São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS

Fim de jogo

Eduardo Knapp - 1.jul.2004/Folha Imagem
Paulo Arantes no Caoc (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina da USP); quando jovem, o filósofo flertou com a idéia de ser jogador


FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

O livro se chama "Zero à Esquerda" e integra uma coleção de nome "Baderna" (editora Conrad). O primeiro de seus 17 textos é o ensaio "Apagão", de 1997, no qual o autor decreta o embotamento do pensamento progressista brasileiro sob o impacto da era FHC. O epílogo do livro, de 2003, intitula-se "Beijando a Cruz" e pode ser lido como um obituário do governo petista, pelo menos enquanto promessa de transformação social.
Provocação é o que não falta à obra recente do filósofo Paulo Arantes, 61. Seria simples se fosse possível folclorizá-lo como mais um "fracassomaníaco" de plantão ou, pior, o mais ilustre representante do "babaísmo de cátedra".
O que vai no recheio deste livro, porém, embalado pela irreverência calculada e emoldurado pelo atestado de morte do tucano-petismo, é um conjunto de textos tão difíceis quanto desconcertantes. Arantes renova a tradição marxista brasileira lançando luz sobre aquele que sempre foi seu ponto cego -a crítica radical do mundo colonizado pelo capital.
É por isso que pode identificar nos progressistas de ontem, hoje ajustados à ordem liberal, os condutores do que ele chama de "bloco histórico da crueldade social". Aos colegas intelectuais que ainda pensam que o governo Lula está "em disputa", Arantes não só lembra que entramos na nossa "terceira década perdida", como responde que discutir hoje se somos ou não um país viável "não faz mais o menor sentido".
Equivale a dizer que a idéia de que nossa modernização seria uma obra incompleta é, como se sempre foi e não sabíamos, totalmente furada, que nossa "integração" ao mundo contemporâneo é essa que aí está, não tem "resto".
Professor aposentado da USP, autor de livros como "Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira" (Paz e Terra, 1992) e "O Fio da Meada" (Paz e Terra, 1996), Arantes idealizou e coordenou entre 1997 e 2001 a coleção Zero à Esquerda, da editora Vozes, que reúne cerca de 30 títulos. Jornalista diletante, o filósofo é há um ano e meio responsável pelos dossiês temáticos da revista "Reportagem", uma publicação mensal de esquerda. E lançou no final do ano passado a coleção Estado de Sítio, pela Boitempo. Atividades, como ele diz ironizando seus críticos, de "um fatalista que baniu a política do horizonte".
 

Folha - O seu livro começa com o "Apagão" da era tucana e se encerra com o governo petista "Beijando a Cruz", isto é, capitulando. O tom dos dois ensaios é de catástrofe, e nela a tradição do pensamento progressista brasileiro vai pelo ralo junto com o país. Não estão muito carregadas essas tintas?
Paulo Arantes -
Estou vendo que vou ter que me reexplicar. Voltemos à extinção da inteligência dos inteligentes. Tanto faz se cardosistas ou lulistas, graúdos ou miúdos, a vala é comum, a alternância é a do sempre igual, a hegemonia ora incha ora emagrece, mas é a de sempre, a viagem é redonda, como diria Raymundo Faoro.
Recomecemos pelo Febeapá que procurei dicionarizar [no "Diccionário de Bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda", de 1997], e o repertório poderia se estender ao mundo-provérbio do capitalismo lulista. A novidade é que os cocorocas da predileção de Stanislaw Ponte Preta provinham então da fina flor da inteligência estabelecida.
O desastre social não se abatera pelas mãos de desclassificados como Menem e Fujimori, mas por um primeiro time de intelectuais e assemelhados. A comissão de frente materialista do refrão "não há alternativa". O buraco negro do pensamento já começa nesse grau zero de imaginação.
Não é pouca coisa a chuva de estereótipos, o realejo de clichês da parte das mais sutis e avançadas inteligências. Do tipo "se aumentar o mínimo, quebra a Previdência" -acho que este nos acompanhará até a próxima glaciação.

Folha - É o que você chamou de ajuste intelectual, a adaptação forçada ou consentida do pensamento de esquerda à maré liberal?
Arantes -
O eclipse do pensamento se exprime no automatismo destes estereótipos do dia, no geral adiantadinhos, na onda de todas as superações e quebras de barreiras, somatória de clichês de uma "sociedade de risco" em pleno deslanche, por isso proteção social é encosto. É nesse mingau que foi ficando cada vez mais difícil distinguir os juízos peremptórios dos "marxistas distraídos" [expressão inspirada no ensaio "O Pensamento Único e o Marxista Distraído", que consta do novo livro de Arantes] e as idéias feitas encontráveis em qualquer almanaque da globalização acerca dos constrangimentos sistêmicos de toda sorte, algo como uma cosmogonia da asneira com legendas em português progressista.

