São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2001

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ELIO GASPARI

Faltou dinheiro no andar de cima. Chamaram a Viúva

O embaixador Luiz Felipe Lampreia acaba de ser empossado na presidência do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, entidade privada destinada a trabalhar naquilo que seu nome informa. Sua primeira iniciativa deveria ser a revogação de todos os convênios que resultaram na transferência de dinheiro da Viúva para a instituição. Coisa de algo como R$ 1 milhão. Isso e mais R$ 2 milhões emprestados pelas Nações Unidas à Agência Brasileira de Cooperação, anexa ao Itamaraty. Revogados os convênios, devolve-se o dinheiro.
O ex-chanceler ganhou a vida como funcionário público e não vai ganhar nada presidindo o Cebri. Meteu-se numa história típica do avanço que o andar de cima pratica sobre o patrimônio público. Em tese, o Cebri é uma "instituição independente". Funcionará no palacete onde viveu Afonso Arinos, da rua Dona Mariana, no Rio. Coisa parecida com o Council on Foreign Relations (Conselho de Relações Exteriores) que a plutocracia americana montou em Nova York nos anos 20.
Enquanto foi ministro das Relações Exteriores, Lampreia fez o possível para estimular a boa idéia do Cebri. Nada mais natural que, ao deixar Brasília, vá presidi-lo. Nada menos natural que vá presidir uma instituição privada onde a Viúva (por meio do ministério que dirigiu) já despejou R$ 472 mil e vai despejar outros R$ 479 mil, além de lotar dois diplomatas no seu quadro funcional. Menos natural ainda é que o Itamaraty faça tudo isso tendo debaixo do seu guarda-chuva o respeitado Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais.
Se Lampreia não tivesse convencido a Viúva a botar dinheiro no Cebri, ele não teria meios para funcionar, pois as contribuições do setor privado ficaram abaixo das expectativas. Paciência. Como não existe almoço grátis, por falta de dinheiro há gente que passa fome. Como também não existe Cebri grátis, por falta de dinheiro o empresariado pode ficar sem um centro de debates de política internacional e Lampreia pode viver sem um escritório na Dona Mariana.
Falta de dinheiro não é. É falta de cérebro. A cada ano um pedaço dos abonados de Pindorama voa para Nova York e autofesteja-se durante um jantar no Hotel Plaza em que são premiados os "Homens do Ano da Câmara de Comércio Brasil-EUA". Estimando-se que, a cada regabofe, voem 75 casais e 50 cigarras, as passagens custam algo como US$ 500 mil. A cadeira no jantar vale US$ 750 (US$ 150 mil, no total). Acrescentando-se uns US$ 250 mil para quatro diárias de hotel e US$ 50 mil para as limusines, chega-se ao que a Viúva dará ao Cebri.
Um centro de debates "independente" não deve receber dinheiro público. Há similares internacionais que o recebem, como o Institut Français de Relations Internationales. A turma que pegou o dinheirinho da Viúva acha que o Council on Foreign Relations embolsa recursos governamentais para projetos direcionados. Tolice. Por disposição estatutária, dinheiro público não entra no palacete da Park Avenue.
A plutocracia americana criou o seu centro de pesquisas à sua custa. John D. Rockefeller Jr. saiu pela cidade arrecadando dinheiro, inclusive seu. A viúva do petroleiro Harold Irving Pratt doou-lhe (repetindo, doou-lhe) o palacete da Park Avenue. Ele hospedou intelectuais como Henry Kissinger e os irmãos Bundy, que formularam a política externa americana por quase 20 anos. Com uma elite dessas, os Estados Unidos são o que são. Lá há abonados defendendo a cobrança de impostos sobre suas próprias heranças. Cá, avançam sobre o erário dos deserdados.


