São Paulo, segunda-feira, 19 de novembro de 2001

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ENTREVISTA DA 2ª

Para José Luís Fiori, dificuldades para definir presidenciável revelam fim do projeto tucano

PSDB se esfacelou, diz cientista político

JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL

O cientista político José Luís Fiori vê no final da era Fernando Henrique Cardoso sintomas de uma "desagregação oligárquica" semelhante à do final dos anos 80, quando Fernando Collor de Mello foi eleito. Um desses sintomas seria o fim do PSDB, partido que liderou, na figura de FHC, uma década de hegemonia política e modernização conservadora no país.
"Covas morreu, Cardoso está de saída e a política liberal chegou a um beco sem saída. Logo, acabou o PSDB", diz Fiori, professor titular da Universidade Federal do Rio. A idéia de que a sucessão presidencial irá se pautar pela retomada da discussão desenvolvimentista, que viria ocupar o lugar da ortodoxia liberal linha dura de Pedro Malan, não passa, segundo Fiori, de mais um sintoma de "reformismo vocabular" do bloco governista diante da sua "impotência real". "Lembra a masturbação sociológica do falecido Sérgio Motta", diz o intelectual, acrescentando que Malan segue "na cabeça da única área que manda efetivamente neste governo".
Na quarta-feira, Fiori lança o livro "Polarização Mundial e Crescimento", organizado por ele e pelo economista Carlos Medeiros. É o terceiro volume de uma trilogia iniciada com "Poder e Dinheiro, de 1997, e "Estados e Moedas", de 1999, todos da coleção Zero à Esquerda, da editora Vozes. Leia a seguir trechos da entrevista:
 

Folha - Por que o ministro Malan, depois de tantos serviços prestados ao governo, foi de repente varrido do mapa sucessório pelos próprios governistas, que criticam a política econômica do governo?
José Luís Fiori -
Discordo da premissa. O sr. Malan não foi varrido do mapa e segue na cabeça da única área que manda efetivamente neste governo, além de ter se transformado na figura símbolo da única política deste governo. O resto, tirando o ministro da Saúde [José Serra], são meros figurantes de segunda categoria.
Essa última reforma ministerial, por exemplo, chega a ser risível, se não fosse antes grotesca. Entram e saem figuras meio paspalhas que não mandam nada e que parecem que só estão ali para tirar foto ao lado do presidente com os parentes, os vizinhos e o cachorro.
Na definição dos novos cortes orçamentários, na luta pelo desmonte da legislação trabalhista, pela independência do Banco Central, pela reforma da Previdência, pela internacionalização dos meios de comunicação, no ataque ao Estado de Direito e contra os servidores públicos, o que se vê é um governo em plena ação, tentando levar às últimas consequências sua opção ultraliberal representada simbolicamente pelo ministro da Fazenda.

Folha - A base governista está centrada na discussão de um fenômeno e de uma briga: o primeiro seria o sucesso de marketing da governadora Roseana Sarney; a segunda, a dificuldade de viabilização tanto da candidatura Serra quanto da de Tasso. Como fica?
Fiori -
O problema do situacionismo não é de nomes, de sexo ou de marketing. É um problema que tem a ver, em primeiro lugar, com a avaliação negativa que a população faz deste governo. Em segundo lugar, com o esgotamento do projeto e da capacidade de articulação de interesses deste governo e de sua coalizão de poder. Em terceiro lugar, com a sua mais completa falta de alternativas para sair da rota de mediocridade que foi o governo FHC.
É lógico que, no epicentro da dificuldade imediata, está o esfacelamento do PSDB, que vai voltando às suas origens e se transformando num novo PMDB. Na verdade, eles foram um episódio na vida do PMDB, uma costela que se autonomizou viabilizada por uma conjuntura internacional específica e que já acabou.
Nasceu internamente graças à força aglutinadora de Mário Covas e ao aval dado ao presidente FHC pela comunidade financeira internacional e pelo establishment democrata americano. Covas morreu, FHC está de partida e a política liberal chegou a um beco sem saída. Logo, acabou o PSDB, transformado apenas em mais um grupo de poder no meio de uma desagregação oligárquica que lembra o final dos anos 80.

Folha - Já se disse recentemente que a sucessão estaria convergindo para uma espécie de "centro social", no qual o desenvolvimentismo ocuparia lugar de destaque. Tanto o governo como o PT não caminham para esse ponto de fuga?
Fiori -
Não tenho a menor idéia do que signifique "centro social". Acho que essa foi uma das marcas típicas da fronda tucana: suas principais figuras, sobretudo a sua ala de professores, compartilharam com o presidente uma certa verborragia e paixão pelos neologismos, uma crença cega na força das novas palavras: neo-social, neobobo, Petrobrax, revolução silenciosa e tantas outras que já foram ou passarão ao lixo das idéias. É uma espécie de impotência real substituída por um reformismo vocabular que traz à lembrança o falecido Sérgio Motta e sua famosa "masturbação sociológica". Não creio que essa suposta convergência neodesenvolvimentista vá além do clichê: defender o crescimento mais ou menos como o presidente defende que a humanidade seja fraterna.

