São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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ENTREVISTA
Presidente volta a defender parlamentarismo e diz que não se aproveitaria de uma mudança de regime
FHC quer deixar a política em 2003

ELIANE CANTANHÊDE
Diretora da Sucursal de Brasília

VALDO CRUZ
Diretor-executivo da Sucursal de Brasília

Quando terminar seu segundo mandato na Presidência da República, em 2003, Fernando Henrique Cardoso quer abandonar a vida política e voltar a atuar apenas como um intelectual.
"Pretendo estar com meus livros, escrevendo, em Ibiúna", disse ele em entrevista à Folha, durante duas horas, sexta-feira de manhã, na biblioteca do Palácio da Alvorada. Referia-se a seu sítio em Ibiúna, interior de São Paulo.
FHC se julga com uma vantagem sobre seus antecessores: "Eu tenho "background" acadêmico forte, outros não têm. Então, outros terão mais dificuldade para sair da vida política. No meu caso, se eu estiver vivo, quem sabe, preferirei estar cuidando da vida intelectual".
Ao defender a implantação do parlamentarismo, ressalvou que não pretende se aproveitar dele para uma terceira rodada na Presidência e condicionou a mudança de sistema de governo a um plebiscito.
Apesar da crise envolvendo o Ministério da Defesa, que culminou com a demissão do comandante Walter Bräuer (Aeronáutica) naquele mesmo dia, estava de bom humor.
Depois de interromper a entrevista pela única vez para atender um telefonema, ele comemorou com um largo sorriso: "O dólar caiu para R$ 1,8190". No final do dia, devia estar ainda mais aliviado, pois o dólar fechou cotado a R$ 1,809.
A seguir, os principais trechos da entrevista:

Folha - Existe uma crise na área militar, especificamente na Aeronáutica?
FHC -
Não existe nada disso.

Folha - A Aeronáutica resiste, por exemplo, à criação da Agência Nacional de Aviação Civil, a única agência que ainda não saiu. Vai sair?
FHC -
Vai sair, do jeito que eu faço as coisas, sem aprofundar crises.

Folha - Como o sr. viu as críticas do comandante Walter Bräuer ao ministro da Defesa, Elcio Alvares?
FHC -
Requisitei a cópia das fitas com a íntegra da entrevista do comandante. Preciso analisar o contexto todo. Não posso avaliar frases isoladas, fora de contexto (o presidente acabou, no final do dia, demitindo o militar).

Folha - Como foi 1999 para o sr., do ponto de vista pessoal, político e do presidente?
FHC -
Foi um ano difícil. No início, poderia ter voltado a inflação, uma explosão de preços, o empobrecimento das populações mais pobres, que era o que mais me preocupava. Mas os prognósticos negativos, que tinham até uma certa base, não se confirmaram. Com certeza, o final do ano foi muito melhor do que o previsto.

Folha - E do ponto de vista político?
FHC -
Vocês se lembram do início do ano. Parecia que o mundo estava vindo abaixo. Haveria crise com os governadores, o Congresso não iria votar o que o governo queria, o governo estava fraco...

Folha - Que o senador Antonio Carlos Magalhães iria se rebelar...
FHC -
Ele só, não. Todos eles iriam se rebelar. Só não sei contra o quê. Mas nós não cedemos no ajuste fiscal, todos os Estados estão cumprindo seus planos de ajuste, e o governo também entendeu a crise dos Estados e fez o que foi possível fazer.

Folha - As medidas provisórias não são um poder do Executivo sobre o Congresso?
FHC -
É um instrumento típico do parlamentarismo, onde o Congresso é responsável também pela administração. Certas decisões exigem realmente rapidez. Que têm de ter validade imediata. Eu não sou favorável à forma atual das medidas provisórias. Eu continuo achando que as MPs têm de ser regulamentadas.

