São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

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Alca não barrará política interna, diz Amorim

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva vai negociar a Alca com um olho na política interna. "Nossa disposição é a de buscar vantagens para os produtos de interesse do Brasil, mas sem assumir obrigações que fechem totalmente o espaço para políticas internas de desenvolvimento, como políticas industriais ou de saúde", avisa Celso Luiz Nunes Amorim, 60, ministro das Relações Exteriores de Luiz Inácio Lula da Silva.
Traduzindo: o novo governo não vai aceitar que um acordo como o da Alca impeça estímulos a determinados setores ou o direcionamento do investimento externo (política industrial) ou iniba a produção de remédios genéricos (política de saúde). As propostas já apresentadas pelos EUA, na negociação da Alca, barram ambos os tipos de política.
Amorim falou à Folha pelo telefone ontem, de seu gabinete na Embaixada em Londres, onde fica até dia 27. Reafirmou que a prioridade um da futura administração é a América do Sul e acenou com a possibilidade de um "emissário pessoal" do novo governo para lidar com a crise venezuelana.
A prioridade sul-americana não é nova para Amorim. Como chanceler de Itamar Franco, ele conduziu a tentativa de construir uma Alcsa (Área de Livre Comércio da América do Sul), uma espécie de contraponto à Alca. Mas Amorim faz questão de dizer que, apesar das prioridades óbvias, "ditadas pela realidade" (EUA e União Européia), "haverá uma política para a África e também uma política para os grandes países em desenvolvimento, como China, Índia e Rússia":
 

Folha - Qual será a prioridade um da nova administração?
Celso Amorim -
A América do Sul, entre outras razões porque é difícil imaginar um Brasil forte com uma América do Sul fraca. Essa relação é importante tanto do ponto de vista político, como econômico e até financeiro. É inútil imaginar, por exemplo, que a crise argentina não tenha repercussão no Brasil, porque, para uma viúva de Idaho que invista em fundos de pensão, é tudo a mesma coisa. Portanto, até de um ponto de vista egoísta, se se quiser, a América do Sul é fundamental para o Brasil.

Folha - Seria um relançamento da Alcsa que o senhor mesmo lançou no governo Itamar Franco?
Amorim -
Não cobro paternidade por nomes específicos. Se for uma Alcsa, o importante é que existe já uma boa base que é o Mercosul. Uma base que precisa ser reforçada, pois tem sérios problemas. Eu não tenho respostas para todos os problemas do Mercosul, mas sei que haverá um grande impulso político para reforçá-lo. O importante é a disposição de construir uma base sólida na América do Sul que reforce a posição negociadora de seus países nos vários foros internacionais ou regionais.

Folha - O fato de o Chile ter fechado um acordo direto com os EUA não prejudica essa construção?
Amorim -
A realidade é o que é. Idealmente, de fato, seria preferível uma negociação conjunta [do Chile com todos os países sul-americanos". Mas, de todo modo, há uma grande afinidade política entre o Chile e o Mercosul. Talvez se possa falar, como na Europa, em "duas velocidades" [na construção da América do Sul unida". As pequenas diferenças entre o Chile e os países do Mercosul não impedem uma coordenação política. Mas é importante dizer que a negociação entre o Chile e os Estados Unidos não é um modelo. Não se trata de uma crítica...

Folha - Na verdade, pode-se falar de antimodelo, já que há, aparentemente, cláusulas inaceitáveis para qualquer governo brasileiro e mais ainda para o do PT, não?
Amorim -
Antimodelo é você quem está dizendo.

Folha - Como o PT abandonou a tese de que a Alca seria a anexação do Brasil pelos Estados Unidos, como será a negociação agora?
Amorim -
A Alca é um espaço de negociação de vários temas. Há temas tipicamente comerciais e temas que vão muito além de comércio, como propriedade intelectual e investimentos. É preciso ver que vantagens o Brasil pode conseguir e que concessões pode fazer. Há uma grande disposição de entrar a fundo na negociação, ainda mais que não está nada fechado. Nossa disposição é a de buscar vantagens para os produtos de interesse do Brasil, mas sem assumir obrigações que fechem totalmente o espaço para políticas internas de desenvolvimento, como políticas industriais ou de saúde.

Folha - Qual a sua avaliação sobre a proposta européia para a agricultura, anunciada anteontem?
Amorim -
Por enquanto, só tomei conhecimento pelos jornais. Parece bastante decepcionante. Fala apenas em redução dos subsídios à exportação, por exemplo, quando queremos a eliminação, mesmo que seja em prazo a negociar. É uma pena porque o estímulo para convocar a rodada de Doha era o de ter uma negociação agrícola profunda. Mas também não vamos dizer que acabou, que não vamos negociar mais.

Folha - Que comportamento terá o governo em relação à Venezuela?
Amorim -
É um país vizinho, muito próximo, com afinidades com o Brasil, não com este ou aquele governo. A situação é muito difícil e a solução passa pela via do diálogo e não pela imposição. Se se adotar uma solução democrática por imposição deixa de ser democrática [parece uma crítica à oposição venezuelana que exige uma eleição antecipada]. Se for do desejo deles, se não der a impressão de que estamos nos metendo, talvez o Brasil possa ter uma emissário pessoal, que aproveite o crédito que o país tem, para buscar uma solução pelo diálogo.

Folha - E sobre o Iraque?
Amorim -
O Brasil prefere uma solução pacífica e tem muita confiança nos inspetores da ONU. Se houver, no entanto, uma violação muito flagrante das resoluções das Nações Unidas, especialmente das últimas, elas próprias prevêem consequências sérias. Mas, de todo modo, teria que ser via Conselho de Segurança.

Folha - Como o próximo governo vai trabalhar para realizar o sonho de um posto permanente para o Brasil no Conselho de Segurança?
Amorim -
O presidente eleito reafirmou, em Washington, a necessidade de o Conselho de Segurança ser democratizado. O mais é a forma. Não é fácil, pode levar um ano, dois, três, mas não se pode absolutamente abandonar a meta. O convite do presidente Bush ao presidente eleito Lula já é uma demonstração clara da importância que o Brasil tem, para, entre outros aspectos, a estabilidade regional e até além dela. Não deixa de ser curioso que um presidente republicano retome tese de um presidente democrata [Franklin Roosevelt" de que o Brasil deveria ter lugar permanente no Conselho de Segurança.


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