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ENTREVISTA DA 2ª
Para Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais, envolvidos têm de ser afastados do serviço público
"Tortura não tem perdão", diz psicóloga
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
A Lei da Anistia não perdoou
torturadores do regime militar
(1964-85), envolvidos com tortura
têm de ser afastados do serviço
público, os arquivos secretos da
repressão precisam ser abertos,
não há perdão para a tortura.
Essas são opiniões da psicóloga
Cecília Coimbra, 59, presidente
do grupo Tortura Nunca Mais. Na
semana passada, a identificação
em funções públicas de quatro
acusados de envolvimento com
tortura expôs velhas feridas.
O tenente da reserva do Exército
Carlos Alberto del Menezzi foi
afastado de uma diretoria da Abin
(Agência Brasileira de Inteligência). O coordenador do banco de
dados sobre criminosos do Ministério da Justiça, coronel do Exército Rubens Bizerril, deixou o cargo. Mais quatro agentes da Abin,
cujas identidades não foram reveladas, também foram afastados.
Criado há 15 anos, o Tortura
Nunca Mais, entre outras atividades, dedica-se, como organizações de caçadores de nazistas, a
denunciar torturadores do regime militar. E defende vítimas recentes de maus-tratos policiais.
Doutora em psicologia, sua presidente é professora da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Em 1970, por abrigar em sua casa
militantes da luta armada, foi presa e torturada. A seguir, sua entrevista à Folha.
Folha - Amplos setores políticos,
inclusive militares, consideram
que a Lei da Anistia, de 1979, perdoou crimes de ambos os lados em
confronto no regime militar. Por
que o Tortura Nunca Mais quer
afastar membros do governo envolvidos com tortura no passado?
Cecília Coimbra - Mesmo que essas pessoas tivessem sido anistiadas, os crimes cometidos são inanistiáveis, imprescritíveis e de lesa-humanidade. Não poderiam
ocupar cargos em nenhum governo, cargos pagos com dinheiro da
sociedade brasileira. Não aceitamos essa Lei da Anistia.
Folha - Por quê?
Cecília - A lei é uma figura muito
estranha juridicamente. Trata das
pessoas que cometeram crimes,
dos chamados subversivos. Cria
os chamados crimes conexos,
mas não define o que são. Em momento algum, cita a questão da
tortura e o nome dos torturadores, os crimes que eles cometeram. Para nós, crime conexo não
significa tortura.
Folha - Qual a proposta: que antigos torturadores não possam ter
cargos públicos ou que também sejam punidos criminalmente?
Cecília - Já se passaram 30 anos,
haveria prescrição. A gente coloca
o seguinte: quem são essas pessoas? Onde elas se escondem? O
que fizeram?
É o mínimo que um governo
que se diz democrata pode trazer
para a sociedade brasileira. Apareçam, digam quem são, o que fizeram, mesmo que suas penas sejam prescritas, anistiadas.
Folha - Ao afastar preventivamente mais agentes da Abin, investigados numa sindicância, o general Alberto Cardoso, ministro-chefe
do Gabinete de Segurança Institucional, não contribui para esclarecer o passado?
Cecília - Ele não quis dizer os nomes dos agentes para a sociedade
brasileira. É um absurdo, estou
indignada. São os mesmos esquemas da ditadura: o sigilo, o documento confidencial, secreto. Que
democracia é essa?
Como é que o presidente da República vem dizendo que tem
horror à tortura? O mínimo que
pode fazer, para começar a limpar
a mancha que ficou em algumas
instituições, nas Forças Armadas,
por exemplo, é trazer a público esses nomes.
O que o chefe do Exército, general Gleuber Vieira, vem falando é
um desrespeito às pessoas que
morreram.
Folha - A senhora se refere à afirmação de que movimentos como o
Tortura Nunca Mais se alimentam
de fel?
Cecília - Isso é um desrespeito ao
sofrimento que até hoje têm os familiares de mortos e desaparecidos, que não conseguiram enterrar seus mortos. É um desrespeito
inclusive à geração do presidente
e aos amigos do presidente que
sofreram, foram perseguidos, desapareceram.
Se um presidente diz ter horror
a torturador, deveria demitir um
chefe do Exército que faz esse tipo
de declaração.
Folha - Os grandes Estados democráticos têm agências de inteligência. A senhora é contra a existência
da Abin?
Cecília - Uma agência de inteligência de um país que pretende
ser democrático não pode funcionar como a Abin. É inadmissível
que não se conheça os funcionários envolvidos com tortura.
É inadmissível ver no Infoseg
(banco de dados federal com informações sobre crimes e criminosos) nomes de pessoas já anistiadas. São dois pesos e duas medidas. Os torturadores dizem que
foram anistiados em cima da
questão dos crimes conexos, os
nomes são mantidos em sigilo.
Do outro lado, as pessoas cujos
nomes todos conhecem, cujos crimes que dizem que elas cometeram são públicos, continuam com
seus nomes nos arquivos. Que regime democrático é esse?
Folha - Grupos militares consideram revanchismo discutir ainda hoje tortura e torturadores do regime
militar.
Cecília - O trabalho do grupo
Tortura Nunca Mais não é de revanchismo. Não queremos aplicar a pena de Talião em ninguém.
Eu sempre fui contra, acho que a
tortura denigre o ser humano, desumaniza.
Folha - Recentemente, na Alemanha, um ex-oficial nazista estava
sendo julgado por crimes cometidos há quase seis décadas. Até
quando irá no Brasil a caça a torturadores do regime militar?