Folha - Mas isso que você descreve e critica é a chamada Terceira Via, uma vertente política e intelectual que toma corpo com a queda do Muro de Berlim e não é propriamente brasileira. Dá para explicar melhor onde entram as legendas em português?
Arantes -
Estou chegando à sua questão. O ponto é que o juízo de atribuição da desgraça social corrente à inexorabilidade de uma causalidade sistêmica, compartilhada por marxistas invulgares e idiotas da globalização, não é de modo algum uma inferência cognitiva. Na opinião de um psicanalista francês, Christophe Dejours, num caso como este em que a crassa asneira assinala a suspensão da faculdade de julgar, seria mais apropriado falar de uma estratégia psicológica defensiva, graças à qual, escorados em clichês deterministas, vai se cristalizando algo como uma convivência normalizadora com o horror econômico já naturalizado.
O ajuste intelectual tucano-petista é a incorporação da estupidez marxo-progressista ao atual consentimento coletivo na injustiça e no sofrimento das populações, na expansão da tolerância com o intolerável, conforme foi se avolumando a maré sinistra das vulnerabilidades. Quantos "sacos de maldades" foram abertos de lá para cá? A estupidez cresce no buraco deixado pela ausência de pensamento dos nossos inteligentérrimos. Ela é cruel, socialmente cruel, restando pesquisar o que saiu de cena, o essencial que nos fazia pensar, entendendo por pensamento uma regulação silenciosa que se persegue para evitar a contradição, a exceção para si mesmo.

Folha - E o que saiu de cena e nos impediria de pensar?
Arantes -
Algo que na experiência brasileira nos fazia pensar foi definhando, estancou a imaginação e abriu as comportas da idiotia triunfante e bem-pensante. É só reparar nas falas familiares com que os de cima vão se irresponsabilizando socialmente no vocabulário da moda, como se pode ver até cegar num filme espantoso, inclusive pela ambivalência, como "Cronicamente Inviável", de Sérgio Bianchi. Formou-se um bloco histórico da crueldade social.
A capacidade de julgar e refletir por si mesmo que no vértice superior se eclipsou sob a capa do mais crasso cinismo. É assim -e ponto. E na base é mero embotamento defensivo, uma falta de juízo que anula a vontade de agir coletivamente diante da experiência bruta do sofrimento, da desgraça que se está infligindo aos outros, enquanto é atribuída a uma calamidade sistêmica.
O psicanalista francês mencionado atrás dá mais uma volta no parafuso na procura da junção material entre a banalização da injustiça social e a desnecessidade do pensamento até esbarrar, na sua prática clínica, na evidência de que é pela mediação do sofrimento no destroçado mundo do trabalho que afinal se forma mais do que o consentimento, a colaboração com o serviço sujo da exploração. Sublinhe colaboração -não estamos brincando!
A mesma colaboração do civilizado povo alemão naquilo que se sabe, sem falar na dos países ocupados. Com todas as ressalvas, mais do que óbvias, não estava abusando da careta assustadora, fazendo número fora de hora, quando comecei pela revelação da estupidez da inteligência no Terceiro Reich segundo Adorno e Horkheimer.

Folha - Mas nosso apagão é bem distinto da tragédia nazista. Você parece anunciar uma catástrofe maior que aquela oferecida pelo nosso suave fiasco histórico, onde afinal nada acontece.
Arantes -
De fato, não é uma catástrofe frankfurtiana. Nosso suave fiasco histórico, onde afinal nada acontece. Gostei da sua fórmula. Vamos inverter os papéis. Acabei de ler o seu "Chico Buarque" [Publifolha, 2004], mera coincidência. A propósito, fiasco é uma expressão traiçoeira, herda um pouco da síndrome carcomida do Brasil país-errado. Evoca o vexame, o papelão diante do mundo lá fora, ou, em versão bossa-nova, a promessa de felicidade que o nosso paraíso musical ainda está devendo ao mundo. Estou sendo injusto, você não pensa assim.
Quem sabe o correto low profile do seu personagem não contaminou um pouco o livro, são de fato "suaves" os tons em que se apresentam o sem-número de variações do tema recorrente "colapso de um projeto nacional". Veja como é forte a tentação, mal e mal eu também o acompanho "vagando sobre escombros", num país insolvente, esquecido de si mesmo, à beira da anomia social, ... n vezes "inviabilizado", outra palavrinha traiçoeira com a qual aliás joga o tempo todo o filme do Bianchi.
É verdade que você distingue com nitidez o regozijo caetanista, de quem se deu bem no remelexo desta desagregação toda, do discreto e persistente mal-estar do seu objeto de estudo. É tudo muito em surdina, confesso que preferia a estridência de suas crônicas sobre TV -e não pelo gosto do grotesco pelo grotesco. Em confronto, o desmanche do Chico é muito estilizado, quase bom-moço. Mas não é o ponto onde quero chegar te entrevistando.