Folha - O problema não foi que as MPs deveriam ser editadas em casos de exceção, mas acabaram virando regra?
FHC -
Não, não é isso. Há uma outra coisa. Como a Constituição é parlamentarista, boa parte das atribuições normais do Executivo viraram lei, boa parte que deveria ser decreto, virou lei. A maior parte das MPs é de medidas administrativas, que não precisavam ser lei, como criação de cargos, modificação de estrutura administrativa. Deveriam devolver ao Executivo o que lhe é próprio. Eu seria o último a invadir a esfera do Legislativo, ou desrespeitá-lo.
Acho razoável que se regulamentem as medidas provisórias. Eu não quero braço-de-ferro com o Congresso, por mais que o Antonio Carlos queira. Como eu não sou autoritário, eu não quero entrar nesse jogo. Quem ganha? Quem perde é o Brasil.

Folha - Mas o ACM adora isso.
FHC -
Mas eu não gosto, porque o Brasil perde com esse jogo. Acho que, para mudar as MPs, é preciso também pensar na administração do país, senão eu não terei como resolver questões reais do país. Isso é questão política ou é pensar na governabilidade? E isso não é para mim, é para o país. Daqui a três anos, eu não serei presidente.

Folha - Nem sob o parlamentarismo?
FHC -
Não, não. Podem escrever. Nem no parlamentarismo nem em nada.

Folha - Qual sua opinião sobre a anistia a multas eleitorais?
FHC -
Está nas minhas mãos e vou decidir até o dia 28. Eu não vejo o projeto com simpatia, mas preciso ouvir antes os argumentos, saber se há precedentes, se há base jurídica, qual é o efeito.

Folha - Mas a questão não é muito mais política do que técnica, jurídica?
FHC -
Não sei... Eu entendo pouco de política. Não é o que dizem?

Folha - O parlamentarismo é a solução para o país?
FHC -
Nós temos um sistema político-institucional que ficou entre a cruz e a caldeirinha, nem bem é parlamentarista nem bem é presidencialista. Eu sou parlamentarista, mas acho difícil implantá-lo sem ouvir o povo. Eu nunca falei de parlamentarismo por causa do resultado (contrário) do plebiscito (de 1992), e também para não virem de novo com essa história de ""o presidente quer ficar, quer arranjar um primeiro-ministro".

Folha - O sr. está convencido de que o Brasil tem condições de adotar o regime e que vai ser bom para o país?
FHC -
Sim, eu acho.

Folha - Em que período? Já?
FHC -
Depende do plebiscito, do povo. Não é fácil.

Folha - O seu governo pode fazer a proposição?
FHC -
Poder, pode. Não sei se é o caso, porque é um movimento muito mais amplo do que de um governo, de um partido.

Folha - Pode parecer um golpe?
FHC -
Pode parecer, sim.

Folha - Tem gente que defende uma solução parlamentarista para o caso de o governo FHC não acabar tão bem como se imaginava.
FHC -
Aí, não. Isso é coisa dos fracassomaníacos. Seria uma tragédia para o parlamentarismo. O que nós temos de pensar é o que é melhor para o país funcionar bem institucionalmente. Até porque o governo vai terminar bem.

Folha - Qual seria a grande vantagem do parlamentarismo?
FHC -
Tornar o Congresso partícipe efetivo do governo, mas é preciso haver muitas mudanças. Mudanças na Lei dos Partidos, por exemplo. Eu sou a favor do voto distrital misto, fidelidade partidária, cláusula de barreira. Se não, você não faz o parlamentarismo, faz o caciquismo parlamentar.

Folha - Tem gente que vai adorar...
FHC -
Não eu.

Folha - No início, só o PSDB era parlamentarista. Mas, agora, a cúpula do PFL também é, muita gente na cúpula do PMDB também. A idéia está se alastrando. Todo mundo desconfia que tem o dedo do governo.
FHC -
O meu dedo não está nisso.

