controle pleno sobre as despesas secretas dos seus órgãos de informação.
A escrituração da máquina de espionagem militar inclui gastos desconhecidos até mesmo do TCU (Tribunal de Contas da União), incumbido de analisar e aprovar as contas de todos os órgãos da administração pública federal. Em documento confidencial obtido pela Folha, o Exército ensina como os seus agentes secretos devem proceder para levar à contabilidade dispêndios sem comprovação. O manual foi distribuído aos órgãos de informação em 2000. Funciona assim:
1) sempre que designado para determinada missão, o espião recebe dinheiro do Exército por meio de depósito bancário;
2) depois, precisa prestar contas. Flexíveis, as normas internas do Exército não exigem a exibição de notas e cupons fiscais para todos os gastos;
3) o manual elaborado pela inteligência do Exército anota, por exemplo, que "as despesas efetuadas com agentes especiais, informantes ou colaboradores" podem ser feitas por meio de um "documento de despesa";
4) o "documento de despesa" a que se refere o manual é, na verdade, uma declaração feita pelo próprio agente secreto e assinada pelo comandante do grupo de inteligência a que ele estiver vinculado. Trata-se de folha de papel timbrado do Ministério da Defesa, sem nenhum valor fiscal. Assim são escriturados, por exemplo, os pagamentos feitos a colaboradores infiltrados em acampamentos do MST e em reuniões de ONGs na Amazônia;
5) supondo que tivesse de justificar um pagamento de R$ 500,00, o agente precisaria anotar apenas o seguinte: "o presente documento de despesa representa a importância de R$ 500,00 (quinhentos reais), gasta na atividade de inteligência e contra-inteligência". O documento não traria nenhum detalhamento acerca da natureza da despesa;
6) admite-se ainda que o espião espete em sua prestação de contas um formulário chamado "relação de despesas sem comprovante", que também não tem valor fiscal. O formulário possui um quadro com três colunas de preenchimento obrigatório. Na primeira, escreve-se a data em que o gasto foi feito. Na segunda, o tipo de despesa (táxi, borracheiro, ônibus etc). No campo seguinte, anota-se o valor desembolsado.

"Mc Lanche Feliz"
Os gastos secretos deixam o contribuinte sem saber como parte do dinheiro recolhido em impostos está sendo aplicado. Tampouco o Congresso sabe como são feitos os desembolsos. Os congressistas limitam-se a aprovar anualmente o montante a ser lançado sob a rubrica de "verbas secretas" no Orçamento da União.
Deputados e senadores imaginam que o TCU fiscalize o emprego do dinheiro. O tribunal é órgão auxiliar do Legislativo. Mas a fiscalização que exerce é, nesse caso, apenas teórica. Na prática, os ministros também não sabem como são empregados os recursos. Eles realizam a análise das despesas seguindo normas estabelecidas em resolução interna do tribunal.
De acordo com essa resolução, os gestores das chamadas verbas secretas têm "fé pública". Assim, aceitam-se como verdadeiros todos os lançamentos feitos, inclusive aqueles sem a devida comprovação fiscal.
Se desejarem, os ministros do TCU podem solicitar o detalhamento de um determinado gasto ou de todas as contas. Mas não tem sido essa a prática do tribunal. E ainda que requisitem comprovantes, os juízes receberão, em meio a notas e recibos, papéis sem validade fiscal.
Maleáveis no trato de gastos mais generosos, as normas internas do Exército são enérgicas no varejo dos dispêndios miúdos. Proíbem os agentes de levarem aos arquivos notas fiscais que contemplem gastos com bebidas alcoólicas, motéis, brinquedos e até "Mc Lanche Feliz", uma promoção da rede de lanchonetes Mc Donald's -sanduíche, refrigerante, batatas fritas e brinquedo como brinde. É muito popular entre as crianças.
São despesas consideradas pelo manual do Exército "pouco usuais na atividade de inteligência". Os espiões não estão proibidos de realizá-las. Apenas não podem deixar que constem de notas, algo que só é admitido quando "expressamente justificado" e autorizado.

Chapa fria
O espião jamais pode permitir que seu nome figure no cabeçalho de notas fiscais. É instruído a deixar o espaço reservado ao nome do cliente em branco. Quando isso não for possível, deve utilizar duas siglas que evocam o comando do Exército: "GAB. CMT. EX." ou "AI/GAB CMT EX". Evitam-se menções explícitas à atividade de inteligência.
Quando instados a fornecer um CGC (Cadastro Geral de Contribuintes), os espiões pronunciam a seguinte sequência de números: 00.394452/0551.88. Acessando o site da Receita Federal na Internet verifica-se que o número identifica o "Comando do Exército".
Sempre que for pagar despesas de estacionamento, o espião não pode deixar que a placa do carro, invariavelmente "fria", seja anotada no recibo. Nas ocasiões em que remunera os seus colaboradores e informantes por meio de depósitos bancários, deve atentar para um detalhe: o nome do depositante não pode aparecer no recibo.



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