Os Pereira da Silva

Paulo Pereira da Silva reelegeu-se presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.
Numa categoria que, em 20 anos, foi reduzida à metade e tem hoje uma taxa de desemprego de mais de 15%, a participação da família Pereira da Silva na diretoria e no quadro funcional da entidade quadruplicou.
Elza de Fátima Costa Pereira, mulher de Pereira da Silva, é a nova 2ª vice-presidente do sindicato. Ela é experimentada sindicalista.
Valdir Pereira da Silva, irmão do presidente, elegeu-se diretor. Ele já presidiu o sindicato de Americana.
Rubens Pereira da Silva, irmão de Paulo e Valdir, é funcionário do sindicato.
Se as demais famílias de trabalhadores tivessem um Q.I. tão elevado, não haveria desocupado em São Paulo.


Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música e a desmatamento. Ela oferece seus serviços àqueles que gastam papel para não dizer nada. Ela acaba de oferecer uma bolsa de estudo ao ministro do Esporte e Turismo, Carlos Melles, pela seguinte parolagem:
"O Brasil é ainda refém da monocultura do futebol. Dependência extrema que inviabilizou por décadas o desenvolvimento de práticas esportivas que se ajustam à obrigação do Estado de assegurar, pelos caminhos do esporte, o efetivo acesso ao desenvolvimento social. Distorção amplificada pela inapetência da superestrutura da sociedade brasileira para democratizar o acesso aos bens do esporte".
Natasha acredita que o doutor Melles queira diversificar o esporte. Discorda do ministro num ponto. O problema da superestrutura (da qual ele faz parte) não é a inapetência. É a supergula.


O El Niño criou o Terceiro Mundo

Saiu um livro intrigante nos Estados Unidos. É "Late Victorian Holocausts - El Niño Famines and the Making of the Third World" ("Os Holocaustos do final do período vitoriano - As fomes do El Niño e a criação do Terceiro Mundo"), de Mike Davis. Ele sustenta que a grande diferenciação econômica do mundo ocorrida no final do século passado deveu-se a uma alteração climática, a maior dos últimos 500 anos. O fenômeno El Niño produziu uma seca que varreu uma extensa faixa do planeta. Foi do Nordeste brasileiro à China. Matou de fome de 30 a 60 milhões de pessoas. Talvez 2 milhões no Brasil, que passou por duas grandes estiagens entre 1876 e 1900. Foram a fome e a política, muito mais que as ferrovias e a globalização, que cortaram o mundo em dois.
Com graus variáveis de insensibilidade, os miseráveis foram abandonados pelos governos. Na Índia, o vice-rei, Lord Lytton, chegou a proibir a criação de instituições de caridade para ajudar os famintos. Ele achava que a interferência do governo produziria mais fome. Comprometeu a administração colonial com o equilíbrio fiscal e contentou-se em criar frentes de trabalho. Na província de Madras, dava 1.627 calorias diárias aos flagelados. (Em 1944 o campo de concentração de Buchenwald dava 1.750). Morreram de 6 a 10 milhões de indianos. Na seca brasileira, copiou-se o modelo das frentes indianas, mas a dieta dos retirantes era decente.
A seca global produziu um messianismo global. Apareceu uma Virgem Maria na Polinésia, um profeta reencarnado no Vietnã e o Conselheiro em Canudos. Na China, os estrangeiros eram acusados de ter furtado o céu. Deram-se revoltas no Brasil, na Índia, na Argélia, na China e na Nova Caledônia. A fome ajudou os ingleses a dobrar os zulus da África do Sul. Depois da seca, a África estava com outra cara, pior e colonizada.
Davis mostra que, enquanto o clima fazia sua parte, as ferrovias integravam e globalizavam as economias nacionais. Em 1700 a economia da China equivalia à da Europa. Em 1890, tornou-se um quarto. Em 1952, menos de um quinto.
O livro vale pela idéia audaciosa de juntar os fenômenos climático (El Niño), econômico (o liberalismo) e histórico (o ressurgimento colonial). Cuida mais da China e da Índia. Navega pela bibliografia brasileira com qualidade e uns poucos escorregões. Grafa errado a terra do Padim Ciço (Joãoseiro). Mesmo assim, tem a virtude de colocar o liberalismo econômico nativo, a dívida externa, a seca e Canudos numa só compoteira.
Sem que isso seja novidade, Davis sustenta que o Brasil foi uma colônia informal inglesa e que o Nordeste foi rebaixado pelo predomínio do Sudeste. Entre 1800 e 1913 a economia americana triplicou de tamanho, enquanto a brasileira cresceu nada. Enquanto os americanos abriam suas terras aos imigrantes brancos, o andar de cima brasileiro as fechava e vivia obcecado na busca do "branqueamento" da população: "A Guerra de Canudos tornou-se uma macabra alegoria ritual, conduzida pelo medo que a elite tinha dos pobres do Norte, a quem denegriam chamando de "caboclos'".


