São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009

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MOVIMENTO SEM TERRA, 25 ANOS

Fundadores do MST contam como nasceu o movimento

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Barulhento, muitas vezes violento, odiado por uns, idolatrado por outros e enraizado como um dos principais atores políticos do país, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi criado em 20 de janeiro de 1984 e, um ano depois, no primeiro congresso dos sem-terra, elegeu a sua primeira direção nacional.
Esse primeiro comando dos sem-terra se formou com 18 homens e duas mulheres. Eles e elas representavam os dez Estados nos quais o movimento estava organizado (RS, SC, PR, MS, SP, RJ, MG, ES, BA e RO) e traziam consigo histórias de infância e trabalho na roça, pouco estudo, migrações e, principalmente, militância em sindicatos e em pastorais católicas.
No ano passado, o repórter Eduardo Scolese e o repórter-fotográfico Sérgio Lima, ambos da Sucursal de Brasília da Folha, buscaram localizar e contar a história desse grupo.
No caminho, descobriram o paradeiro de 17 deles, sendo dois mortos e um que preferiu não dar entrevista. Entre os 14 personagens há casos semelhantes e inusitados, como dos que largaram o movimento por conta da família e dos que, por outro lado, sacrificaram a família por conta da militância. Há um ex-diretor do MST agora caminhoneiro, um que virou frentista e um hoje assessor do Planalto. O resultado completo desse projeto aparece no livro "Pioneiros do MST - Caminhos e Descaminhos de Homens e Mulheres que Criaram o Movimento", da editora Record, que estará na semana que vem nas livrarias. A seguir, leia trechos do livro e da trajetória de alguns desses personagens.

 


INFÂNCIA
Osvaldo [Xavier] começou a trabalhar aos seis anos de idade. De terça a domingo, era acordado pela mãe às 2h para ajudar na fabricação de farinha. Os irmãos mais novos, com 5, 4 e 3 anos, também ajudavam.
Somente o irmão de dois anos era poupado do serviço. Do quarto das crianças à casa de farinha eram cerca de 100 metros. A mãe caminhava na frente, para acender o fogo. Os filhos ajudavam a esfarelar pedaços de mandioca. Apertavam com as mãos até que a massa ficasse solta o suficiente para passar numa peneira. Enquanto isso, o pai cozinhava pacientemente a massa em fogo brando. Às 4h as crianças podiam descansar um pouco. Deitavam ali mesmo, num canto da casa de farinha, em cima de couros de boi usados como esteira. O cochilo era rápido. Duas horas depois tinham de ajudar o pai a puxar os burros para arar a terra e carregar sacos de farinha.
Às segundas-feiras Osvaldo conseguia dormir até mais tarde. Acordava às seis da manhã para ajudar o pai a levar os sacos de farinha ao vilarejo mais próximo. Até o meio-dia, eram duas viagens, num total de 8 quilômetros segurando o cabresto de um burro. Até então, Osvaldo nunca tinha visto um professor. Nunca tinha visto um médico. Os irmãos e as irmãs nasciam nas mãos de parteiras da comunidade.

MILITÂNCIA x FAMÍLIA
Líder nacional do MST, Geraldo [dos Santos] tinha um lote absolutamente improdutivo. Viajava pelo Brasil divulgando a teoria de produção e a organização do movimento, enquanto a sua prática era um desastre.
Os 22 hectares de terra estavam cobertos de capoeira, um tipo de vegetação duro de ser arrancado. O pouco de milho e de feijão plantados havia acabado. Duas vacas soltas no lote garantiam pelo menos o leite das duas meninas.
O local onde Geraldo, a mulher e as filhas dormiam não poderia ser chamado de uma casa convencional. Era um galpãozinho de madeira, parte assoalhada e parte de chão. À noite, a família ficava junta num canto, protegendo-se do frio; outro canto era reservado a um amontoado de milho.
Enquanto isso, Eloni [mulher de Geraldo] via as condições mais favoráveis das demais famílias do assentamento e enxergava também a dominação do marido pelas atividades do movimento. A compreensão dela com aquela rotina estava no limite. Mal conseguia alimentar as filhas. Roupas novas nem pensar. Um dia ela estourou. Longe das crianças, chamou Geraldo para uma conversa e colocou as cartas na mesa: "Se continuar assim, eu vou dar outro jeito. Largue um pouco a luta, se defina, senão vou tomar o meu rumo".

INVASÃO DE TERRA
Naquele fim de tarde chuvoso, dirigindo uma Kombi emprestada pela igreja por 12 municípios vizinhos de Três Passos, [Darci Maschio] enfrentou estradas enlameadas para avisar um a um os líderes sem-terra, sindicalistas e assessores da Pastoral da Terra. Cada um deles teria a tarefa de avisar as demais famílias locais interessadas em participar da ação.
Curto e grosso, efeito da pressão de coordenar uma ação daquele tamanho, Darci pediu que cada um desses emissários enchesse as carrocerias dos caminhões com colonos e, por volta das dez da noite, estivesse estacionado no trevo de saída para Três Passos e Santa Rosa. De dez em dez, os caminhões partiriam em comboios para a Annoni, uma área cujo processo de desapropriação estava travado na Justiça desde 1975, e que se tornou emblemática para o movimento.
Darci ainda deu outra orientação: "Se a fileira com dez caminhões for interceptada em alguma barreira da polícia rodoviária, saltem imediatamente das carrocerias e ergam ali mesmo o acampamento".

