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ENTREVISTA
Petista pode fundar nova globalização, diz filósofo
TIAGO AGUIAR
FREE-LANCE PARA A FOLHA
István Mészáros, 72, filósofo
húngaro, é um dos maiores pensadores da esquerda contemporânea. Radicado na Universidade de
Sussex, na Inglaterra, desde 1991,
trabalhou com o também húngaro Georg Lukács. Mészáros participará do Fórum Social Mundial
(FSM), em Porto Alegre, onde fará palestra no dia 24, primeiro dia
de conferências, na mesa "Contra
a Militarização e a Guerra".
O filósofo é um crítico da globalização nos moldes do Consenso
de Washington, o receituário
neoliberal. Para ele, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva deve ser
o fundador de um novo modelo.
Autor de "Para Além do Capital" (2002), uma releitura de "O
Capital", de Karl Marx (1818-1883), Mészáros defende negociações multilaterais e diz que o desenvolvimento do Brasil dependerá de uma radical ruptura com
as práticas adotadas.
A "responsabilidade fiscal" buscada por Lula, segundo ele, não
será empecilho para o cumprimento das promessas sociais.
Sobre política, Mészáros diz que
a democracia na América Latina
ainda não está estabelecida.
No Fórum Social Mundial, ele
lançará o livro "O Século 21: Socialismo ou Barbárie?", pela Boitempo Editorial.
Leia trechos da entrevista:
Folha - O que o fato de Lula ser
um político de esquerda representa para o Brasil e a América Latina?
István Mészáros - Sem dúvida, a
eleição de Lula é um evento da
maior importância. Isso não pode
ser negado nem pelas forças conservadoras que se opuseram a ele.
Mas o verdadeiro significado da
vitória de Lula será revelado
quando ele desapontar as expectativas dos seus novos "apoiadores", que se aliaram a ele na tentativa de impor políticas conservadoras: os liberais.
Folha - O que o sr. acha das comparações que foram feitas entre
Lula, Fidel Castro e Hugo Chávez?
Mészáros - As comparações servem para sublinhar que a América Latina precisa de uma profunda, realmente radical, mudança.
Quando se fala de Lula, Fidel e
Chávez, não se pode deixar de
mencionar [Salvador" Allende,
que também tentou introduzir
mudanças radicais no seu país
[Chile", e morreu na tentativa.
Aqueles que não entendem a necessidade de mudanças continuarão ignorando os líderes que se
formam. Mas esses líderes continuarão aparecendo até que as razões sociais e históricas que os
criam sejam resolvidas.
Folha - Como o sr. considera que
devam ser conduzidos o comércio e
as relações políticas entre Brasil e
Estados Unidos?
Mészáros - Os formuladores das
políticas americanas continuam a
pensar que o modo correto de levar essas relações é impondo uma
"dependência estrutural" aos vizinhos. E isso não é um fenômeno
recente. Por quase todo o século
20, os EUA viram a América Latina como o seu "quintal".
Naturalmente houve mudanças, mas basta ler as memórias de
Henry Kissinger para perceber
que os "benefícios" do Norte são
meramente "táticos" para que o
status quo seja mantido. A negociação deve continuar sendo perseguida, mas com uma redefinição de metas para buscar uma
"igualdade substantiva" entre as
partes.
Folha - Lula é o terceiro presidente eleito pelo voto direto após o regime militar. Qual a sua opinião sobre a consolidação da democracia
no Brasil e na América Latina?
Mészáros - Quando você me pergunta isso, lembro de Mahatma
Gandhi. Quando lhe foi indagado
o que ele achava da civilização
ocidental, Gandhi disse que "seria
uma boa idéia". Infelizmente, democracia no continente ainda está no patamar de "seria uma boa
idéia".
Folha - Existe um ditado em política que diz que o poder funciona
como um violino: você pega com a
esquerda, mas realmente o toca
com a direita. Lula pode ir para o
centro durante o mandato como
uma forma de assegurar a governabilidade e a reeleição?
Mészáros - Não esqueça que
existem verdadeiros artistas que
podem tocar instrumentos, inclusive um violino, com a mão esquerda. A marca de políticos de
estatura, como Lula, é que eles podem enfrentar adversidades e
perseguir um objetivo com tenacidade, apesar das tentações que
os empurram na direção contrária dos compromissos originais.