Cecília - Não depende de nós.
Não gosto da palavra caça. Não
estamos caçando ninguém. Os
responsáveis por isso estão no governo. É o governo que mantém
em quadros importantes pessoas
ligadas à repressão desse período.
Folha - Há perdão para a tortura?
Cecília - Não. As denúncias irão
até o momento em que o governo
disser para a sociedade quem são
seus funcionários.
E quando revelar os arquivos ditos secretos da repressão. Sistematicamente, o governo diz que
eles não existem. Sistematicamente, temos provas de que existem. Os arquivos estão sob responsabilidade da Presidência,
que diz ter horror à tortura.
Esses arquivos precisam ser conhecidos não só pelas entidades
de direitos humanos, mas pela sociedade brasileira.
Folha - Nos 15 anos do grupo Tortura Nunca Mais, quantos acusados
de tortura no regime militar foram
descobertos em órgãos públicos?
Cecília - Mais de 30, no Brasil inteiro.
Folha - Quantas pessoas devem
ter participado diretamente de tortura?
Cecília - A lista do Brasil: Nunca
Mais (projeto da igreja concluído
em 1985) tem 444. Depois, foi ampliada. Ao todo, são 27 mil citados, com a distinção entre três tipos de trabalho: o diretamente
envolvido com tortura; o que não
era envolvido diretamente com
tortura, mas cujo trabalho era importante para a tortura; e o burocrático, que são os encarregados
de inquéritos policiais-militares e
conselhos de Justiça.
Não é só aquele que pendurava
o outro no pau-de-arara, que dava choque elétrico que tem de ser
denunciado. Esse cara fazia parte
de uma grande máquina.
Folha - O Tortura Nunca Mais
quer a exoneração do secretário de
Segurança do Rio, Josias Quintal,
por ter sido analista de informações do DOI-Codi. Se não lhe pesa
acusação de tortura, por que ele
não pode ter um cargo público no
regime democrático?
Cecília - A máquina de tortura,
que ainda hoje está montada aí, só
funciona porque é composta de
vários elos. O analista de informações não encostava o dedo em você, mas era o responsável por torturas que você sofria.
Estudava os depoimentos dos
presos, os documentos das organizações. Era ele que dizia que um
depoimento estava incompleto,
levando a novas torturas.
Folha - Quantos ex-integrantes
do aparato repressivo têm cargos
públicos hoje?
Cecília - Gostaríamos de saber.
Existe o Sebastião Curió, por
exemplo, torturador, agora eleito
prefeito de Curionópolis (PA).
Folha - O que o país ganha ao saber que alguém que trabalha na
agência de inteligência federal foi
acusado de torturas há 30 anos, como o ex-tenente Carlos Alberto del
Menezzi, afastado da Abin?
Cecília - Eu fico estupefata com
esse tipo de pergunta. Todo cidadão brasileiro precisa saber da sua
história, para que possa construir
uma democracia. Essa história
não é passado, está hoje, aqui.
As comissões de direitos humanos da Câmara dos Deputados e
da Assembléia do Rio acabam de
ouvir um depoimento de um cabo da Aeronáutica torturado.
Numa mesa-redonda na UFF,
Marcelo Freixo, assessor do deputado estadual Chico Alencar (PT),
leu o depoimento do cabo e perguntou de que período era. A
maioria dos estudantes disse que
era dos anos 70.
Esse problema é do presente. A
sociedade ganha não só ao saber
da sua história, mas ao se prevenir. Essas coisas não podem estar
acontecendo, mas estão. Se antes
era contra os opositores políticos,
de um modo geral de classe média, hoje são os companheiros do
campo e os miseráveis.
Folha - Por que a tortura hoje,
quando as vítimas são presos comuns, quase sempre pobres e mestiços, não tem tanta repercussão
quanto no passado?
Cecília - A tortura a presos políticos horroriza a sociedade. A tortura a pobre nunca horrorizou. A
gente que passou por isso é de
classe média, tem que dizer. Isso
está na raiz da história do Brasil.
Produz-se na cabeça das pessoas
isso de que pobre não é gente.
Não é à toa que um país que passa 300 anos de escravidão tem isso
como herança cultural. Pobre,
normalmente negro, mulato, morador de periferia, não é considerado gente. Contra ele, a tortura é
até permitida.
Folha - Por que a Lei da Tortura,
há mais de três anos em vigor, quase não é aplicada?
Cecília - Quem pratica a tortura
são os agentes do Estado, nos porões. A Lei da Anistia fortaleceu
uma tradição da história do Brasil
de manter a impunidade daqueles
que violam os direitos humanos.
O Estado é o principal violador
dos direitos humanos.
Folha - A senhora poderia contar
a sua experiência com a tortura?
Cecília - Fui presa no dia 24 de
agosto de 1970, só saindo quase
três meses depois. Fiquei dois dias
no Dops, onde houve tortura psicológica, humilhações, mas não
houve agressão física.
Depois fui para o DOI-Codi, onde fiquei até 14 de novembro. Lá,
fui levada à sala roxa, com luz e
paredes roxas. Puseram-me nua.
Molharam-me o corpo, deram-me choques elétricos no bico do
seio, na vagina, na língua, no ouvido. Você perde... Você se urina
toda, se defeca toda. Você perde...
Tinha um filhote de jacaré, puxado pelo rabo por uma corda.
Nua, me puseram um filhote andando pelo corpo. Nesse dia, comecei a bater com a cabeça na parede e desmaiei.
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