Jungmann vai fechar o mapa da grilagem

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, está a caminho de produzir um mapa da grilagem de terras no país. Começou o trabalho com uma pesquisa feita pelo professor Alberto DiSabbato, da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense. Ele cruzou as propriedades com mais de 10 mil hectares (3.065) com a lista dos proprietários que informaram ao Incra a base legal de seus patrimônios. Resultou que 1.438 não responderam coisa alguma. Pode ter sido esquecimento.
Em seguida DiSabbato foi buscar a situação tributária dos cem maiores proprietários que se esqueceram de responder ao Incra. No mundo das pessoas físicas, deu metade. Há 47 maganos que se dizem donos de uma área total de 7,65 milhões de hectares com CPF cancelado, incorreto, inexistente ou irregular. Na amostra das pessoas jurídicas, uma em cada quatro empresas está encrencada no cadastro da Receita. Dizem-se donas de quase 2 milhões de hectares.
Os números levantados pelo professor não permitem julgamentos imediatos, pois trabalhou com estatísticas que incluem terras e grilagens superpostas, bem como maracutaias que existem só no papel. Jungmann já acertou com a Receita Federal o aprofundamento da investigação.
Numa outra vertente da pesquisa, DiSabbato expôs dois casos curiosos. Num, uma propriedade de 75 mil hectares foi vendida por R$ 450 mil num dia e oferecida como pagamento de uma dívida previdenciária de R$ 13 milhões duas semanas depois. No outro, em três semanas uma terra comprada por R$ 78 mil foi oferecida, com laudo de perito, por R$ 1,1 milhão. Nenhuma das duas propriedades tem registro no Incra.


Aula de direito

FFHH precisa domesticar seu serviço de segurança. Numa de suas viagens a Ibiúna ele barrou o caminho de um senhor de 65 anos e cabelos brancos que caminhava pela estrada do loteamento. O cidadão informou que morava ali adiante e estava terminando sua caminhada matinal. Pediram-lhe os documentos, como se carteira de identidade tivesse endereço. Ele disse que não os carregava para andar perto de casa. Disseram-lhe que não passaria. Ele ameaçou gritar. Veio um major, ouviu-o e disse que "desta vez" ele podia passar.
O criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes deu-lhe uma lição: passaria daquela vez e todas as vezes que quisesse porque esse era seu direito.
Leite Fernandes é vizinho do então professor Fernando Henrique Cardoso.


Tunga morta

Terminou bem o caso da tunga que a empresa de Correios e Telégrafos queria impor ao povo do município mineiro de Passa Tempo (8.500 habitantes e um só médico). O ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, desautorizou a malvadeza e resolveu o assunto.
Em 1964 o prefeito de Passa Tempo doou à ECT um terreno para que ela construísse uma agência dos Correios. Passaram-se 37 anos, ela nada construiu e a prefeitura pediu o imóvel de volta.
Num ofício arrogante, o chefe de gabinete do presidente da ECT, Luciano Seixas Neves, informou que a empresa, amparada em decisão judicial, não devolveria o terreno e adiantou que pretendia vendê-lo.
Pimenta mandou esquecer a maluquice e decidiu doar o imóvel a Passa Tempo. A ECT já devolveu cem terrenos, 11 só neste ano.


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