São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 2000

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ENTREVISTA DA 2ª

Para Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais, envolvidos têm de ser afastados do serviço público

"Tortura não tem perdão", diz psicóloga

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

A Lei da Anistia não perdoou torturadores do regime militar (1964-85), envolvidos com tortura têm de ser afastados do serviço público, os arquivos secretos da repressão precisam ser abertos, não há perdão para a tortura.
Essas são opiniões da psicóloga Cecília Coimbra, 59, presidente do grupo Tortura Nunca Mais. Na semana passada, a identificação em funções públicas de quatro acusados de envolvimento com tortura expôs velhas feridas.
O tenente da reserva do Exército Carlos Alberto del Menezzi foi afastado de uma diretoria da Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O coordenador do banco de dados sobre criminosos do Ministério da Justiça, coronel do Exército Rubens Bizerril, deixou o cargo. Mais quatro agentes da Abin, cujas identidades não foram reveladas, também foram afastados.
Criado há 15 anos, o Tortura Nunca Mais, entre outras atividades, dedica-se, como organizações de caçadores de nazistas, a denunciar torturadores do regime militar. E defende vítimas recentes de maus-tratos policiais.
Doutora em psicologia, sua presidente é professora da UFF (Universidade Federal Fluminense). Em 1970, por abrigar em sua casa militantes da luta armada, foi presa e torturada. A seguir, sua entrevista à Folha.

Folha - Amplos setores políticos, inclusive militares, consideram que a Lei da Anistia, de 1979, perdoou crimes de ambos os lados em confronto no regime militar. Por que o Tortura Nunca Mais quer afastar membros do governo envolvidos com tortura no passado?
Cecília Coimbra -
Mesmo que essas pessoas tivessem sido anistiadas, os crimes cometidos são inanistiáveis, imprescritíveis e de lesa-humanidade. Não poderiam ocupar cargos em nenhum governo, cargos pagos com dinheiro da sociedade brasileira. Não aceitamos essa Lei da Anistia.

Folha - Por quê?
Cecília -
A lei é uma figura muito estranha juridicamente. Trata das pessoas que cometeram crimes, dos chamados subversivos. Cria os chamados crimes conexos, mas não define o que são. Em momento algum, cita a questão da tortura e o nome dos torturadores, os crimes que eles cometeram. Para nós, crime conexo não significa tortura.

Folha - Qual a proposta: que antigos torturadores não possam ter cargos públicos ou que também sejam punidos criminalmente?
Cecília -
Já se passaram 30 anos, haveria prescrição. A gente coloca o seguinte: quem são essas pessoas? Onde elas se escondem? O que fizeram?
É o mínimo que um governo que se diz democrata pode trazer para a sociedade brasileira. Apareçam, digam quem são, o que fizeram, mesmo que suas penas sejam prescritas, anistiadas.

Folha - Ao afastar preventivamente mais agentes da Abin, investigados numa sindicância, o general Alberto Cardoso, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, não contribui para esclarecer o passado?
Cecília -
Ele não quis dizer os nomes dos agentes para a sociedade brasileira. É um absurdo, estou indignada. São os mesmos esquemas da ditadura: o sigilo, o documento confidencial, secreto. Que democracia é essa?
Como é que o presidente da República vem dizendo que tem horror à tortura? O mínimo que pode fazer, para começar a limpar a mancha que ficou em algumas instituições, nas Forças Armadas, por exemplo, é trazer a público esses nomes.
O que o chefe do Exército, general Gleuber Vieira, vem falando é um desrespeito às pessoas que morreram.

Folha - A senhora se refere à afirmação de que movimentos como o Tortura Nunca Mais se alimentam de fel?
Cecília -
Isso é um desrespeito ao sofrimento que até hoje têm os familiares de mortos e desaparecidos, que não conseguiram enterrar seus mortos. É um desrespeito inclusive à geração do presidente e aos amigos do presidente que sofreram, foram perseguidos, desapareceram.
Se um presidente diz ter horror a torturador, deveria demitir um chefe do Exército que faz esse tipo de declaração.

Folha - Os grandes Estados democráticos têm agências de inteligência. A senhora é contra a existência da Abin?
Cecília -
Uma agência de inteligência de um país que pretende ser democrático não pode funcionar como a Abin. É inadmissível que não se conheça os funcionários envolvidos com tortura.
É inadmissível ver no Infoseg (banco de dados federal com informações sobre crimes e criminosos) nomes de pessoas já anistiadas. São dois pesos e duas medidas. Os torturadores dizem que foram anistiados em cima da questão dos crimes conexos, os nomes são mantidos em sigilo.
Do outro lado, as pessoas cujos nomes todos conhecem, cujos crimes que dizem que elas cometeram são públicos, continuam com seus nomes nos arquivos. Que regime democrático é esse?

Folha - Grupos militares consideram revanchismo discutir ainda hoje tortura e torturadores do regime militar.
Cecília -
O trabalho do grupo Tortura Nunca Mais não é de revanchismo. Não queremos aplicar a pena de Talião em ninguém. Eu sempre fui contra, acho que a tortura denigre o ser humano, desumaniza.

