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Etnólogo, tinha muitas faces
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA
Escrever sobre Darcy Ribeiro
exige, em primeiro lugar, que se
considere qual de suas faces deverá ser focalizada, tendo em vista
que durante sua longa e produtiva
vida conseguiu ser antropólogo,
político, ficcionista, educador e
administrador, sempre com igual
sucesso. Lembro-me, desde a época em que trabalhávamos juntos,
entre 1954 e 1958, no Museu do Índio -por ele criado no âmbito da
antiga Seção de Estudos do então
Serviço de Proteção aos Índios,
por ele dirigida-, que Darcy sempre comentava entusiasmado sobre as várias faces de seu grande
ídolo, o Marechal Rondon. Questionava sempre de como era possível um homem poder ser tanto numa única vida: "humanista",
"indigenista", "civilizador do
sertão", "pacificador de Letícia"
e "protetor dos índios"! Esse homem multidimensional que no final dos anos 50 Darcy o qualificava
com esse conjunto de adjetivos,
como se lê em seu artigo "A Obra
Indigenista de Rondon", sempre
foi o seu grande herói, seu alter
ego, admirando nele o seu humanismo positivista, suas qualidades
de realizador quando assumiu a
construção das linhas telegráficas
e estratégicas em Mato Grosso ou
quando, defendendo o direito dos
povos indígenas, criou o Serviço
de Proteção aos Índios, ou, ainda,
quando exercitou sua diplomacia
solucionando a questão de fronteiras entre Peru e Colômbia pela
posse da região de Letícia. E lembro-me muito bem de Darcy,
emocionado, pronunciando seu
discurso de despedida junto à
tumba do Marechal em 1955.
As várias dimensões da vida de
Darcy Ribeiro acabaram por torná-lo bastante semelhante ao seu
herói. Sendo, assim, torna-se difícil dar conta desse ser múltiplo
que ele chegou a ser. É assim que,
em segundo lugar, há de se escolher também qual de suas dimensões podem ser examinadas num
número limitado de páginas. Como seu colega dos seus anos de etnólogo, quero homenageá-lo reportando-me aos anos 50 e trazendo o meu depoimento sobre suas
atividades de etnólogo. Assim, não
posso me esquecer quando o vi pela primeira vez, em 1953, na sala de
conferências da Biblioteca Municipal de São Paulo, hoje Biblioteca
Mário de Andrade, discorrendo
brilhantemente sobre aspectos do
indigenismo brasileiro. Como resultado desse primeiro encontro,
Darcy haveria de me convidar para
trabalhar no recém-criado Museu
do Índio, formando com ele e
Eduardo Galvão (este na Seção de
Orientação e Assistência do mesmo S.P.I.) certamente o primeiro
grupo de etnólogos interessados
em trazer a antropologia, como
disciplina acadêmica, para a prática da política indigenista brasileira. Muita coisa correu desde então.
E aqui não há lugar para rememorarmos tudo o que aconteceu
naqueles anos e, especificamente,
com relação à questão indigenista,
seus sucessos e insucessos, bem
como o lugar que com muito esforço e poucas realizações pôde a
antropologia efetivamente lograr
frente à burocracia dominante na
instituição. Quero, unicamente,
sublinhar algumas contribuições
indiscutíveis do professor Darcy
Ribeiro à etnologia brasileira.
Começaria por seu primeiro livro, Religião e Mitologia Kadiuéu
(1950), onde Darcy articula com
muita competência e engenho discursivo duas instâncias das mais
relevantes numa cultura tribal: os
sistemas mitológico e religioso,
nem sempre facilmente discerníveis na observação etnográfica. É
assim que Darcy destaca o papel
da mitologia na manutenção da
coesão e solidariedade da sociedade Kadiuéu, ameaçada pela integração de cativos de outras etnias
tribais no seu seio, conversando
portanto "um núcleo de valores
altamente consistente e unanimemente coparticipado, que contribuiu para preservação da (...) unidade política".
