São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ELIO GASPARI
O patrão do piloto sumiu

É possível que o Ministério da Aeronáutica venha a abandonar o hábito absurdo de obrigar as empresas privadas a ceder seus aviões (com passageiros a bordo) para que pilotos militares mantenham em dia a contabilidade de horas de vôo exigidas pela lei.
No último dia 9, um Fokker-100 da TAM decolou de São Paulo para Vitória. O céu estava limpo, e o piloto pediu autorização à torre para fazer um pouso visual. Correu tudo bem, salvo o fato do avião ter descido em Guarapari. Quando se anunciou que haveria nova
decolagem, boa parte dos passageiros preferiu escafeder-se por terra, numa viagem de 40 minutos.
O pouso do Fokker foi pilotado pelo major Odin Grothe, da FAB. Fazia isso dentro da lei, pois a Aeronáutica tem o direito de colocar oficiais em vôos comerciais, com a finalidade de checar a competência das tripulações. Como faltam aviões à FAB, esses oficiais acabam pilotando rotas comerciais, para cumprir as quotas de horas de vôo que validam suas carteiras de habilitação. Assim, o que é uma verificação da competência das tripulações da aviação privada, transforma-se num sistema complementar de exercício da aeronáutica militar.
Em geral, esses pousos e decolagens feitos por oficiais da FAB a bordo de aviões de passageiros não causam transtornos. Mas os que já causaram são suficientes para se concluir que se trata de um mau hábito.
Em abril de 1982, um jato da Transbrasil bateu num morro quando pousava em Florianópolis. Tinha como piloto um tenente-coronel. Morreram 80 pessoas.
Em 1991, no Recife, caiu um Bandeirante da Nordeste, pilotado por um major. Morreram todos os tripulantes e passageiros.
Em 1992, um Citation pilotado por um major recebeu ordens da torre para arremeter durante um pouso, não a cumpriu e atravessou a pista, enfiando-se numa vala.
O mau hábito já esteve suspenso, mas foi reinstalado. Ele causa enorme desconforto às companhias aéreas, que sofrem em silêncio porque morrem de medo do Departamento de Aviação Civil. Ele lhes controla a vida e as rotas.
A maluquice do procedimento está no fato de sonegar aos passageiros o nome do patrão do piloto do avião em que viajam. O sujeito compra um bilhete da Varig, supondo que vai embarcar num avião pilotado por um comandante da Varig, não por um coronel da FAB. Pode-se argumentar que a competência dos coronéis é equivalente à dos comandantes. Pode até ser superior, mas isso não tem a menor importância. A companhia aérea não pode terceirizar suas cabines, assim como a FAB não pode estatizar pousos e decolagens.
Se o Ministério da Aeronáutica não quiser mudar a norma, tudo bem. Poderia, contudo, fazer o favor de informar aos passageiros a troca de comandante. Quando eles estiverem na sala de espera, a moça avisa: "De acordo com as normas do DAC, o vôo 364 será pilotado pelo major Romanoff, da Força Aérea Brasileira". Embarca quem quiser.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota. Está desempregado (porque é vagabundo) e resolveu mudar de vida quando soube que FFHH lançou o Pró-Grécia. Quer se empregar como copeiro na casa do professor Edward Amadeo, atual ministro do Trabalho. Acredita que ganhará o suficiente para passar as férias em Mykonos.
O idiota está indignado. Soube que o governo não quer pagar ao doutor Joel Rennó o adicional de periculosidade que a Petrobrás paga aos mergulhadores das plataformas submarinas. Coisa de R$ 700 por mês.
Só um burocrata insensível não sabe que é muito mais perigoso circular por três minutos no gabinete da presidência da Petrobrás, onde Rennó trabalha, do que passar três meses no fundo do mar.
Eremildo acredita que FFHH deveria deixar a critério do próprio doutor Rennó a estimativa da periculosidade de sua presidência.

CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS

Madame Natasha tem horror a música. Ela dá cursos de francês para as empregadas domésticas do tucanato que passam as férias em Paris e socorre os desafortunados da língua portuguesa. A senhora concedeu mais uma de suas bolsas de estudo para o professor Délcio Barros Silva, do Departamento de Línguas Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria, pela seguinte parolagem:
"O texto, segundo uma nova abordagem vinculada às práticas sociais, deve ser considerado como recurso à construção do sentido socio-interacionalmente -como diz Moita Lopes- por intersubjetividades, por todos os participantes do discurso. Evidentemente, como princípio construtivista, essa abordagem do ensino da leitura deve apoiar-se no pressuposto de que o determinante na aprendizagem é o "já existente', ou seja, o conhecimento prévio do aluno".
Madame Natasha acredita que o professor quis dizer nada, ou o seguinte: "Lendo, o aluno aprende coisas que não sabia".

