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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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PREVIDÊNCIA

Servidor não quer privilégio, mas respeito a direitos, afirma Paulo Gil, para quem prioridade deveria ser reforma tributária

Reforma agrada a mercado, diz sindicalista

PATRICIA ZORZAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, Paulo Gil critica a maneira como a reforma da Previdência vem sendo discutida pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva e diz que o debate, em grande parte, tem sido dominado, assim como ocorreu no mandato de Fernando Henrique Cardoso, pela lógica do capital financeiro.
""A correlação de forças na sociedade se altera pouco [com o novo governo". Claro que se altera um pouco, mas o poder do capital financeiro ainda é muito grande, é o que chamam de mercado", afirma o presidente do sindicato.
Representante de 16 mil sindicalizados, entre ativos, aposentados e pensionistas, Gil argumenta que a prioridade do governo deveria ser a reforma tributária e afirma que hoje não existe déficit na Previdência.
"O debate [sobre a reforma previdenciária" está sendo feito por uma lógica atravessada, e a gente não esperava isso do novo governo", declara o presidente do sindicato. Leia trechos da entrevista.
 

Folha - Qual o regime previdenciário dos fiscais da Receita?
Paulo Gil -
Nossa contribuição é de 11% sobre o salário integral, uma diferença fundamental e que não temos visto no debate. Nem o governo tem levantado essa questão. Outra diferença que temos em relação à iniciativa privada é que o empregador contribui com uma parte. No serviço público está faltando essa contribuição do empregador, que é a União.
Quando se calcula que tem déficit, estão esquecendo que está faltando essa parcela da União. O debate está sendo feito por uma lógica atravessada e a gente não esperava isso do novo governo. Porque o governo antigo queria entregar à iniciativa privada a Previdência. Havia também o fundamentalismo do superávit primário. A Previdência acabava sendo um item a mais do Orçamento e, como tem de reservar o montante para pagar a meta de juros, tem de arrumar mais dinheiro e reduzir as despesas. É a lógica fiscal.

Folha - A lógica do novo governo é a mesma?
Gil -
Não exclusivamente, mas acho que tem um grande peso ainda. Fala-se que tem de resolver o déficit da Previdência. Não existe déficit, porque tem de computar nas receitas as contribuições que foram criadas para isso. Se computar R$ 45 bilhões de Cofins, quase R$ 9 bilhões de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, já não há déficit. Em 2001, teria tido um superávit de R$ 34 bilhões na Previdência. Se computar ainda a contribuição da União que não é feita, aí é que não tem déficit mesmo. Tem que apurar isso. Se pegarem os desvios, dinheiro que foi para obras...

Folha - O que deveria ser feito?
Gil -
Tem de haver gestão democrática, em que os trabalhadores participem. Foi uma opção da sociedade dar alguma garantia, alguma estabilidade para o servidor que opta pelo serviço público, que vai passar uma vida ali, que só pode ter aquela atividade. Ele não tem Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, diferentemente da iniciativa privada, por exemplo.

Folha - Mas tem estabilidade.
Gil -
É importante o servidor público ter a estabilidade, que se completa com a aposentadoria tranquila, que todo mundo deveria ter, para que ele não seja sujeito a pressões políticas. A estabilidade não teve como inspiração ser um direito do servidor. Acaba sendo, mas a inspiração foi ser uma garantia para o Estado.

Folha - Com a reforma essa independência estaria comprometida?
Gil -
Vai haver uma desmotivação muito grande.

Folha - Estimularia a corrupção?
Gil -
Não dá para fazer essa ligação direta. Você pode não exercer com plenitude aquilo que se espera de sua função. No caso da Receita, pode não conseguir fazer uma investigação a contento. Mas pode ter esse componente. Algumas garantias especiais se justificam não por serem privilégios, mas por conta de o servidor ser quem exercita o interesse público.

Folha - Mas isso vale também para o Ministério Público, juízes...
Gil -
Claro, para todos.

Folha - Mas, se tudo isso for mantido, fica inviabilizada a reforma.
Gil -
Algumas coisas da reforma podem ser feitas.

Folha - Por exemplo?
Gil -
Se há, [alterar" algumas pensões injustificáveis. Mas não é feliz colocar a reforma da Previdência como prioridade. Isso é muito bom para render uma homenagem ao tal do mercado, que pressiona. Mas dizer que isso vai alavancar as mudanças sociais... O alavancador vai ser a reforma tributária, o sistema tributário deixar de ser concentrador de renda. Deveria começar por aí.

Folha - O sr. acha que isso é mais uma questão política então?
Gil -
O governo corre o risco de estar fazendo uma concessão à vontade do mercado.

Folha - O que a sua categoria estaria disposta a negociar?
Gil -
Ainda não fomos chamados para a discussão, então fica difícil dizer. Pedimos uma audiência com o ministro Ricardo Berzoini [Previdência". Posso dizer o que a categoria não está disposta a negociar: o princípio constitucional da paridade de remuneração. Se o ativo tiver um reajuste, o aposentado recebe também. Isso dá uma garantia para o pleno exercício da função para que o servidor público opte por ficar no serviço público até se aposentar. Há também a integralidade [do último salário como base para o pagamento".

Folha - E os direitos adquiridos?
Gil
- A posição do presidente do Supremo Tribunal Federal [Marco Aurélio de Mello" é a de que há quebra de contrato se mudar. Nós nos alinhamos a isso.

Folha - As pessoas optam pelo serviço público pela aposentadoria e pela estabilidade?
Gil
- Acho que um dos atrativos é a aposentadoria, uma remuneração razoável e a estabilidade.

Folha - A reforma pode prejudicar o interesse pelo serviço público?
Gil
- Sem dúvida. Há um esvaziamento de quadros sempre. A receita perdeu talvez seus melhores quadros por causa dos anúncios de reforma da Previdência.

Folha - O sr. acha que o começo do governo, com essa discussão sobre a Previdência, está sendo bom?
Gil
- Não. Está surgindo um ruído enorme. E a gente sente com isso, porque o servidor não quer privilégios. Queremos respeito aos direitos e vai ficar muito ruim se o governo estragar a relação com os servidores logo no começo. É um equívoco tratar a reforma como está sendo tratada.

Folha - Por que a discussão está ocorrendo dessa forma?
Gil
- Acho que a correlação de forças sociais ainda não é favorável aos trabalhadores.

Folha - Que forças estão dominando o governo agora?
Gil
- Não acho que está dominado, mas o fato de Lula subir ao poder não significa que os trabalhadores subiram ao poder. Significa que a esquerda passou a ocupar um espaço importante no Estado. É um governo de coalizão que não é do PT. A correlação de forças na sociedade se altera pouco. Claro que se altera um pouco, mas o poder do capital financeiro ainda é muito grande, o que chamam de mercado.

Folha - É o capital que domina?
Gil
- Ele ainda está conseguindo assustar um pouco o governo.


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