Folha - Qual a alternativa?
Fiori -
Uma mudança de rumo no país terá de passar pela redefinição dos seus objetivos estratégicos e das bases sociais de sustentação de um novo projeto de poder. Terá de passar por uma ruptura radical com as tendências históricas do desenvolvimento brasileiro e, em particular, com a estratégia liberal da década de 90. Caso contrário viveremos mais uma década perdida.
Mas atenção: qualquer governo que se proponha a mudar o rumo do Brasil, a partir de 2003, e tenha como prioridade um crescimento sustentado e uma ativa política de distribuição de renda, deve partir de um diagnóstico realista da situação do país, depois de dez anos de políticas liberais, sobretudo a respeito do grau de desnacionalização da economia, de desestruturação do Estado e de anomia social. Seu primeiro passo terá de ser a remontagem da capacidade estratégica do Estado, para prever, planejar e investir, resgatando a autonomia interna e a soberania externa do próprio Estado.
Nenhuma dessas decisões e políticas se reduz a um problema técnico, nem poderá ser feita apenas por meio de algumas medidas provisórias. Pelo contrário, trata-se de um novo projeto de país que está na contramão do "mainstream" e enfrentará a resistência de interesses poderosos, nacionais e internacionais. Um projeto que só será possível levar à frente com um governo que nasça de uma coalizão de forças que rompa com o pacto conservador que domina este país há décadas e que consiga promover uma revalorização positiva e maciça da idéia de nação e de solidariedade federativa. Apesar disso, nunca estive tão otimista, porque a história nos ensina que é só nas horas de grandes mudanças mundiais que se abrem novas janelas de oportunidades para a periferia do sistema. E é isso exatamente que está começando a se colocar como possibilidade para o Brasil.

Folha - Os esforços de FHC para manter o Brasil e a América Latina na vitrine mundial são evidentes. Qual nosso lugar real nesse mundo que se redesenha?
Fiori -
Basta olhar para alguns acontecimentos recentes para ter uma exata dimensão do nosso lugar na agenda internacional da administração Bush. Na semana passada, o Itamaraty teve de batalhar para conseguir um encontro rápido e meramente fotográfico de FHC com Bush. Na saída, não foi concedido ao presidente brasileiro nem mesmo o direito à famosa declaração conjunta, que antes dos atentados era feita no jardim da Casa Branca.
Muito mais sério do que isso é o total descaso com que o governo americano acompanha a lenta agonia argentina. Cavallo não foi nem recebido quando foi apresentar seu enésimo plano de salvação, e a hipótese de dolarização da economia argentina foi descartada sem maiores considerações pelo desejo dos nossos vizinhos de se transformarem em colônia.
Agora mesmo, veja a reação do Departamento de Estado frente ao discurso de FHC na França. Um funcionário subalterno disse, curto e grosso, que os EUA entendiam a vocação acadêmica do nosso presidente professor, mas que o importante é que em casa ele se comportava bem e fazia sua lição direitinho. E ponto.
Mas isso não é novidade. O Brasil e a América Latina nunca tiveram muita importância no contexto geopolítico e econômico mundial. Só foram incluídos na Guerra Fria por conta da Revolução Cubana, e a resposta americana foi seu apoio às ditaduras militares que nos governaram durante 20 anos. Só na década de 90, a readmissão da América Latina no circuito financeiro internacional, depois da renegociação da nossa dívida externa somada à adesão incondicional de todos os governos latino-americanos à utopia globalitária da era Clinton, criou uma impressão de que passaríamos a ocupar um papel mais importante na agenda americana. Com o fim da euforia e o fracasso da década neoliberal na América Latina, estamos voltando ao lugar de sempre e em piores condições para batalhar por nossos interesses, devido à fragilidade com que saímos da festa "clintoniana".

