São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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CRISE FEDERAL
Policiais "grampeiam' conversa de diretor do órgão com funcionária que investiga setor de entorpecentes
Espionagem "ronda" o comando da PF

LUCAS FIGUEIREDO
da Sucursal de Brasília

Escuta telefônica em ligações do diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, poderes paralelos no órgão criados a partir de nomeações políticas e a suspeita de implicação de policiais que combatem o narcotráfico em assassinato revelam a verdadeira crise na instituição.
Integrantes da PF "grampearam", no início do ano, telefonemas de Chelotti com uma funcionária do órgão envolvida na apuração de possíveis desvios no setor de combate ao narcotráfico.
A existência da gravação foi "vazada" para pessoas de fora e de dentro do PF com o objetivo de intimidar Chelotti, que apoiava investigação interna na DRE (Divisão de Repressão a Entorpecentes), controlada politicamente pelo senador Romeu Tuma (PFL-SP), diretor da Polícia Federal por sete anos (85-93).
O "grampo", feito cinco meses antes de estourar a recente crise na Polícia Federal, revela que a instituição transformou-se numa estrutura de poderes paralelos, com feudos alimentados por nomeações políticas, não controladas pelo Ministério da Justiça.
Mostra também que a crise na PF está longe de resumir-se à atual disputa política entre o órgão e o Ministério Público. A seguir, a história da divisão na PF, apurada pela Folha nos últimos 15 dias, que tem como personagens centrais (e opostos) Chelotti e Tuma.

O "GRAMPO"
A cúpula da PF avalia que a DRE tornou-se, na última década, uma estrutura paralela dentro do órgão. Suspeita-se que o excesso de autonomia da divisão em ações de combate ao narcotráfico facilita o desvio de conduta de alguns de seus integrantes. Dois agentes da divisão são suspeitos, por exemplo, de terem assassinado o traficante Paulo Sércius, numa operação de "queima de arquivo".
Sércius foi achado morto em seu apartamento no bairro de Moema, em São Paulo, com um tiro abaixo da axila esquerda, em dezembro de 95, um mês antes de depor.
O traficante recebeu depósitos de US$ 2 milhões de uma rede de narcotráfico ligada à máfia italiana (a mesma que mandou dinheiro para PC Farias em bancos europeus e da América Latina).
Esperava-se que o depoimento do traficante pudesse revelar a participação de policiais federais no tráfico de entorpecentes, no crime organizado e na "armação" de falsos flagrantes de porte de drogas para extorquir criminosos, prática conhecida no jargão policial pela expressão "ai, ai, Jesus".
O caso Sércius é investigado pela DCOIE (Divisão de Crimes Organizados e Inquéritos Especiais) há mais de um ano. Diante dessa e de outras suspeitas que recaem sobre policiais do setor de combate ao narcotráfico, Chelotti utilizava dois agentes e uma funcionária administrativa que trabalhavam na DRE para checar possíveis desvios na divisão.
Uma das conversas telefônicas de Chelotti com a funcionária "infiltrada" na DRE foi gravada pelo núcleo de inteligência da divisão, que, entre outras funções, promove escuta de ligações de policiais que atuam na repressão ao narcotráfico.
O "grampo" acabou revelando conversas íntimas de Chelotti com a funcionária e a investigação interna na DRE, que desde 95 é comandada por Marco Antônio Cavaleiro, apadrinhado político do senador Romeu Tuma.
A existência da gravação e seu conteúdo foram "vazados" para policiais de outros setores e pessoas de fora dos quadros da PF que fazem oposição à gestão de Chelotti. Na avaliação reservada de integrantes da cúpula da PF, o "vazamento" tem o objetivo de intimidar Chelotti, responsável direto pela investigação interna na DRE.

OS CENTROS DE GRAVAÇÃO
A Polícia Federal já nasceu de um desvio: o interesse dos militares em fortalecer a segurança do Estado e a ordem social no início do regime autoritário (64-85). Assim, enquanto durou o regime militar, os chefes da PF foram escolhidos entre membros da caserna. Somente no início da redemocratização é que um civil assumiu o posto (Tuma), inaugurando a fase de poderes paralelos na instituição.
Desde o início de sua gestão, Tuma foi visto em setores militares como um parceiro ideal. A harmonia com o extinto SNI (Serviço Nacional de Informações), extinto em 90, já vinha desde o regime militar, quando Tuma comandava o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) da Polícia Civil de São Paulo.
Nomeado diretor da PF em 85, com o aval de setores militares, Tuma deslanchou um processo que culminou com a transformação da Divisão de Repressão a Entorpecentes, baseada em Brasília, em um poder quase independente dentro da instituição.
O primeiro passo foi dotar a DRE de uma estrutura de investigação própria. A divisão passou a ter escritórios próprios nos Estados, que atuavam de forma independente em relação às delegacias de repressão a entorpecentes.
Os escritórios regionais da DRE tinham seus próprios centros de gravação (salas de onde são feitas escutas telefônicas), montados com dinheiro da DEA (sigla em inglês da agência norte-americana de combate às drogas).
A autonomia chegou a tal nível que a divisão passou a descumprir normas da PF que determinam que todas as atividades sigilosas sejam planejadas e monitoradas por órgãos internos.
Ou seja, a DRE passou a controlar, de Brasília, operações sigilosas em todo o país sem, muitas vezes, o conhecimento efetivo da direção da PF ou dos superintendentes regionais. Como símbolo desse poder paralelo, a DRE passou a adotar um emblema próprio, com o desenho de uma águia.
Por pressão de delegados de outras áreas, depois de uma década de atuação praticamente independente, a DRE começou a ser enquadrada em 95, no início da gestão de Chelotti, inclusive com a eliminação paulatina do emblema da divisão colocado em carros oficiais e impressos.
Um desses delegados contrários à forma de atuação da DRE era Marcelo Itagiba, que atualmente chefia o setor de repressão a entorpecentes em São Paulo.
Um ano depois de participar junto com Chelotti, em 94, das discussões para preparação do capítulo sobre segurança pública do programa "Mãos à Obra", do então candidato a presidente Fernando Henrique Cardoso, Itagiba recebeu a tarefa de ajudar a desmontar os centros de gravação da DRE e enquadrar a divisão.
A função lhe valeu uma disputa com o então recém-nomeado chefe da DRE e apadrinhado de Tuma, Marco Antônio Cavaleiro.
No auge da rixa, Itagiba, que trabalhava no CI (Centro de Inteligência), e Cavaleiro tiveram uma discussão na garagem da sede do Departamento de Polícia Federal, um edifício de vidros escuros no setor de autarquias de Brasília.
A discussão chegou a ser anotada no livro de ocorrências do plantão. Resultado: a DRE perdeu seus centros de gravação -que funcionam hoje no Centro de Dados Operacionais, um órgão discretíssimo da PF que atua em parceria com a CIA (serviço de inteligência do EUA). Mas Cavaleiro continua no comando da DRE, ainda com bastante autonomia, proporcionada pelo poder de influência de Tuma na instituição.
Autonomia e força, já que, por interferência de Tuma, Cavaleiro se livrou de duas tentativas de Chelotti de tirá-lo da representação da PF no recém-extinto Conselho Federal de Entorpecentes.



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