Era brincadeira
Foi noticiado aqui, na semana passada, que durante uma reunião com o professor Aloisio Teixeira, candidato a reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o professor Luiz Pinguelli Rosa "insinuou um veto" à hipotética nomeação de um colega (Edson Machado) para o cargo de sub-reitor do pessoal.
Pinguelli apresenta o seguinte esclarecimento: "Tentando fazer o papel de moderador na reunião com Aloisio Teixeira e outros professores, quando o clima se tornou ameno, fiz uma brincadeira, dizendo que conversas como aquela poderiam lhe ser úteis para se livrar de abacaxis, como a nomeação do professor Edson Machado para sub-reitor.

Para a crônica da trapalhada da UFRJ:
Nessa mesma reunião, na qual o professor Aloisio Texeira ouviu as restrições que lhe eram feitas por três diretores de institutos da universidade, havia outras pessoas presentes.
Uma delas era o professor Aníbal Gil Pontes, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas. Sua presença adquiriu relevo porque a reunião já tinha virado bate-papo quando pediu a palavra para dizer que o encontro resultara em fracasso. Fez isso num tom severo e didático.

A inaceitável negligência do pobre

Em março de 1995, o Banco Central desvalorizou o real em 12%. Fez tamanha confusão que foi obrigado a queimar US$ 7 bilhões num só dia. Surgiram acusações segundo as quais alguns afortunados souberam da desvalorização com antecedência. Quando isso acontece, o magano bem informado ganha comprando o dólar barato, para depois vendê-lo caro. No meio da crise, o senador José Eduardo Dutra divulgou uma listagem mostrando que alguns bancos fizeram compras maciças de dólares antes da desvalorização. Pelo menos dois, o BBA e o ING, compraram bastante antes da desvalorização e venderam depois. (Por uma questão de justiça, deve-se lembrar que o dono do BBA, Fernão Bracher, dispôs-se a abrir mão de qualquer proteção do sigilo bancário para que estudassem sua contabilidade.) Em vez de mandar investigar se houve vazamento, FFHH mandou descobrir quem vazou a posição dos bancos para o senador.
Sete meses depois, uma comissão de inquérito apontou para o funcionário Jorge Nelson Ribeiro. Ele tinha 40 anos, 18 de BC e ficha incólume. Ficou provado que recebera as posições de 27 bancos nos dias anteriores e posteriores à desvalorização. Ficou entendido que não se conseguiu prova de que ele vazara informações. Segundo sua versão, pedira as listas e as deixara ir ao lixo. Resolveram acusá-lo de negligência.
No dia 24 de outubro, o diretor administrativo do BC, Carlos Eduardo de Andrade, pegou pesado. Recomendou ao doutor Gustavo Loyola, seu presidente, que rebaixasse o funcionário, cassando-lhe a função gratificada. O fato de ele ter ficha limpa foi considerado agravante. Loyola despachou: "De acordo". Agora convém interromper a história desse vazamento para se cuidar de outro.
Em agosto, enquanto se investigava a conduta de Ribeiro, funcionários do BC acharam uma pasta rosa numa sala contígua ao gabinete do ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá, do falecido Econômico. Continha a numerologia de suas doações a políticos. No início de outubro, Loyola determinou que levassem os papéis a Brasília, "porque estariam mais seguros". O cartapácio chegou no dia 16 e foi para o cofre do diretor de Fiscalização, Cláudio Mauch.
Na primeira semana de novembro, começaram a circular em Brasília rumores de que existia uma pasta cheia de grande números e grandes nomes. A pasta explodiu em dezembro, derramando o seu conteúdo sobre o governo. Abriu-se uma sindicância para identificar o responsável por esse outro vazamento. Deu em rigorosamente nada. (O presidente da comissão de sindicância não perguntou ao doutor Loyola se ele sabia quem tinha patrocinado o vazamento.)
No caso da pasta rosa, conseguiu-se engavetar um elefante. No de Jorge Nelson Ribeiro, lincharam um pato.
Puniram-no com a perda da comissão e uma transferência para a setor de atendimento ao público. Estranho mundo, o dos diretores do BC: contato com o público é punição. Ribeiro foi à Justiça. Teve como defensores os advogados Marcio Thomaz Bastos e José Diogo Bastos Neto.
Agora o jogo virou e o BC passou de caçador a caça. No dia 20 de maio passado, o juiz Francisco Neves da Cunha, da 16ª Vara Federal, deu razão ao funcionário. Entendeu que ele foi punido com base numa construção legal que pode ter existido na cabeça dos diretores do BC, mas não existe nas leis do país.
Ribeiro deve receber de volta a sua função comissionada, bem como o dinheiro que perdeu com a punição, mas isso não é para já. O Banco Central vai recorrer da sentença, brigando até a última instância.
Vai combater para fubecar Jorge Nelson com uma valentia que não teve para descobrir quem ganhou dinheiro na desvalorização de 1995, muito menos para saber quem disparou o vazamento do conteúdo da pasta rosa.
Depois de 20 anos de serviços prestados ao Banco Central -a maioria dos quais na seção de câmbio-, o funcionário punido tem o seguinte patrimônio: um apartamento de dois quartos e sala em São Paulo e um Fiat.
Negligência para ninguém botar defeito.