Folha - Voltemos então aos papéis de origem. Como ficamos?
Arantes -
Também estou procurando identificar o vetor desagregador de todas estas mudanças, como você diz. Não é de hoje a sensação de que o país anda em círculos, quando não se estafa e sacrifica uma geração inteira justamente para não retroceder. A sensação segundo você de que algo anda sem sair do lugar, figurada nas canções de Chico Buarque, entra em cena, para citar dois modelos extremos, no enorme girar em falso entre animação e fastio identificado pelo Roberto Schwarz na hélice que empurra a narrativa machadiana em direção à coisa nenhuma, nulidade porém de uma classe proprietária confortavelmente instalada entre dois mundos, e culmina no movimento delirante de "Cidade de Deus" (o romance de Paulo Lins, não o filme!), que também não leva a lugar algum, como me lembro de Vilma Arêas [crítica literária, professora da Unicamp] ter comentado, referindo-se a um poder neutralizador dos esforços tanto lícitos quanto ilícitos dos pobres para mudar de situação, ali também as coisas não andam e nada acontece.
Tudo isto é verdade e otimamente bem achado e melhor ainda formulado. Mesmo assim fico pensando. Quanto aos artistas e sua função sismográfica, tudo bem, mas e nós?

Folha - O entrevistador é que pergunta.
Arantes -
O país está entrando em sua terceira década perdida, quase uma geração, e o melhor de nossa crítica, uma vez enunciado esse teorema crucial, por sua vez parece que passou a andar em círculo, mimetizando as obras comentadas. Não me pergunte o que fazer, que não sou bobo assim a ponto de responder.
Ou por outra, quem sabe com a mão de gato do outro Chico -o de Oliveira, o homem do "Ornitorrinco" [título do posfácio escrito em 2003 ao livro "Crítica à Razão Dualista", de 1973]. Acho que com o esquema dele levamos alguma chance de sair desse redemoinho conceitual em que rodopia o "nosso suave fiasco histórico". É certo que a evocação de tal bichinho anômalo é o derradeiro tributo que este Chico de agora ainda presta aos antigos esquemas de emparelhamento na escala evolutiva das nações. Mas só. A sociedade derrotada do outro Chico -o Buarque- também comparece, mas a cena agora é escancaradamente materialista, e as coisas pelo menos mudam de lugar. A começar pelo entorse cavalar na tradição crítica do Brasil-em-construção, sem jogar fora, digamos, as suas conquistas, submetidas a uma triagem das mais drásticas.
O tal colapso deixa de ser um naufrágio na praia, uma desconexão imerecida, para exprimir uma integração total, perversa a mais não poder, porém sem resto. O "nosso" trabalho informal em metástase anuncia o futuro do setor formal mundo afora, está aqui um dos grandes laboratórios em que Terceira Revolução Industrial, regime financeiro da acumulação etc. precipitaram a universalização de trabalho abstrato.
Num artigo recente, Mike Davis [urbanista norte-americano] descreveu este panorama avassalador como um mundo-favela atravessado pelo tumulto de um gigantesco proletariado informal. Tudo em linha com a versão crítica -pois há uma apologética- da tese da brasilianização do mundo, algo como a extensão planetária da nossa fratura.
Espero estar conseguindo sugerir que a questão de saber se somos ou não "viáveis" não faz mais o menor sentido. Que mesmo a idéia substantiva de desenvolvimento supõe um quadro de normalidade capitalista que tampouco resiste ao menor teste de realidade, que o digam as horrendas sociedades que são as máquinas chinesa e indiana de crescimento.
Vivemos num estado de emergência econômica permanente, não é por nada que lá no centro do mundo volta e meia alguém proclama que o planeta está maduro para uma nova recolonização, dos territórios relevantes, é claro. No resumo da economista Leda Paulani, a melhor imagem deste "admirável mundo novo do trabalho", como quer Ulrich Beck, é a da brasileiríssima empregada doméstica vivendo da mão para a boca, sem registro e direitos quase nenhum, jornada de trabalho elástica e indefinível, porém proprietária de um celular. Novamente não me pergunte o que fazer. Só sei que a base de uma nova política é essa. Ou é melhor falar de outra coisa.


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