São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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NO PLANALTO

Cocamp põe dinheiro na conta de José Rainha

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Bem-aventurado José Rainha Júnior. No campo, é um com-terra. Possui lote no assentamento Che Guevara, Pontal do Paranapanema. Na cidade, é um com-teto. Tem casa em Teodoro Sampaio. Comprou-a da estatal Cesp por R$ 4.000.
Descobre-se agora que o líder do MST é também um com-extrato. Opera a conta 14.934-9, agência 221-6, Bradesco. Recebeu em 2 de outubro de 98 um depósito de R$ 228.296,42. O aporte intriga pelo valor. E espanta pela origem.
Veio da conta número 16.339-2, mantida na mesma agência. Pertence à Cocamp (Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados de Reforma Agrária do Pontal Ltda.). Rainha era à época secretário-geral da entidade.
O dinheiro da Cocamp foi usado para liquidar um empréstimo pessoal que Rainha contraíra no Bradesco. A dívida era do mesmo tamanho do mimo: R$ 228.296,42. A operação bancária, por imprópria, não figura na contabilidade da Cocamp.
O braço financeiro do MST na região do Pontal está sob investigação da PF e do Ministério Público desde 2001. Teve o sigilo bancário quebrado. A decisão judicial alcançou também as contas dos gestores da cooperativa.
No caso de Rainha, a pequena amostra obtida pelo repórter exibe o cotidiano de um correntista errante. Toma empréstimos com gosto. Paga-os a contragosto. A impontualidade custa-lhe os olhos da cara.
Em 22 de setembro de 98, 11 dias antes do depósito da Cocamp, o líder sem terra ostentava saldo bancário digno de um com-tudo: R$ 219.762,86. Súbito, a grana foi apropriada pelo banco em três lançamentos de débito. Dois cobriram juros de mora por atraso no pagamento de empréstimos: R$ 38.282,96 e R$ 43.180,58. Um terceiro pagou empréstimo pessoal de R$ 138.153,00.
O repórter ouviu Rainha na última quarta-feira. Ele disse: "Lembro que, nesse período, em que a Cocamp não tinha ainda o seu registro legal, nós operamos. Não só no meu nome, mas no de outras pessoas [...]. Foi feito empréstimo em nome das pessoas, porque não tava legal ainda, o CGC e tal. Depois, nós cobrimos certinho".
Perguntou-se a Rainha se outros diretores da cooperativa contraíram empréstimos para a Cocamp. E ele: "Não posso te afirmar de outros diretores. Mas teve outras pessoas físicas amigas, que nós tocamos com operações assim". O banco sabia que os empréstimos destinavam-se à Cocamp? "O banco não sabe. Era uma decisão nossa, interna." Quanto somam todos os empréstimos? "Não sei precisar. Nós movimentamos bastante, para tocar a cooperativa até a legalização."
As palavras de Rainha pecam por falta de nexo. Fundada em 94, a Cocamp estava plena e regularmente constituída em 98. Além da conta no Bradesco, relaciona-se com o Banco do Brasil desde 96. É por meio do banco oficial que recebe dinheiro da Viúva.
No fatídico ano de 98, o governo FHC foi generoso. Deu-se em janeiro a maior transferência às arcas da Cocamp: R$ 3,7 milhões. Destinaram-se a um complexo agroindustrial dotado de despolpadeira de frutas, silos e laticínio.
O empreendimento, ainda inconcluso, convive com suspeitas de desvios. Em agosto de 2003, já sob Lula, Brasília tentou injetar mais R$ 191.000,00 no projeto. Acionada pelo Ministério Público, a Justiça impediu.
Àquela altura, a Cocamp já havia beliscado coisa de R$ 10 milhões em verbas públicas. Auditoria feita em 2001 constatara que parte da verba foi malversada.
Naquele mesmo ano, Rainha afastou-se da direção da Cocamp. Alegou que precisava voltar a "atuar na base". Disse: "Nossa tarefa é organizar os excluídos e meter ocupações nesses latifúndios, enfrentando o projeto neoliberal desse governo [FHC] irresponsável."
Em julho de 2002, sem alarde, o MST afastou Rainha também da coordenação de suas operações no Pontal. Quatro meses depois, em reunião reservada em Brasília, os líderes do movimento debateram o alarido que ecoava dos porões da Cocamp.
Rainha compareceu ao encontro. A portas fechadas, disse que, cedendo à "armação" de seus "inimigos", o MST sairia enfraquecido. Restituíram-lhe o comando no Pontal. Um gesto arriscado.
Se a PF e o Ministério Público decidirem meter ocupações nos latifúndios bancários do MST, enfrentando o projeto de falta de transparência do movimento, ficará ainda mais evidente que há muito por explicar.
Aqui mesmo, neste retângulo, revelou-se em abril de 2001 que a PF invadira o extrato bancário de Miriam Farias de Oliveira. É uma sem-terra de mostruário. Filiada à Cocamp, milita nas fileiras do MST.
A polícia recebeu de fonte anônima o extrato de Miriam. Verificou que a conta da sem-terra (número 07345, agência 2.718 do Banco do Brasil) exibia extraordinários índices de produtividade. Em escassos 20 dias (de 1º a 21 de novembro de 2000), movimentou R$ 96.753,60.
Ouvido à época pelo repórter, Sérgio Pantaleão, um dos líderes do MST no Pontal, disse que a conta de Miriam fora usada para movimentar recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Num segundo momento, ele se corrigiu: "Esse dinheiro que caiu nessa conta foi doação de uns sindicatos e também de umas organizações não-governamentais".
O aparato investigatório do Estado demora-se na apuração dos truques bancários do MST. Procuradores da República estão sentados há mais de dois anos sobre uma pilha de extratos malcheirosos. Nenhum dos suspeitos recebeu, por ora, uma mísera notificação. O contribuinte brasileiro não merece semelhante letargia.


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