Folha - O que o sr. diz dos discursos de FHC na França e na ONU?
Fiori -
Há algumas propostas corretas, mas defendidas desde uma posição de extraordinária fragilidade, criada pelas políticas do seu próprio governo, que fez uma aposta errada na utopia globalitária. Muitos já diagnosticaram essa dificuldade do presidente que, quando sai do país, quer falar grosso, mas tem o rabo preso. Olhemos para a novidade da última viagem: a idéia ou a proposta-síntese dos seus discursos, a favor de uma globalização solidária. É uma tese com a qual ninguém pode estar em desacordo.
Seria como estar contra uma humanidade fraterna. Mas não são princípios eficientes capazes de orientar uma política externa, porque não se sustentam nas regras de funcionamento do mundo real, capitalista e interestatal. São propostas de natureza tipicamente religiosa, um discurso que fica bem para o papa, porque ele não governa nenhum país.
Por isso mesmo, é um discurso que não define aliados e competidores e que não estabelece um objetivo de curto e médio prazo que não seja o eterno choro contra o protecionismo dos ricos que ele já deveria ter aprendido a praticar. Quando volta de suas novas viagens missionárias, FHC segue na posição de um mero controlador de vôo, na expressão utilizada por Leslie Thurow em entrevista recente para a própria Folha. Como se estivesse governando um país desenvolvido e com políticas econômicas típicas de uma grande potência, em vez de estar preparando seu país para viver no mundo em turbulência que está se anunciando e onde o Brasil fosse capaz de defender seus interesses nacionais. Mas isso é o oposto do que ele fez nestes oito anos.
Como resultado, temos o que está aí: um país sem Estado, sem infra-estrutura e com uma economia absolutamente dependente do financiamento externo. Seu projeto até poderia ter dado certo se de fato a humanidade fosse fraterna e a globalização fosse solidária. Mas os brasileiros não têm tempo nem condições sociais para ficar esperando pela realização da utopia religiosa e transcendental do professor Cardoso.

Folha - No livro que está sendo lançado, mas também nos dois da trilogia que o antecedem, o sr. analisa a globalização à luz da hegemonia norte-americana. Os ataques de 11 de setembro põem essa hegemonia em crise? O império chegou ao seu limite?
Fiori -
Não creio. Até a década de 80, a preocupação com a crise da hegemonia americana foi uma verdadeira obsessão dos anglo-saxões. Seguia muito presente o trauma dos anos 70, com a crise do dólar, a derrota no Vietnã e a rebeldia social da contracultura, e todos temiam a repetição da história que levou, nos anos 30, ao fascismo e à Segunda Guerra.
Durante a década de 90, esse medo foi substituído, nos EUA, por um compreensível estado de euforia e autocomemoração. Haviam ganho a Guerra Fria e a Guerra do Iraque, viveram uma década de crescimento econômico contínuo e de rendimentos financeiros gigantescos. E ganharam a batalha ideológica mundial, transformando a idéia da globalização num fenômeno automático e benéfico para toda a humanidade, mesmo aos olhos mais miseráveis do planeta.
No ano de 2001, de fato, tudo mudou de novo no arraial americano: crise político-institucional na escolha ou imposição do nome de George W. Bush para o lugar de presidente dos EUA; desaceleração da economia a caminho da recessão; explosão da "bolha" financeira e queda da confiança e do consumo da população.
Fim da euforia globalitária e aumento do desencanto e da contestação em vários pontos "emergentes" do império, até que chegaram os atentados de 11 de setembro e começou o bombardeio do Afeganistão, uma espécie de buraco negro no epicentro do espaço eurasiano. Um conflito que o próprio governo americano prevê que tomará décadas.
Mas, apesar disso tudo, não creio, como alguns analistas pensam, que estejamos vivendo a crise final ou de substituição da hegemonia americana. Pelo contrário, estamos vivendo um momento de afirmação imperial do poder americano, com todas as suas dificuldades, ameaças e limitações.

Folha - Mas, se não é uma crise final, o 11 de setembro muda a geopolítica mundial.
Fiori -
Com toda certeza. E aqui o importante é lembrar que a Guerra Fria acabou em 1991, sem uma "guerra mundial" entre as grandes potências. Como se tivessem mudado as regras do passado e agora o mundo conseguisse se transformar de forma pacífica, quase suave. Falou-se inclusive em "revoluções de veludo", "fim da história" etc. Hoje, fica difícil imaginar que um episódio tão rápido e concentrado, como foram os atentados do dia 11 de setembro, pudesse ter um efeito tão gigantesco e global, se não fosse sobre este pano de fundo. Na verdade, o fim da Guerra Fria foi sucedido por uma tamanha desigualdade de poder em favor dos EUA que não deu lugar a nenhum tipo de acordo entre as potências centrais, como ocorreu em Versailles, em 1918, ou mesmo depois da Segunda Guerra Mundial. E agora, por vias tortas, uma das coisas importantes que está acontecendo é isso. À sombra de um amplo e óbvio consenso contra o terrorismo, as grandes potências, de segunda e terceira linhas, estão se movendo e buscando seus novos lugares no tabuleiro mundial. Além disso, o que é fundamental, a grande "massa eurasiana", está voltando ao epicentro do conflito e das disputas geopolíticas.



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