São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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OS CANDIDATOS
Nos anos 70 e 80, presidente começou a transitar para uma aceitação maior da economia de mercado
Sociólogo FHC mudou antes do FHC presidente


Trabalhos essenciais da carreira sempre estiveram em uma constante e ordenada transformação


VINICIUS TORRES FREIRE
Editor de Opinião

Traidor, oportunista, desmemoriado intelectual praticante, neoliberal, de tudo isso foi chamado Fernando Henrique Cardoso nos seus anos de poder, a partir de 1993, como ministro da Fazenda do Real ou como presidente.
O "esqueçam o que escrevi", que teria dito em almoço com empresários, em 1993, tornou-se um estigma e símbolo de um intelectual e político que teria renegado uma obra e um passado de esquerda. FHC, porém, sempre negou ter dito a tal frase e sempre falou com orgulho de sua obra de sociólogo.
Seus trabalhos essenciais, publicados entre os anos 60 e 70, no entanto, sempre estiveram em constante e ordenada transformação.
Colegas, amigos, ex-amigos e inimigos na universidade afirmam que, se houve ruptura maior nas idéias de FHC, ela teria ocorrido entre os anos 70 e 80.
FHC, mesmo ainda sendo um dos líderes do partido intelectual da esquerda, pelo menos da universitária paulista, nos anos 70 e 80 transitava para uma aceitação da economia de mercado e desconfiava ainda mais da capacidade de classes, trabalhadores e sindicatos de conduzirem um processo unívoco de mudança social.
Para o sociólogo Francisco de Oliveira, professor titular da USP, ex-amigo e interlocutor de FHC no Cebrap, as mudanças no político são reflexo, embora não imediato, das mudanças intelectuais do sociólogo da dependência.
"Há tempos ele dava sinais de que se afastava do marxismo. Mas isso não fazia dele um reacionário", diz Oliveira. Mas as ambições políticas, somadas à progressiva "guinada para a direita", foram "abrindo flancos" para um realismo político que enfim degeneraria na "política mais letal, anticidadã e antinacional que esse país já viu, tirana e marcada pelo preconceito de classe".
"Ainda nos anos 70 Fernando falava em socialismo, apesar de isso jamais ter sido um problema essencial de sua obra", afirma o filósofo José Arthur Giannotti, amigo íntimo, de juventude, e grande interlocutor intelectual de FHC.
"A ruptura aconteceu antes que ele assumisse a Presidência", afirma outro colega de USP, hoje na Unicamp, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues.
"Como muitos intelectuais brasileiros da elite e das classes médias, FHC sofreu a influência do marxismo. Possivelmente, o contato mais direto com a política brasileira lhe permitiu perceber que o campo da política tem suas regras. Quem quiser entrar nesse campo, tem que segui-las. Foi o que fez. Por isso, para muitos intelectuais, pareceu um traidor do seu passado, talvez porque esperassem que, na Presidência, FHC iria continuar a se comportar como o diretor do Cebrap da época da ditadura militar (Cebrap é o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, do qual FHC foi fundador e que reuniu alguns dos melhores intelectuais paulistas, expulsos da USP durante o regime militar)", diz Rodrigues.
As afirmações de Giannotti e de Rodrigues parecem fazer de FHC um renegado da esquerda, embora não oportunista, pois teria "trocado de lado" bem antes de governar. Mas não é esse o sentido da afirmação dos dois intelectuais. Eles jamais diriam que FHC foi autor de obra doutrinária, de manuais para a ação ou do decálogo socialista de Moisés, que teria abandonado quando se tornou político, suplente de senador e senador do MDB, a partir de 78.
De fato, a partir de 58 FHC fez parte de um grupo de estudos que se tornaria lendário, na Universidade de São Paulo, o do "Seminário do Capital", grupo que pretendia fazer uma leitura cerrada da obra maior de Karl Marx, diferente das que se faziam então, não só no Brasil, e diferente em especial daquela dos comunistas. O grupo teria grande influência nas ciências humanas da USP.
Na mesma época, o professor e pesquisador FHC trabalhava no projeto Economia e Sociedade do Brasil, liderado pelo seu mestre na USP, Florestan Fernandes.
