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LANTERNA NA POPA
O livro negro do comunismo
ROBERTO CAMPOS
"Le livre noir du communisme" (Edições Robert Laffont,
Paris, 1997), escrito por seis historiadores europeus, com acesso
a arquivos soviéticos recém-abertos, é uma espécie de enciclopédia da violência do comunismo. O chamado "socialismo
real" foi uma tragédia de dimensões planetárias, superior
em abrangência e intensidade
ao seu êmulo totalitário do entreguerras -o nazifascismo.
Ao contrário da repressão episódica e acidental das ditaduras latino-americanas, a violência comunista se tornou um
instrumento político-ideológico, fazendo parte da rotina de
governo. Essa sistematização do
terror não é rara na história
humana, tendo repontado na
Revolução Francesa do século
18 na fase violenta do jacobinismo, na "industrialização do extermínio judaico" pelos nazistas, e -confesso-o com pudor- na inquisição da Igreja
Católica, que durante séculos
queimava os corpos para purificar as almas.
O "Livre noir" me veio às
mãos num momento oportuno
em que, reaberto na mídia e no
Congresso o debate sobre a violência de nossos "anos de chumbo" nas décadas de 60 e 70, me
pusera a reler o "Brasil Nunca
Mais", editado em 1985 pela Arquidiocese de São Paulo. Comparados os dois, verifica-se que
o Brasil não ultrapassou o abecedário da violência, palco que
foi de um miniconflito da Guerra Fria, enquanto que o "Livre
noir" é um tratado ecumênico
sobre as depravações ínsitas do
comunismo, este sem dúvida o
experimento mais sangrento de
toda a história humana. Produziu quase 100 milhões de vítimas, em vários continentes, raças e culturas, indicando que a
violência comunista não foi
mera aberração da psique eslava, mas, sim, algo diabolicamente inerente à engenharia
social marxista, que, querendo
reformar o homem pela força,
transforma os dissidentes primeiro em inimigos e, depois, em
vítimas.
A aritmética macabra do comunismo assim se classifica por
ordem de grandeza -China
(65 milhões de mortos); União
Soviética (20 milhões); Coréia
do Norte (2 milhões); Camboja
(2 milhões); África (1,7 milhão,
distribuído entre Etiópia, Angola e Moçambique); Afeganistão (1,5 milhão); Vietnã (1 milhão); Leste Europeu (1 milhão);
América Latina (150 mil entre
Cuba, Nicarágua e Peru); movimento comunista internacional
e partidos comunistas no poder
(10 mil).
O comunismo fabricou três
dos maiores carniceiros da espécie humana -Lênin, Stálin e
Mao Tse-tung. Lênin foi o iniciador do terror soviético. Enquanto os czares russos em quase um século -1825 a 1917-
executaram 3.747 pessoas, Lênin superou esse recorde em
apenas quatro meses após a revolução de outubro de 1917. Alguns líderes do Terceiro Mundo
figuram com distinção nessa
galeria de assassinos. Em termos de percentagem da população, o campeão absoluto foi Pol
Pot, que exterminou em 3,5
anos um quarto da população
do Camboja. Fidel Castro, por
sua vez, é o campeão absoluto
da "exclusão social", pois 2,2
milhões de pessoas, equivalentes a 20% da população da ilha,
tiveram de fugir. Juntamente
com o Vietnã, Fidel criou uma
nova espécie de refugiado, o
"boat people" -ou seja, os
"balseros", milhares dos quais
naufragaram, engordando os
tubarões do Caribe. A vasta
maioria dos países comunistas é
culpada dos três crimes definidos no artigo 6º do Estatuto de
Nuremberg: crimes contra a
paz, crimes de guerra e crimes
contra a humanidade.
A discussão brasileira sobre os
nossos "anos de chumbo" raramente situa as coisas no contexto internacional da Guerra
Fria, a qual alcançou seu apogeu nos anos 60 e 70, provocando um "refluxo autoritário" no
Terceiro Mundo. Houve intervenções militares no Brasil e na
Bolívia em 1964, na Argentina
em 1966, no Peru em 1968, no
Equador em 1972, e no Uruguai
em 1973. Fenômeno idêntico
ocorreu em outros continentes.
Os militares coreanos subiram
ao governo em 1961 e adquiriram poderes ditatoriais em
1973. Houve golpes militares na
Indonésia em 1965, na Grécia
em 1967 e, nesse mesmo ano, o
presidente Marcos impunha a
lei marcial nas Filipinas, e Indira Gandhi declarava um "regime de emergência". Em Taiwan
e Cingapura houve autoritarismo civil sob um partido dominante.
O grande mérito dos regimes
democráticos é preservar os direitos humanos, estigmatizando qualquer iniciativa de violá-los. Mas por lamentáveis que
sejam as violências e torturas
denunciadas no "Brasil, Nunca
Mais", elas empalidecem perto
das brutalidades do comunismo
cubano, minudenciadas no "Livre noir". Comparados ao carniceiro profissional do Caribe,
os militares brasileiros parecem
escoteiros destreinados apartando um conflito de subúrbio...
