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ENTREVISTA DA 2ª
Para José Luís Fiori, dificuldades para definir presidenciável revelam fim do projeto tucano
PSDB se esfacelou, diz cientista político
JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL
O cientista político José Luís
Fiori vê no final da era Fernando
Henrique Cardoso sintomas de
uma "desagregação oligárquica"
semelhante à do final dos anos 80,
quando Fernando Collor de Mello
foi eleito. Um desses sintomas seria o fim do PSDB, partido que liderou, na figura de FHC, uma década de hegemonia política e modernização conservadora no país.
"Covas morreu, Cardoso está de
saída e a política liberal chegou a
um beco sem saída. Logo, acabou
o PSDB", diz Fiori, professor titular da Universidade Federal do
Rio. A idéia de que a sucessão presidencial irá se pautar pela retomada da discussão desenvolvimentista, que viria ocupar o lugar
da ortodoxia liberal linha dura de
Pedro Malan, não passa, segundo
Fiori, de mais um sintoma de "reformismo vocabular" do bloco
governista diante da sua "impotência real". "Lembra a masturbação sociológica do falecido Sérgio
Motta", diz o intelectual, acrescentando que Malan segue "na
cabeça da única área que manda
efetivamente neste governo".
Na quarta-feira, Fiori lança o livro "Polarização Mundial e Crescimento", organizado por ele e
pelo economista Carlos Medeiros.
É o terceiro volume de uma trilogia iniciada com "Poder e Dinheiro, de 1997, e "Estados e Moedas",
de 1999, todos da coleção Zero à
Esquerda, da editora Vozes. Leia a
seguir trechos da entrevista:
Folha - Por que o ministro Malan,
depois de tantos serviços prestados ao governo, foi de repente varrido do mapa sucessório pelos próprios governistas, que criticam a
política econômica do governo?
José Luís Fiori - Discordo da premissa. O sr. Malan não foi varrido
do mapa e segue na cabeça da única área que manda efetivamente
neste governo, além de ter se
transformado na figura símbolo
da única política deste governo. O
resto, tirando o ministro da Saúde
[José Serra], são meros figurantes
de segunda categoria.
Essa última reforma ministerial,
por exemplo, chega a ser risível, se
não fosse antes grotesca. Entram e
saem figuras meio paspalhas que
não mandam nada e que parecem
que só estão ali para tirar foto ao
lado do presidente com os parentes, os vizinhos e o cachorro.
Na definição dos novos cortes
orçamentários, na luta pelo desmonte da legislação trabalhista,
pela independência do Banco
Central, pela reforma da Previdência, pela internacionalização
dos meios de comunicação, no
ataque ao Estado de Direito e contra os servidores públicos, o que
se vê é um governo em plena ação,
tentando levar às últimas consequências sua opção ultraliberal
representada simbolicamente pelo ministro da Fazenda.
Folha - A base governista está
centrada na discussão de um fenômeno e de uma briga: o primeiro
seria o sucesso de marketing da governadora Roseana Sarney; a segunda, a dificuldade de viabilização tanto da candidatura Serra
quanto da de Tasso. Como fica?
Fiori - O problema do situacionismo não é de nomes, de sexo ou
de marketing. É um problema
que tem a ver, em primeiro lugar,
com a avaliação negativa que a
população faz deste governo. Em
segundo lugar, com o esgotamento do projeto e da capacidade de
articulação de interesses deste governo e de sua coalizão de poder.
Em terceiro lugar, com a sua mais
completa falta de alternativas para sair da rota de mediocridade
que foi o governo FHC.
É lógico que, no epicentro da dificuldade imediata, está o esfacelamento do PSDB, que vai voltando às suas origens e se transformando num novo PMDB. Na verdade, eles foram um episódio na
vida do PMDB, uma costela que
se autonomizou viabilizada por
uma conjuntura internacional específica e que já acabou.
Nasceu internamente graças à
força aglutinadora de Mário Covas e ao aval dado ao presidente
FHC pela comunidade financeira
internacional e pelo establishment democrata americano. Covas morreu, FHC está de partida e
a política liberal chegou a um beco sem saída. Logo, acabou o
PSDB, transformado apenas em
mais um grupo de poder no meio
de uma desagregação oligárquica
que lembra o final dos anos 80.
Folha - Já se disse recentemente
que a sucessão estaria convergindo
para uma espécie de "centro social", no qual o desenvolvimentismo ocuparia lugar de destaque.
Tanto o governo como o PT não caminham para esse ponto de fuga?
Fiori - Não tenho a menor idéia
do que signifique "centro social".