Folha - Presidente, quais são as perspectivas para 2000?
FHC -
Eu vejo como boas, apesar de a gente nunca saber exatamente o que vai acontecer. No início do ano, eram ruins. No final, a economia está indo razoavelmente bem. Hoje, não depende tanto de nós. Depende do que acontece no mundo. A globalização amarrou as mãos. Só que a economia está globalizada, e a política, não. Você tem efeitos inesperados, ou positivos ou negativos, e sempre vão atribuir ao governo. Eu vou fazer o possível e o impossível para que o piso de crescimento seja de 4%. Mas não é uma previsão. Não dá para ter previsão, para vir com ""palpitômetro".

Folha - O que é ""o possível e o impossível"?
FHC -
É manter o equilíbrio nos juros, no câmbio, é fazer as reformas andarem. Mas também é preciso parar com essa história do mercado de que ou faz tal reforma ou o Brasil pára. Pára nada.

Folha - O mercado, vira e mexe, solta o boato de que o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, vai acabar sendo ministro da Fazenda. Vai?
FHC -
Não é por enquanto, nem nunca. Ele tem tranquilidade para ver as coisas, não tem essa ansiedade. Gosto muito de trabalhar com ele, ele é ""easy going" (de fácil trato).

Folha - O sr. corre o risco de terminar seu governo com as mesmas críticas na área social?
FHC -
Mas vai ser sempre, porque é ideológica. Quando você faz a comparação, vê que há progressos. Nunca se evoluiu tanto na educação, por exemplo.

Folha - O sr. arrisca fazer o perfil de quem deve ser o seu sucessor?
FHC -
Para governar o Brasil, você tem de ter determinação e também compreensão, tolerância para a diversidade. No ano passado eu ganhei a eleição com maioria absoluta, e hoje eu estou com baixa popularidade. E caiu por uma razão objetiva, pela questão econômica. Eu não sou iluso, como eu não gosto da coisa carismática, isso não é democrático, eu nunca quis ser líder carismático, eu nunca fui vendedor de ilusões, não é meu estilo. Isso pode acontecer? Pode. Quantas vezes o Brasil colocou gente desse estilo no governo? Mas agora eu pergunto se deu certo. Conseguiram fazer as mudanças que eu estou fazendo? Conseguiram avançar no social como eu estou avançando?

Folha - Em 2003, depois do seu segundo mandato, o que o sr. pretende fazer?
FHC -
Se possível, no Brasil. Bom, pretendo estar com meus livros, escrevendo, em Ibiúna.

Folha - Mas o sr. tem algum plano de continuar influenciando na vida política nacional?
FHC -
Não num plano institucional, conjuntural. Eu acho que quem foi presidente, se eu tiver sido presidente oito anos, ter influenciado a política anterior em outros dois anos (governo Itamar Franco), são dez anos. Eu acho que é tempo bastante para você ter feito o que pôde, não o que quis, certamente, mas o que pôde. Não ter a pretensão de ser juiz dos outros nem de si próprio.
Isso é a história que vai dizer. Claro que, se você olhar, eu sou velho o suficiente para isso, no tempo do Getúlio era só pau nele. As elites tinham horror a ele. Juscelino, a mesma coisa. Jango (João Goulart), nem se fala. Jânio (Quadros), nem tanto. Depois, você olha a história, foi um pouquinho diferente. Então, a gente tem de ter humildade. Deixar que os outros julguem o que se fez.
A gente tem de ter noção de sua época, de seu limite. Não quero também julgar os outros, cada um faz como quer. Eu tenho ""background" acadêmico forte, outros não têm. Então, os outros terão mais dificuldade para sair da vida política. No meu caso, eu não quero generalizar, se eu estiver vivo, quem sabe, eu preferirei estar cuidando da vida intelectual.

Folha - Quando o sr. for embora para casa, o sr. vai ter um prazer íntimo de não receber algumas figuras que hoje é obrigado a receber?
FHC -
Qualquer pessoa que vai embora para casa tem esse prazer. Mas também terei saudades de outros que eu não vou ver com tanta frequência.


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