Folha - Recentemente, na Alemanha, um ex-oficial nazista estava sendo julgado por crimes cometidos há quase seis décadas. Até quando irá no Brasil a caça a torturadores do regime militar?
Cecília -
Não depende de nós. Não gosto da palavra caça. Não estamos caçando ninguém. Os responsáveis por isso estão no governo. É o governo que mantém em quadros importantes pessoas ligadas à repressão desse período.

Folha - Há perdão para a tortura?
Cecília -
Não. As denúncias irão até o momento em que o governo disser para a sociedade quem são seus funcionários.
E quando revelar os arquivos ditos secretos da repressão. Sistematicamente, o governo diz que eles não existem. Sistematicamente, temos provas de que existem. Os arquivos estão sob responsabilidade da Presidência, que diz ter horror à tortura.
Esses arquivos precisam ser conhecidos não só pelas entidades de direitos humanos, mas pela sociedade brasileira.

Folha - Nos 15 anos do grupo Tortura Nunca Mais, quantos acusados de tortura no regime militar foram descobertos em órgãos públicos?
Cecília -
Mais de 30, no Brasil inteiro.

Folha - Quantas pessoas devem ter participado diretamente de tortura?
Cecília -
A lista do Brasil: Nunca Mais (projeto da igreja concluído em 1985) tem 444. Depois, foi ampliada. Ao todo, são 27 mil citados, com a distinção entre três tipos de trabalho: o diretamente envolvido com tortura; o que não era envolvido diretamente com tortura, mas cujo trabalho era importante para a tortura; e o burocrático, que são os encarregados de inquéritos policiais-militares e conselhos de Justiça.
Não é só aquele que pendurava o outro no pau-de-arara, que dava choque elétrico que tem de ser denunciado. Esse cara fazia parte de uma grande máquina.

Folha - O Tortura Nunca Mais quer a exoneração do secretário de Segurança do Rio, Josias Quintal, por ter sido analista de informações do DOI-Codi. Se não lhe pesa acusação de tortura, por que ele não pode ter um cargo público no regime democrático?
Cecília -
A máquina de tortura, que ainda hoje está montada aí, só funciona porque é composta de vários elos. O analista de informações não encostava o dedo em você, mas era o responsável por torturas que você sofria.
Estudava os depoimentos dos presos, os documentos das organizações. Era ele que dizia que um depoimento estava incompleto, levando a novas torturas.

Folha - Quantos ex-integrantes do aparato repressivo têm cargos públicos hoje?
Cecília -
Gostaríamos de saber. Existe o Sebastião Curió, por exemplo, torturador, agora eleito prefeito de Curionópolis (PA).

Folha - O que o país ganha ao saber que alguém que trabalha na agência de inteligência federal foi acusado de torturas há 30 anos, como o ex-tenente Carlos Alberto del Menezzi, afastado da Abin?
Cecília -
Eu fico estupefata com esse tipo de pergunta. Todo cidadão brasileiro precisa saber da sua história, para que possa construir uma democracia. Essa história não é passado, está hoje, aqui.
As comissões de direitos humanos da Câmara dos Deputados e da Assembléia do Rio acabam de ouvir um depoimento de um cabo da Aeronáutica torturado.
Numa mesa-redonda na UFF, Marcelo Freixo, assessor do deputado estadual Chico Alencar (PT), leu o depoimento do cabo e perguntou de que período era. A maioria dos estudantes disse que era dos anos 70.
Esse problema é do presente. A sociedade ganha não só ao saber da sua história, mas ao se prevenir. Essas coisas não podem estar acontecendo, mas estão. Se antes era contra os opositores políticos, de um modo geral de classe média, hoje são os companheiros do campo e os miseráveis.

Folha - Por que a tortura hoje, quando as vítimas são presos comuns, quase sempre pobres e mestiços, não tem tanta repercussão quanto no passado?
Cecília -
A tortura a presos políticos horroriza a sociedade. A tortura a pobre nunca horrorizou. A gente que passou por isso é de classe média, tem que dizer. Isso está na raiz da história do Brasil. Produz-se na cabeça das pessoas isso de que pobre não é gente.
Não é à toa que um país que passa 300 anos de escravidão tem isso como herança cultural. Pobre, normalmente negro, mulato, morador de periferia, não é considerado gente. Contra ele, a tortura é até permitida.

Folha - Por que a Lei da Tortura, há mais de três anos em vigor, quase não é aplicada?
Cecília -
Quem pratica a tortura são os agentes do Estado, nos porões. A Lei da Anistia fortaleceu uma tradição da história do Brasil de manter a impunidade daqueles que violam os direitos humanos. O Estado é o principal violador dos direitos humanos.

Folha - A senhora poderia contar a sua experiência com a tortura?
Cecília -
Fui presa no dia 24 de agosto de 1970, só saindo quase três meses depois. Fiquei dois dias no Dops, onde houve tortura psicológica, humilhações, mas não houve agressão física.
Depois fui para o DOI-Codi, onde fiquei até 14 de novembro. Lá, fui levada à sala roxa, com luz e paredes roxas. Puseram-me nua. Molharam-me o corpo, deram-me choques elétricos no bico do seio, na vagina, na língua, no ouvido. Você perde... Você se urina toda, se defeca toda. Você perde...
Tinha um filhote de jacaré, puxado pelo rabo por uma corda. Nua, me puseram um filhote andando pelo corpo. Nesse dia, comecei a bater com a cabeça na parede e desmaiei.



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