Acho que essa foi uma das marcas
típicas da fronda tucana: suas
principais figuras, sobretudo a
sua ala de professores, compartilharam com o presidente uma
certa verborragia e paixão pelos
neologismos, uma crença cega na
força das novas palavras: neo-social, neobobo, Petrobrax, revolução silenciosa e tantas outras que
já foram ou passarão ao lixo das
idéias. É uma espécie de impotência real substituída por um reformismo vocabular que traz à lembrança o falecido Sérgio Motta e
sua famosa "masturbação sociológica". Não creio que essa suposta convergência neodesenvolvimentista vá além do clichê: defender o crescimento mais ou menos
como o presidente defende que a
humanidade seja fraterna.
Folha - Qual a alternativa?
Fiori - Uma mudança de rumo
no país terá de passar pela redefinição dos seus objetivos estratégicos e das bases sociais de sustentação de um novo projeto de poder. Terá de passar por uma ruptura radical com as tendências
históricas do desenvolvimento
brasileiro e, em particular, com a
estratégia liberal da década de 90.
Caso contrário viveremos mais
uma década perdida.
Mas atenção: qualquer governo
que se proponha a mudar o rumo
do Brasil, a partir de 2003, e tenha
como prioridade um crescimento
sustentado e uma ativa política de
distribuição de renda, deve partir
de um diagnóstico realista da situação do país, depois de dez anos
de políticas liberais, sobretudo a
respeito do grau de desnacionalização da economia, de desestruturação do Estado e de anomia social. Seu primeiro passo terá de
ser a remontagem da capacidade
estratégica do Estado, para prever, planejar e investir, resgatando a autonomia interna e a soberania externa do próprio Estado.
Nenhuma dessas decisões e políticas se reduz a um problema
técnico, nem poderá ser feita apenas por meio de algumas medidas
provisórias. Pelo contrário, trata-se de um novo projeto de país que
está na contramão do "mainstream" e enfrentará a resistência
de interesses poderosos, nacionais e internacionais. Um projeto
que só será possível levar à frente
com um governo que nasça de
uma coalizão de forças que rompa com o pacto conservador que
domina este país há décadas e que
consiga promover uma revalorização positiva e maciça da idéia
de nação e de solidariedade federativa. Apesar disso, nunca estive
tão otimista, porque a história nos
ensina que é só nas horas de grandes mudanças mundiais que se
abrem novas janelas de oportunidades para a periferia do sistema.
E é isso exatamente que está começando a se colocar como possibilidade para o Brasil.
Folha - Os esforços de FHC para
manter o Brasil e a América Latina
na vitrine mundial são evidentes.
Qual nosso lugar real nesse mundo
que se redesenha?
Fiori - Basta olhar para alguns
acontecimentos recentes para ter
uma exata dimensão do nosso lugar na agenda internacional da
administração Bush. Na semana
passada, o Itamaraty teve de batalhar para conseguir um encontro
rápido e meramente fotográfico
de FHC com Bush. Na saída, não
foi concedido ao presidente brasileiro nem mesmo o direito à famosa declaração conjunta, que
antes dos atentados era feita no
jardim da Casa Branca.
Muito mais sério do que isso é o
total descaso com que o governo
americano acompanha a lenta
agonia argentina. Cavallo não foi
nem recebido quando foi apresentar seu enésimo plano de salvação, e a hipótese de dolarização
da economia argentina foi descartada sem maiores considerações
pelo desejo dos nossos vizinhos
de se transformarem em colônia.
Agora mesmo, veja a reação do
Departamento de Estado frente
ao discurso de FHC na França.
Um funcionário subalterno disse,
curto e grosso, que os EUA entendiam a vocação acadêmica do
nosso presidente professor, mas
que o importante é que em casa
ele se comportava bem e fazia sua
lição direitinho. E ponto.
Mas isso não é novidade. O Brasil e a América Latina nunca tiveram muita importância no contexto geopolítico e econômico
mundial. Só foram incluídos na
Guerra Fria por conta da Revolução Cubana, e a resposta americana foi seu apoio às ditaduras militares que nos governaram durante 20 anos. Só na década de 90, a
readmissão da América Latina no
circuito financeiro internacional,
depois da renegociação da nossa
dívida externa somada à adesão
incondicional de todos os governos latino-americanos à utopia
globalitária da era Clinton, criou
uma impressão de que passaríamos a ocupar um papel mais importante na agenda americana.
Com o fim da euforia e o fracasso
da década neoliberal na América
Latina, estamos voltando ao lugar
de sempre e em piores condições
para batalhar por nossos interesses, devido à fragilidade com que
saímos da festa "clintoniana".
Folha - O que o sr. diz dos discursos de FHC na França e na ONU?
Fiori - Há algumas propostas
corretas, mas defendidas desde
uma posição de extraordinária
fragilidade, criada pelas políticas
do seu próprio governo, que fez
uma aposta errada na utopia globalitária. Muitos já diagnosticaram essa dificuldade do presidente que, quando sai do país, quer
falar grosso, mas tem o rabo preso. Olhemos para a novidade da
última viagem: a idéia ou a proposta-síntese dos seus discursos, a
favor de uma globalização solidária. É uma tese com a qual ninguém pode estar em desacordo.
