São Paulo, terça, 18 de fevereiro de 1997.

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Etnólogo, tinha muitas faces

ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA

Escrever sobre Darcy Ribeiro exige, em primeiro lugar, que se considere qual de suas faces deverá ser focalizada, tendo em vista que durante sua longa e produtiva vida conseguiu ser antropólogo, político, ficcionista, educador e administrador, sempre com igual sucesso. Lembro-me, desde a época em que trabalhávamos juntos, entre 1954 e 1958, no Museu do Índio -por ele criado no âmbito da antiga Seção de Estudos do então Serviço de Proteção aos Índios, por ele dirigida-, que Darcy sempre comentava entusiasmado sobre as várias faces de seu grande ídolo, o Marechal Rondon. Questionava sempre de como era possível um homem poder ser tanto numa única vida: "humanista", "indigenista", "civilizador do sertão", "pacificador de Letícia" e "protetor dos índios"! Esse homem multidimensional que no final dos anos 50 Darcy o qualificava com esse conjunto de adjetivos, como se lê em seu artigo "A Obra Indigenista de Rondon", sempre foi o seu grande herói, seu alter ego, admirando nele o seu humanismo positivista, suas qualidades de realizador quando assumiu a construção das linhas telegráficas e estratégicas em Mato Grosso ou quando, defendendo o direito dos povos indígenas, criou o Serviço de Proteção aos Índios, ou, ainda, quando exercitou sua diplomacia solucionando a questão de fronteiras entre Peru e Colômbia pela posse da região de Letícia. E lembro-me muito bem de Darcy, emocionado, pronunciando seu discurso de despedida junto à tumba do Marechal em 1955.
As várias dimensões da vida de Darcy Ribeiro acabaram por torná-lo bastante semelhante ao seu herói. Sendo, assim, torna-se difícil dar conta desse ser múltiplo que ele chegou a ser. É assim que, em segundo lugar, há de se escolher também qual de suas dimensões podem ser examinadas num número limitado de páginas. Como seu colega dos seus anos de etnólogo, quero homenageá-lo reportando-me aos anos 50 e trazendo o meu depoimento sobre suas atividades de etnólogo. Assim, não posso me esquecer quando o vi pela primeira vez, em 1953, na sala de conferências da Biblioteca Municipal de São Paulo, hoje Biblioteca Mário de Andrade, discorrendo brilhantemente sobre aspectos do indigenismo brasileiro. Como resultado desse primeiro encontro, Darcy haveria de me convidar para trabalhar no recém-criado Museu do Índio, formando com ele e Eduardo Galvão (este na Seção de Orientação e Assistência do mesmo S.P.I.) certamente o primeiro grupo de etnólogos interessados em trazer a antropologia, como disciplina acadêmica, para a prática da política indigenista brasileira. Muita coisa correu desde então.
E aqui não há lugar para rememorarmos tudo o que aconteceu naqueles anos e, especificamente, com relação à questão indigenista, seus sucessos e insucessos, bem como o lugar que com muito esforço e poucas realizações pôde a antropologia efetivamente lograr frente à burocracia dominante na instituição. Quero, unicamente, sublinhar algumas contribuições indiscutíveis do professor Darcy Ribeiro à etnologia brasileira.
Começaria por seu primeiro livro, Religião e Mitologia Kadiuéu (1950), onde Darcy articula com muita competência e engenho discursivo duas instâncias das mais relevantes numa cultura tribal: os sistemas mitológico e religioso, nem sempre facilmente discerníveis na observação etnográfica. É assim que Darcy destaca o papel da mitologia na manutenção da coesão e solidariedade da sociedade Kadiuéu, ameaçada pela integração de cativos de outras etnias tribais no seu seio, conversando portanto "um núcleo de valores altamente consistente e unanimemente coparticipado, que contribuiu para preservação da (...) unidade política".
E no capítulo da religião, onde põe especial ênfase no xamanismo, mostrando-o como "a resposta Kadiuéu à necessidade de fazer frente ao azar e a todas as ameaças reais e imaginárias que pesam sobre eles e que não podem ser resolvidas pelos processos ordinários", toca também num tema clássico da antropologia dos povos ágrafos (também chamados inadequadamente de "primitivos"), qual seja a da coexistência nesses povos de dois níveis diferentes de entendimento: o domínio objetivo do ambiente em que vivem, o que lhes permite inclusive domesticar quase cientificamente a natureza -como no caso de plantas ou animais; e, mercê de uma visão mística, "impregnada de emoção que completa a primeira", capaz de explicar fenômenos que escapam ao entendimento objetivo, visão essa importante para assegurar a eficácia dos procedimentos práticos adotados: tratar-se-ia de um "controlador do incontrolável".
A presença desse controlador, segundo Darcy, "dá ao grupo o sentimento de segurança indispensável a qualquer realização, garantindo a eficiência dos esforços objetivos contra a ameaça do imprevisível". Encaminhamentos como esses de questões de teoria antropológica, conferem a essa monografia de Darcy o teor de um texto clássico da etnologia brasileira, de cuja leitura muito ainda poderão aproveitar estudiosos e estudantes da antropologia.
Mas se esse livro e mais alguns ensaios interessantíssimos de Darcy sobre esses mesmos índios, como seu ensaio sobre "A Arte dos Índios Kadiuéu" (1951) ou seu artigo sobre o "Sistema Familial Kadiuéu" (1948), já indicavam o talento do então jovem pesquisador, foram seus escritos sobre os índios Urubus ou Kaapor, grupo Tupi das florestas do Maranhão, que vão revelar um etnólogo dotado de um discurso sedutor, imprimindo na linguagem da disciplina um toque eminentemente literário -certamente prenúncio do Darcy escritor que surgiria mais de uma década depois! Com sua mulher, Berta G. Ribeiro, escreve o bonito livro Arte Plumária dos Índios Kaapor (1957), onde nos oferece um esplêndido texto de antropologia estética, ilustrado por um grande número de policromias relativas aos artefatos Kaapor, verdadeiras jóias plumísticas. E sem se limitar à busca da beleza na cultura Kaapor, escreve ainda um trabalho bastante técnico sobre as relações entre aqueles índios e o meio ambiente: um texto primoroso intitulado "Os índios Urubus: ciclo anual das atividades de subsistência de uma tribo da floresta tropical" (1962). Porém seu trabalho em que melhor exercita a combinação da boa etnografia, enquanto "história de vida", e a arte do bem escrever é o seu "Uirá vai ao encontro de Maíra: as experiências de um índio que saiu à procura de Deus" (1957). Texto fascinante por seu conteúdo e pela forma da narrativa!
Muito se poderia dizer ainda sobre a etnologia de Darcy Ribeiro, inclusive sobre seus escritos relativos ao contato interétnico, onde sua face de indigenista aparece claramente, marcando um indubitável pioneirismo no trato das questões de interação entre índios e não-índios, bem como sobre a presença do Estado na administração raramente eficaz e nem sempre correta daquela interação. Esses escritos foram reunidos em seu livro Os Índios e a Civilização: A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno (1970). É um fecho perfeito para uma fase das mais produtivas de seu itinerário intelectual, responsável por uma obra que veio para ficar e enriquecer a literatura etnológica brasileira.


Roberto Cardoso de Oliveira é professor titular convidado da Unicamp e autor dos livros O Índio e o Mundo dos Brancos; Identidade, Etnia e Estrutura Social; Sobre o Pensamento Antropológico.

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