Folha - Quais os caminhos para o
Brasil se desenvolver?
Mészáros -É sabido, e agora até
mesmo abertamente admitido,
que as teorias e práticas do passado para remediar o subdesenvolvimento no Terceiro Mundo falharam. É ingênuo pensar que a
ajuda do capital dominante mundial será a solução. O desenvolvimento do Brasil dependerá de
uma radical ruptura com essas
teorias e práticas.
Folha - Lula prometeu responsabilidade orçamentária e compromisso com as causas sociais. Como
ele fará progresso nas duas áreas?
Mészáros - Não acho que essa seja uma questão de uma coisa ou
outra. Pelo contrário, estou convencido de que a idéia de responsabilidade orçamentária sem
comprometimento com causas
sociais é uma contradição em termos. O que é necessário é uma
mudança estrutural, que se torna
uma impossibilidade a priori se
impusermos as imposições de
responsabilidade orçamentária
do FMI ao compromisso com as
causas sociais. Devemos nos convencer de que a chave para alcançar a "responsabilidade orçamentária" é promover as condições
sociais necessárias ao progresso.
Folha - O sr. acredita que Lula
possa fundar um novo modelo, diverso do Consenso de Washington?
Mészáros - Eu realmente espero
por isso, pois o chamado Consenso de Washington não é de forma
alguma um consenso. Ele representa a internalização das forças
dos seus representantes mais importantes. O presidente pode iniciar um processo de mudança.
Lula pode realmente dar uma importante contribuição à forma coletiva de resolver esse problema [a
representatividade de poucos".
Folha - Lula pode seguir um caminho similar ao das administrações
de Tony Blair, na Inglaterra, ou de
Lionel Jospin, na França, adotando
políticas ortodoxas para manter a
governabilidade?
Mészáros - Dificilmente. Seguir
os passos de Blair e Jospin só pode
causar problemas em vez de promover governabilidade. Alienando as esquerdas, Jospin deu um
corpo para o fantasma de Le Pen
[o candidato ultra-direitista derrotado no segundo turno por Jacques Chirac" e acabou em terceiro
lugar na corrida presidencial. Na
Inglaterra, todas as recentes eleições dos sindicatos têm dado vitória a candidatos radicais. Aqueles apoiados por Blair têm sido
sistematicamente derrotados.
Folha - Na sua opinião, quais devem ser as prioridades de Lula?
Mészáros - Lula iniciou a sua
Presidência anunciando uma
guerra contra a fome, o que demonstra a importância que o presidente dará aos problemas sociais. Mas será necessário que o
governo marque uma posição firme na questão das dívidas para
não ter suas mãos atadas por
pressões do FMI [Fundo Monetário Internacional".
Folha - Na sua opinião, quais são
os principais riscos ao governo?
Mészáros - Eu posso pensar em
duas fontes de preocupação. A
primeira: instabilidade social proveniente de um desapontamento
das expectativas populares. A segunda: um bloqueio da economia
mundial devido a uma guerra que
saia do controle e que leve a um
"fechamento" catastrófico do comércio mundial.
Folha - Qual a importância do Fórum Social Mundial?
Mészáros - É enorme. Os corpos
sociais se unindo em um fórum
social mundial são catalisadores
para a criação de uma ordem social alternativa que, de outro modo, seria inconcebível.
Folha - O sr. irá participar do FSM.
Quais as idéias que pretende apresentar e defender no encontro?
Mészáros - Pretendo falar sobre
o maior problema do nosso tempo: o perigo de uma guerra surgida das contradições insolúveis do
imperialismo global hegemônico.
O Fórum Social Mundial tem um
papel vital na mobilização popular contra esse perigo.
Folha - Quais são os grandes desafios às idéias da esquerda no futuro próximo?
Mészáros - A esquerda precisa se
recuperar da derrota sofrida pela
implosão das sociedade de estilo
soviético. A ordem estabelecida,
sob o controle do capital, encontra-se em profunda crise estrutural. O papel histórico da esquerda
socialista é elaborar e instituir
uma alternativa viável. A estrada
para essa alternativa pode ser bastante difícil. Mas eu acredito que
ela está mais próxima hoje do que
em qualquer outro momento.
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