TÁTICAS
"E aí, dom José [Gomes], como é que está o tempo?"
"O tempo está bom, Chicão [Dal Chiavon]. Está estrelado, tudo bem", respondeu o bispo [de Chapecó], com voz baixa, demonstrando preocupação com os riscos daquelas ações.
Ainda hoje o sigilo de uma ocupação é fundamental para seu o sucesso. Naquele tempo era primordial. O país acabava de sair de uma ditadura, e os órgãos de repressão ainda estavam com as estruturas de alerta atuantes. Por isso, falar em código era mais do que uma simples precaução. Uma pergunta sobre as condições do tempo, por exemplo, era uma forma de buscar novidades da organização dos sem-terra para as ações. Uma resposta de céu estrelado era sinal de que as coisas caminhavam conforme o combinado. Naquele telefonema [em 1985], o que Chicão menos queria ouvir era uma resposta de tempo ruim.

AMEAÇAS DE MORTE
A viagem começou em silêncio. Santina [Grasseli] não tirava os olhos da janela. Até então, não tinha motivos para desconfiar daquele rapaz sentado no banco ao lado. Alguns minutos se passaram, e o rapaz se levantou. Ao contrário do que faria qualquer passageiro, ele não seguiu em direção ao motorista para solicitar a parada. Ficou de pé, com o corpo virado na direção de Santina.
Angustiada, Santina tirou os olhos da janela e ouviu, pela primeira vez, a voz daquele homem: "Você não tem medo do que anda fazendo por aí?" A resposta de Santina foi para desconversar. "Não sei do que você está falando."
Mas o rapaz foi mais direto. "Sou bem informado, e é bom você lembrar que tem filhos pequenos." Santina se manteve imóvel e ouviu um último recado. "A gente se encontra." O rapaz desembarcou no primeiro povoado, e Santina nunca mais viu o rosto do qual nunca se esqueceu.

ASSENTAMENTO
Olinda [Maria de Oliveira] retornou à Bahia em março de 1999. Deixou a mudança na casa de familiares em Santa Maria da Vitória e percorreu outros 140 quilômetros para visitar o lote de terra, em Sítio do Mato, no assentamento Reunidas José de Rosa, uma homenagem dos sem-terra a Zeca de Rosa. A primeira impressão foi péssima. Com dois anos na terra, as famílias estavam todas ainda no meio do mato e debaixo de barracos de lona preta. A área, uma antiga fazenda de 2.700 hectares devastada por um padre serralheiro, já estava devidamente desapropriada desde dezembro de 1997, restando apenas a liberação dos créditos de instalação. Um fio de arrependimento passou perto de Olinda, mas ela tratou logo de se ajeitar por lá. Enquanto construía seu barraco, passou alguns dias instalada na única casinha de alvenaria do assentamento. Com a chegada de Olinda, esse abrigo se transformou numa escolinha.

VIOLÊNCIA
Sem chamar a atenção da polícia e dos demais acampados, Parafuso [Agnor Bicalho Vieira] recolheu os documentos e algumas peças de roupa de Dirceu [jovem que acabara de matar um fazendeiro] e correu de volta ao matagal daquela fazenda de 2.200 hectares.
Lá, sacou do bolso 250 cruzeiros e entregou tudo a Dirceu. Pediu que ele se acalmasse e seguisse pelos fundos da fazenda, até cair na primeira rodovia. De lá, pegaria carona até a rodoviária de Joinville e, depois, um ônibus direto para São Paulo. "Guarde esse endereço. É o da secretaria do MST lá em São Paulo. Eles vão te ajudar... Agora se manda."
Dirceu sumiu no meio do mato. Parafuso telefonou no mesmo dia para São Paulo e passou as coordenadas daquele jovem sem-terra. Da capital paulista, Dirceu foi enviado pelo movimento ao Pontal do Paranapanema, foco de conflitos de terra no extremo oeste do Estado, onde mudou de nome, virou assentado da reforma agrária, casou e teve filhos.

PÓS-MST
Santos [Luiz Silva] está lá [na empresa de transporte] desde o início de 2006. Com a carteira de trabalho assinada, o ex-motorista de trator, de ônibus escolar e até de ambulância agora comanda um Mercedes-Benz branco, com seis cilindros e dois eixos traseiros. São pelo menos três viagens por mês. Os destinos mais comuns são Brasília, Goiânia e Campo Grande, com a carroceria baú carregada de produtos eletrônicos, eletrodomésticos, medicamentos ou algum tipo de veneno. A viagem mais longa de Santos foi a Alta Floresta, na Amazônia mato-grossense. Foram dez dias longe da família, para levar veneno de matar formiga a uma fazenda no meio da selva, a 2.500 quilômetros de São Paulo.
Santos não se queixa. Não compara essas viagens com aquelas que fazia em tempos de executiva do MST. Agora, uma semana distante da mulher, dos filhos e do neto é como uma obrigação, parte de um serviço que sempre quis fazer. A cada viagem, os trocados restantes das diárias se transformam em alguns retoques a mais na casinha do Parque Imperial.


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