Seria como estar contra uma
humanidade fraterna. Mas não
são princípios eficientes capazes
de orientar uma política externa,
porque não se sustentam nas regras de funcionamento do mundo real, capitalista e interestatal.
São propostas de natureza tipicamente religiosa, um discurso que
fica bem para o papa, porque ele
não governa nenhum país.
Por isso mesmo, é um discurso
que não define aliados e competidores e que não estabelece um objetivo de curto e médio prazo que
não seja o eterno choro contra o
protecionismo dos ricos que ele já
deveria ter aprendido a praticar.
Quando volta de suas novas viagens missionárias, FHC segue na
posição de um mero controlador
de vôo, na expressão utilizada por
Leslie Thurow em entrevista recente para a própria Folha. Como
se estivesse governando um país
desenvolvido e com políticas econômicas típicas de uma grande
potência, em vez de estar preparando seu país para viver no mundo em turbulência que está se
anunciando e onde o Brasil fosse
capaz de defender seus interesses
nacionais. Mas isso é o oposto do
que ele fez nestes oito anos.
Como resultado, temos o que
está aí: um país sem Estado, sem
infra-estrutura e com uma economia absolutamente dependente
do financiamento externo. Seu
projeto até poderia ter dado certo
se de fato a humanidade fosse fraterna e a globalização fosse solidária. Mas os brasileiros não têm
tempo nem condições sociais para ficar esperando pela realização
da utopia religiosa e transcendental do professor Cardoso.
Folha - No livro que está sendo
lançado, mas também nos dois da
trilogia que o antecedem, o sr. analisa a globalização à luz da hegemonia norte-americana. Os ataques de 11 de setembro põem essa
hegemonia em crise? O império
chegou ao seu limite?
Fiori - Não creio. Até a década de
80, a preocupação com a crise da
hegemonia americana foi uma
verdadeira obsessão dos anglo-saxões. Seguia muito presente o
trauma dos anos 70, com a crise
do dólar, a derrota no Vietnã e a
rebeldia social da contracultura, e
todos temiam a repetição da história que levou, nos anos 30, ao
fascismo e à Segunda Guerra.
Durante a década de 90, esse
medo foi substituído, nos EUA,
por um compreensível estado de
euforia e autocomemoração. Haviam ganho a Guerra Fria e a
Guerra do Iraque, viveram uma
década de crescimento econômico contínuo e de rendimentos financeiros gigantescos. E ganharam a batalha ideológica mundial,
transformando a idéia da globalização num fenômeno automático
e benéfico para toda a humanidade, mesmo aos olhos mais miseráveis do planeta.
No ano de 2001, de fato, tudo
mudou de novo no arraial americano: crise político-institucional
na escolha ou imposição do nome
de George W. Bush para o lugar
de presidente dos EUA; desaceleração da economia a caminho da
recessão; explosão da "bolha" financeira e queda da confiança e
do consumo da população.
Fim da euforia globalitária e aumento do desencanto e da contestação em vários pontos "emergentes" do império, até que chegaram os atentados de 11 de setembro e começou o bombardeio
do Afeganistão, uma espécie de
buraco negro no epicentro do espaço eurasiano. Um conflito que
o próprio governo americano
prevê que tomará décadas.
Mas, apesar disso tudo, não
creio, como alguns analistas pensam, que estejamos vivendo a crise final ou de substituição da hegemonia americana. Pelo contrário, estamos vivendo um momento de afirmação imperial do poder
americano, com todas as suas dificuldades, ameaças e limitações.
Folha - Mas, se não é uma crise final, o 11 de setembro muda a geopolítica mundial.
Fiori - Com toda certeza. E aqui o
importante é lembrar que a Guerra Fria acabou em 1991, sem uma
"guerra mundial" entre as grandes potências. Como se tivessem
mudado as regras do passado e
agora o mundo conseguisse se
transformar de forma pacífica,
quase suave. Falou-se inclusive
em "revoluções de veludo", "fim
da história" etc. Hoje, fica difícil
imaginar que um episódio tão rápido e concentrado, como foram
os atentados do dia 11 de setembro, pudesse ter um efeito tão gigantesco e global, se não fosse sobre este pano de fundo. Na verdade, o fim da Guerra Fria foi sucedido por uma tamanha desigualdade de poder em favor dos EUA
que não deu lugar a nenhum tipo
de acordo entre as potências centrais, como ocorreu em Versailles,
em 1918, ou mesmo depois da Segunda Guerra Mundial. E agora,
por vias tortas, uma das coisas importantes que está acontecendo é
isso. À sombra de um amplo e óbvio consenso contra o terrorismo,
as grandes potências, de segunda
e terceira linhas, estão se movendo e buscando seus novos lugares
no tabuleiro mundial. Além disso,
o que é fundamental, a grande
"massa eurasiana", está voltando
ao epicentro do conflito e das disputas geopolíticas.
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