O objetivo era estudar os problemas do desenvolvimento capitalista brasileiro, pesquisa que teve como resultado inicial de maior fôlego o livro "Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional", de 1962, base das idéias que levariam FHC às suas famosas formulações sobre a dependência.
Teria havido uma grande ruptura entre a forma de pensar e as preocupações centrais de FHC desde então? Os sociólogos Gabriel Cohn e José de Souza Martins, professores titulares da USP e ex-alunos de FHC, acreditam que não, cada um a sua maneira.
Em entrevista de 97 a Alfredo Bosi, na revista "Estudos Avançados", da USP, Martins avalia que o grupo de Florestan "procurava decifrar as possibilidades e limitações daquilo que já se afigurava como inserção dependente do Brasil no mundo capitalista".
"Com a passagem da teoria da dependência para a teoria da globalização não houve uma ida para a direita, porque aquela não era, necessariamente, uma perspectiva de esquerda, e nem a atual perspectiva é, necessariamente, uma perspectiva de direita. O que há é a tentativa de ajustar o desenvolvimento do país a possibilidades reguladas fora dele, no plano internacional, pelos grandes conglomerados econômicos, pelos governos estrangeiros dos países ricos", dizia Martins, comparando o trabalho de FHC nos anos 60 à sua interpretação, e hoje também prática, político-econômica.
Mas o que era essa teoria da globalização em germe, a teoria da dependência? O trabalho de maior impacto de FHC, e que de certo modo orientaria suas pesquisas e publicações posteriores, foi o que resultou na crítica de uma interpretação muito em voga, nos anos 50 e 60, da história e dos problemas políticos brasileiros.
Comunistas e alguns nacionalistas acreditavam ser necessário que a "burguesia nacional" (o empresariado, em especial o industrial) tomasse o poder a fim de conduzir o processo de desenvolvimento autônomo nacional, até então impedido pela aliança de setores atrasados da elite brasileira (o "latifúndio") com o "imperialismo" (o capital estrangeiro, os países capitalistas centrais).
Tal processo, a "revolução burguesa", seria fundamental para que o Brasil repetisse e alcançasse o desenvolvimento social dos países avançados e, posteriormente, com o progresso industrial e com a formação de um grande operariado, chegar ao socialismo.
Pesquisas de FHC, entre outros, mostraram que a história brasileira tinha suas singularidades e que essa teoria da história era uma simplificação ordinária. Para FHC, o empresariado nacional tornava-se sócio menor das multinacionais, os dois se associando mais tarde à empresa estatal para compor o tripé do desenvolvimento dependente-associado.
A "burguesia nacional" não seria a responsável pela autonomia econômica. O "imperialismo" não determinava diretamente o destino do país. O Brasil era subordinado, dependente, mas a história dessa subordinação só poderia ser compreendida ao se analisarem os conflitos políticos internos e sua relação com economia e política internacionais. Seu esboço de teoria da dependência já era uma teoria da inserção brasileira na economia global.
Nos estudos dessa época (1964), FHC, ainda um tanto preso à idéia da relação necessária entre desenvolvimento e autonomia nacional, chega a escrever, na conclusão de "Empresário Nacional e Desenvolvimento Industrial no Brasil", que a opção brasileira era "subcapitalismo ou socialismo".
A partir de 1967, após "Dependência e Desenvolvimento na América Latina", FHC observa que, mesmo subordinada, a economia brasileira se industrializava e crescia; que aquele modo de inserção dependente na economia global não significaria estagnação.
Para Gabriel Cohn, a pergunta de 1965 já era retórica. Se a "burguesia" não conduziria a autonomia nacional, tampouco pareciam fazê-lo as massas urbanas e grupos populares, pela via do socialismo.
"A questão não é tanto qual grupo social assumirá a tarefa de, investido de poder político, realizar essa modernização. Não importam tanto os agentes, mas o objetivo, porque este, uma vez alcançado, permitirá reordenar os agentes", escreveu Cohn.
Para Cohn, "mais do que o desenvolvimento (econômico)", esse objetivo é, para FHC, a "...modernização, política sobretudo. É este o grande tema que aqui se introduz e que nunca mais abandonará as preocupações, na sua prática acadêmica e política".



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