UOL

São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Boron defende que petista precisa mudar rapidamente a política econômica para não frustrar movimentos sociais

Não resta muito tempo a Lula, diz sociólogo

DA SUCURSAL DO RIO

Para o sociólogo e cientista político argentino Atilio Boron, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem oito meses para direcionar mais à esquerda o rumo de seu governo -ou será tarde. Após isso, os projetos sociais já estarão comprometidos, e as bases do governo, desmoralizadas. Boron, 60, é secretário-executivo do Clacso (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais) e autor de "Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina". Vem ao Brasil para o seminário "Hegemonia e Contra-Hegemonia: os Impasses da Globalização e os Processos de Regionalização", amanhã, no Rio.
 
Folha - Qual a sua avaliação do governo Lula?
Atilio Boron -
É um governo que representou grandes esperanças, não só no Brasil, mas em toda a América Latina, e que herdou uma situação extraordinariamente difícil, produto dos estragos da política neoliberal. Até agora, não encontrou os rumos necessários para produzir as transformações de que o Brasil necessita e que o povo espera do PT. Ao governo de Lula não resta muito tempo pela frente. Se nos próximos dez meses, oito meses, não resolver reorientar o rumo das políticas econômicas e avançar profundamente nas sociais, fundamentalmente Fome Zero e reforma agrária, quando quiser fazê-lo chegará o momento em que será muito tarde. Estamos olhando a experiência do governo Lula com muita preocupação, porque, se não der certo, será um problema gravíssimo e uma grande frustração aos movimentos sociais, partidos políticos e forças sociais que, na América Latina, aspiram iniciar uma era pós-neoliberal.

Folha - O sr. acredita em uma mudança de rumo?
Boron -
Espero que sim, porque as políticas que o governo Lula está seguindo não são congruentes com a proposta do PT ao povo brasileiro. São políticas que vão produzir um holocausto social e uma fenomenal crise econômica no Brasil. São políticas parecidas com as que se desenvolveram na Argentina, de altas taxas de juros, concentração de renda, confiança no fluxo de capital estrangeiro. Os aduladores disseram de [Carlos] Menem o mesmo que dizem de Lula, e o resultado vocês já viram. Creio que Lula tem cerca de oito meses para mudar essa situação. Depois, os adversários históricos da mudança social e do progresso social estarão fortalecidos, e as bases sociais do PT e o povo brasileiro estarão desmoralizados para encarar um processo de mudança. Isso é o engano do "possibilismo" conservador, que aconteceu na Argentina e que vejo com preocupação reproduzindo-se agora no Brasil. A idéia absurda de pretender governar acalmando os mercados é uma idéia que provoca a desgraça, a ruína dos países. O Brasil tem tempo de evitar esse desastre, com consequências para toda a América Latina.

Folha - Setores da intelectualidade brasileira têm olhado com inveja para o presidente argentino Nestor Kirchner, que tomou medidas como o controle da entrada de capitais. O que diferencia a situação argentina da brasileira?
Boron -
Kirchner chegou ao governo em circunstâncias totalmente inesperadas. Ele se deu conta de que, se a Argentina não mudasse de rumo, chegaria a um novo colapso, como em dezembro de 2001, com [Fernando] De la Rúa. O nível de mobilização e a capacidade de reivindicação da sociedade argentina, muito altos, deixaram poucos espaços de manobra ao governo para decidir por uma política diferente ou sofrer o risco de uma derrota como a de De la Rúa. Mas a batalha fundamental é a do rumo econômico, e aí veremos se o governo efetivamente propicia uma mudança ou sucumbe. É a prova de fogo.

Folha - O americano Immanuel Wallerstein comparou a ascensão do PT ao poder com a do Congresso Nacional na África do Sul. Para ele, essas forças não podem corresponder às expectativas pois o poder estatal é menor do que as pessoas imaginam. O sr. concorda com isso?
Boron -
Não concordo em nada. Com todo respeito, creio na vontade política e no poder estatal. Você crê que o Estado brasileiro é tão débil a ponto de não cobrar imposto de uma maneira civilizada, fazendo com que os mais ricos e poderosos paguem mais imposto? É um argumento inaceitável. Se você me disser que no Equador o aparato estatal está debilitado e carece de pessoal adequado para desenvolver uma política tributária correta, talvez eu acredite, mas no Brasil? Se não se cobra imposto como se deve cobrar, não é pela providência divina, é porque não há vontade política.

Folha - Como o sr. vê hoje o destino do Mercosul frente à Alca? Crê que Brasil e Argentina seguirão juntos e terão força frente às pressões dos EUA?
Boron -
Argentina e Brasil têm de avançar no processo de integração crescente, estão condenados pela geografia a trabalhar juntos, há interesses comuns e, em princípio, boa sintonia política. Se há um país que vai ser muito prejudicado pela Alca é o Brasil, o mais industrializado da América Latina. Há condições para dizer não à Alca. Se falta vontade política, é como no amor: se não há vontade amorosa, não há nada.

Folha - Qual sua avaliação sobre a política externa do governo Lula?
Boron -
Houve alguns acertos, mas tem de ser mais consistente. O ponto central na política exterior do Brasil e da América Latina é a posição diante da Alca. E a posição discursiva avançada e progressista que o Brasil teve na invasão do Iraque, posição que eu celebro, será eclipsada se, ao mesmo tempo, não houver postura firme em relação à Alca e ao projeto anexionista norte-americano para a América Latina. É preciso aprofundar e tornar mais consistente a política exterior do Brasil diante dessa situação.

Folha - A esquerda no poder está destinada a ser igual à direita?
Boron -
Não é de nenhuma maneira destino ser igual. Se chegarmos a ser iguais, estaremos traindo nossa função histórica, que não é substituir a direita para governar como a direita, mas introduzir novas modalidades. Há uma crise nos partidos de esquerda à medida que, nos últimos anos, o que muitas organizações de esquerda fizeram foi se transformar em agentes de políticas de direita. Mas isso não é fatal, são decisões que, em presença de novos processos de mobilização sociais e políticas, podem ser perfeitamente revertidas. (FERNANDA DA ESCÓSSIA e CLAUDIA ANTUNES)


Texto Anterior: Esquerda no divã: Seminário da esquerda faz ""alerta" a Lula
Próximo Texto: Frase
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.