ENTREVISTA

João Luís Fragoso
(40 anos, historiador, autor de "Homens de Grossa Aventura - Acumulação e Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830")

O sr. sustenta que, no final do século 18, havia no Rio uma classe de comerciantes rica, poderosa e relativamente autônoma. A tradição historiográfica brasileira, a partir das obras de Caio Prado Jr. e Celso Furtado, está na direção oposta. Supunha-se que o Rio e o próprio Brasil eram um imenso canavial, cumprindo decisões tomadas em Lisboa. Que equívocos resultaram desse desentendimento?
Viu-se o Brasil como um quintal. Não se percebeu a importância do movimento do seu principal porto e a existência de uma classe que controlava o crédito, o abastecimento e o tráfico de escravos. Não se opunham a Lisboa, mas tomavam suas próprias decisões. Foram esses homens que financiaram o projeto da Independência. Tinham tanto dinheiro que um deles, Brás Carneiro Leão, deixou uma fortuna superior ao montante do capital necessário para a fundação do Banco do Brasil. Ele e outro magnata, Amaro Velho da Silva, morto em 1810, deixaram patrimônios avaliados em cerca de meio milhão de libras. Isso era fortuna em qualquer lugar do mundo. Um dos maiores banqueiros de Londres, sir Richard Oswald, deixou quantia semelhante quando morreu, em 1784. Era uma gente rude, sem cultura, mas poderosa.

O que é que isso muda na compreensão do que veio a ser o Brasil?
Ajuda a procurar aqui, na terra em que vivemos, a causa dos nossos problemas. Aconteceu uma coisa interessante. Uma fantástica historiografia, supostamente de esquerda, criou uma visão segundo a qual os nossos problemas derivam de decisões perversas tomadas primeiro em Lisboa, depois em Londres e, finalmente, em Washington. Se você acredita nisso, o país fica sem história e a sua elite sai ilesa. Nós fomos como fomos e somos como somos porque a nossa elite desenvolveu um projeto arcaico. E não era arcaico porque as globalizações do passado exigiram que fosse. Era arcaico porque queria sê-lo. No frigir dos ovos, livramos a cara da elite. Ontem, como hoje, a coisa funciona assim: já que somos dependentes, somos coadjuvantes e, como somos coadjuvantes, não somos responsáveis.

Onde o sr. localiza o compromisso dos magnatas do século 18 com um projeto arcaico. Por que eles foram para trás, enquanto os comerciantes de Boston, uma praça de importância semelhante à do Rio, foram para a frente?
Por diversas razões, os comerciantes de Boston continuaram comerciantes. Os do Rio, tendo acumulado fortuna, moveram-se na direção da propriedade da terra, que dava prestígio. O tráfico de escravos rendia 15% por cento ao ano, enquanto uma fazenda não passava de 10%. Trocando a atividade comercial pela de senhores rurais, eles pararam de trabalhar. Acumularam prestígio e passaram a ganhar dinheiro com o trabalho do escravos. O mais surpreendente é que quando eles deram esse passo, viabilizaram uma espécie de "milagre econômico" da escravidão. Foi o dinheiro deles que permitiu o progresso dos engenhos de açúcar no norte flumimense e, quase de uma hora para a outra, a explosão do café no Vale do Paraíba. Não se esqueça de duas coisas, os magnatas do século 18 nunca tiveram projeto industrial. A escravidão se sustentava num consenso social. Eles controlavam a economia, faziam parte da elite, por que haveriam de querer mudar uma sociedade que os mantinha no topo? Eles sempre viveram muito bem, obrigado.




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