E no capítulo da religião, onde
põe especial ênfase no xamanismo, mostrando-o como "a resposta Kadiuéu à necessidade de fazer frente ao azar e a todas as
ameaças reais e imaginárias que
pesam sobre eles e que não podem
ser resolvidas pelos processos ordinários", toca também num tema clássico da antropologia dos
povos ágrafos (também chamados
inadequadamente de "primitivos"), qual seja a da coexistência
nesses povos de dois níveis diferentes de entendimento: o domínio objetivo do ambiente em que
vivem, o que lhes permite inclusive domesticar quase cientificamente a natureza -como no caso
de plantas ou animais; e, mercê de
uma visão mística, "impregnada
de emoção que completa a primeira", capaz de explicar fenômenos
que escapam ao entendimento objetivo, visão essa importante para
assegurar a eficácia dos procedimentos práticos adotados: tratar-se-ia de um "controlador do
incontrolável".
A presença desse controlador,
segundo Darcy, "dá ao grupo o
sentimento de segurança indispensável a qualquer realização, garantindo a eficiência dos esforços
objetivos contra a ameaça do imprevisível". Encaminhamentos
como esses de questões de teoria
antropológica, conferem a essa
monografia de Darcy o teor de um
texto clássico da etnologia brasileira, de cuja leitura muito ainda
poderão aproveitar estudiosos e
estudantes da antropologia.
Mas se esse livro e mais alguns
ensaios interessantíssimos de
Darcy sobre esses mesmos índios,
como seu ensaio sobre "A Arte
dos Índios Kadiuéu" (1951) ou seu
artigo sobre o "Sistema Familial
Kadiuéu" (1948), já indicavam o
talento do então jovem pesquisador, foram seus escritos sobre os
índios Urubus ou Kaapor, grupo
Tupi das florestas do Maranhão,
que vão revelar um etnólogo dotado de um discurso sedutor, imprimindo na linguagem da disciplina
um toque eminentemente literário
-certamente prenúncio do Darcy
escritor que surgiria mais de uma
década depois! Com sua mulher,
Berta G. Ribeiro, escreve o bonito
livro Arte Plumária dos Índios
Kaapor (1957), onde nos oferece
um esplêndido texto de antropologia estética, ilustrado por um
grande número de policromias relativas aos artefatos Kaapor, verdadeiras jóias plumísticas. E sem
se limitar à busca da beleza na cultura Kaapor, escreve ainda um trabalho bastante técnico sobre as relações entre aqueles índios e o
meio ambiente: um texto primoroso intitulado "Os índios Urubus: ciclo anual das atividades de
subsistência de uma tribo da floresta tropical" (1962). Porém seu
trabalho em que melhor exercita a
combinação da boa etnografia, enquanto "história de vida", e a arte
do bem escrever é o seu "Uirá vai
ao encontro de Maíra: as experiências de um índio que saiu à procura de Deus" (1957). Texto fascinante por seu conteúdo e pela forma da narrativa!
Muito se poderia dizer ainda sobre a etnologia de Darcy Ribeiro,
inclusive sobre seus escritos relativos ao contato interétnico, onde
sua face de indigenista aparece claramente, marcando um indubitável pioneirismo no trato das questões de interação entre índios e
não-índios, bem como sobre a
presença do Estado na administração raramente eficaz e nem sempre correta daquela interação. Esses escritos foram reunidos em seu
livro Os Índios e a Civilização: A
Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno (1970). É
um fecho perfeito para uma fase
das mais produtivas de seu itinerário intelectual, responsável por
uma obra que veio para ficar e enriquecer a literatura etnológica
brasileira.
Roberto Cardoso de Oliveira é professor titular convidado da
Unicamp e autor dos livros O Índio e o Mundo dos Brancos; Identidade, Etnia e Estrutura Social; Sobre o Pensamento Antropológico.
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