Enquanto Fidel fuzilou entre 15
mil e 17 mil pessoas (sendo 10
mil só na década de 60), o número de mortos e desaparecidos
no Brasil, entre 1964 e 1979, a
julgar pelos pedidos de indenização, seria em torno de 288,
segundo a Comissão de Direitos
Humanos da Câmara Federal, e
de 224 casos comprovados, segundo a Comissão de Mortos e
Desaparecidos do Ministério da
Justiça. O Brasil perde de longe
nessa aritmética macabra.
Em 1978, quando em nosso
Congresso já se discutia a "Lei
da Anistia", havia em Cuba entre 15 mil e 20 mil prisioneiros
políticos, número que declinou
para cerca de 12 mil em 1986.
No ano passado, 38 anos depois
da Revolução de Sierra Maestra, ainda havia, segundo a
Anistia Internacional, entre 980
e 2.500 prisioneiros políticos na
ilha. Em matéria de prisões e
torturas, a tecnologia cubana
era altamente sofisticada, havendo "ratoneras", "gavetas" e
"tostadoras". Registre-se um
traço de inventividade tecnológica -a tortura "merdácea",
pela imersão de prisioneiros na
merda.
Não houve prisões brasileiras
comparáveis a La Cabaña (onde ainda em 1982 houve 100 fuzilamentos), Boniato, Kilo 5,5
ou Pinar Del Rio. Com estranha
incongruência, artistas e intelectuais e políticos que denunciam a tortura brasileira visitam Cuba e chegam mesmo a
tecer homenagens líricas a Fidel
e a seu algoz-adjunto Che Guevara. Este, como procurador-geral, foi comandante da
prisão La Cabaña, onde, nos
primeiros meses da revolução,
ocorreram 120 fuzilamentos
(dos 550 confessados por Fidel
Castro), inclusive as execuções
de Jesus Carreras, guerrilheiro
contra a ditadura batista, e de
Sori Marin, ex-ministro da
agricultura de Fidel. Note-se
que Che foi o inventor dos
"campos de trabalho coletivos",
na península de Guanaha, versão cubana dos "gulags soviéticos" e dos "campos de reeducação" do Vietnã.
A repressão comunista tem
características particularmente
selvagens. A responsabilidade é
"coletiva", atingindo não apenas as pessoas, mas as famílias.
É habitual o recurso a trabalhos
forçados, em campos de concentração. Não há separação carcerária, ou mesmo judicial, entre
criminosos comuns e políticos.
Em Cuba, criou-se um instituto
original, o da "periculosidade
pré-delitual", podendo a pessoa
ser presa por mera suspeita das
autoridades, independentemente de fatos ou ações.
Causa-me infinda perplexidade, na mídia internacional e em
nosso discurso político local, a
"angelização" de Fidel e Guevara e a "satanização" de Pinochet. Isso só pode resultar de
ignorância factual ou de safadeza ideológica. Pinochet foi ditador por 17 anos; Fidel está no
poder há 39 anos. Pinochet promoveu a abertura econômica e
iniciou a redemocratização do
país, retirando-se após derrotado em plebiscito e em eleições
democráticas como senador vitalício (solução que, se imitada
em Cuba, facilitaria o fim do
embargo). Fidel considera uma
obscenidade a alternância no
poder, preferindo submeter a
nação cubana à miséria e à fome, para se manter ditador. Pinochet deixou a economia chilena numa trajetória de crescimento sustentado de 6,5% ao
ano. Antes de Fidel, a economia
cubana era a terceira em renda
por habitante entre os latino-americanos e hoje caiu ao nível
do Haiti e da Bolívia. O Chile
exporta capitais, enquanto Fidel foi um pensionista da União
Soviética e, agora, para arranjar divisas, conta com remessas
de exilados e receitas de turismo e prostituição. Em termos de
violência, o número de mortos e
desaparecidos no Chile foi estimado em 3.000, enquanto Fidel
fuzilou 17 mil! Apesar de fronteiras terrestres porosas, o Chile, com população comparável à
de Cuba e sem os tubarões do
Caribe, sofreu um êxodo de
apenas 30 mil chilenos, hoje em
grande parte retornados. Sob
Fidel, 20% da população da
ilha, ou seja, algo que nas dimensões brasileiras seria comparável à Grande São Paulo,
teve de fugir. Em suma, Pinochet submeteu-se à democracia
e tem bom senso em economia.
Fidel é um PhD em tirania e um
analfabeto em economia.
O "Livre noir" nos dá uma
idéia da bestialidade de que escapamos se triunfassem os radicais de esquerda. Lembremo-nos que, em 1963, Luiz Carlos Prestes declarava desinibidamente que "nós os comunistas já estamos no governo, mas
não ainda no poder". Parece-me ingenuidade histórica
imaginar que, na ausência da
revolução de 1964, o Brasil
manteria apenas com alguns
tropeços sua normalidade democrática. A verdade é que Jango Goulart não planejara minimamente sua sucessão, gerando
suspeitas de continuísmo. E estava exposto a ventos de radicalização de duas origens: a radicalização sindical, que levaria à hiperinflação, e a radicalização ideológica, pregada por
Brizola e Arraes, que podia resultar em guerra civil.
É sumamente melancólico
-porém não irrealista- admitir-se que, no albor dos anos
60, este grande país não tinha
senão duas miseráveis opções:
"anos de chumbo" ou "rios de
sangue"...
Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de
Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro
do Planejamento (governo Castello Branco). É
autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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