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ENTREVISTA COM FHC
Sociedade ainda não reconheceu mudança do país
Sérgio Lima/Folha Imagem
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O presidente Fernando Henrique Cardoso durante entrevista à Folha, concedida na sala anexa à biblioteca do Palácio da Alvorada |
VINICIUS TORRES FREIRE
FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS A BRASÍLIA
No próximo dia 1º de janeiro, quando deverá passar a faixa presidencial a seu sucessor, Luiz Inácio
Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, 71,
terá completado 2.922 dias à frente da Presidência da República. Depois de oito anos no comando do país, FHC
faz um balanço de seus dois mandatos que é antes complexo do que simplesmente positivo. Mesmo ao repassar
erros e oportunidades perdidas, o presidente insiste nas
mudanças que operou no país, segundo ele ainda não dimensionadas pelo conjunto da sociedade.
Em entrevista à Folha durante cerca de três horas, no
último dia 11, no Palácio da Alvorada, FHC revelou um
entusiasmo quase juvenil ao discutir seu legado, os desafios do país e o futuro governo do PT. Bem-humorado, reclamou do cansaço e do excesso de compromissos. Havia chegado pela manhã de viagem aos Estados
Unidos. "A lista de telefonemas é o pior, um inferno."
Mesmo sem dizê-lo explicitamente, FHC deixa transparecer
que a futura gestão de Lula, que
derrotou nas urnas seu candidato,
José Serra, irá fazer, mesmo involuntariamente, o trabalho de esclarecimento do seu real legado.
À véspera de deixar o cargo, o
presidente parece ceder espaço ao
sociólogo, que se vê mais desimpedido para analisar o país e seu
próprio legado. FHC, aliás, tem
dois livros "na cabeça". Um sobre
as chances históricas de desenvolvimento de países periféricos,
mas integrados ao circuito do
grande capital, como Brasil e México. Outro, uma nova leitura dos
clássicos do pensamento político
à luz de sua experiência no poder.
Folha - O candidato do governo
foi derrotado na eleição para presidente. A opinião majoritária era
pela mudança. Houve avanços no
seu governo, mas eles parecem ter
sido ignorados na hora do voto. O
que aconteceu?
Fernando Henrique Cardoso -
Não é no momento eleitoral que
isso acontece, o momento apenas
cristaliza. São muitos fatores que
estão em jogo. Primeiro, há a fadiga de material. Na verdade, são
dez anos que não só eu estive no
centro dos acontecimentos, mas
também uma equipe. Isso produz, até inconscientemente, um
certo desgaste, um cansaço, mas
acho que isso não é o principal.
Os partidos que apoiaram o governo, o PSDB sendo o principal,
e o próprio governo fomos perdendo a batalha política, ideológica. Por que eu cheguei a presidente e fui presidente duas vezes? E,
antes de ser presidente, consegui
também ter um certo papel na política brasileira? Porque apresentamos ao Brasil uma visão e uma
saída. O Brasil estava num momento de grande desorganização:
do aparelho do Estado, da economia, inflação. E veio uma proposta que ganhou apoio na sociedade. A eleição vem depois.
Essa proposta implicava a
transformação do Estado, a continuidade da abertura (eu, na verdade, abri muito pouco a economia, quase que fechei mais do que
abri), a integração da economia
brasileira no sistema internacional, um conjunto de reformas e
uma modificação muito profunda da relação entre o governo e a
sociedade, o Estado e a sociedade,
um Estado menos assistencialista,
menos clientelista.
Como houve uma série de acontecimentos internacionais e nacionais, a desvalorização da moeda, processos de desgastes políticos e brigas no Congresso, acusações infundadas, mas frequentes,
com tudo isso você vai perdendo
a capacidade de convencer os outros do que você está fazendo. O
PT conseguiu desgastar bastante
[o governo", dar uma versão do
que estava acontecendo que não
correspondia necessariamente ao
que estava acontecendo, mas que
pegava, tinha apelo. O PT conseguiu ganhar a luta para, digamos,
simbolicamente e também politicamente, criar um outro discurso,
que foi eficaz para impedir que se
pudesse passar o que estava sendo
feito.
Folha - Quem eram os aliados
principais do PT nisso?
FHC - No caso é mais um estado
de espírito do que aliado principal. O que ocorreu no Congresso
basicamente? Veja o caso das corporações. O PT é o partido que expressou politicamente as corporações, que se opuseram a uma
reforma de Estado profunda. Mas
as corporações têm um discurso
como se elas fossem a expressão
do interesse coletivo. Numa situação como a brasileira, as corporações não são capazes de defender
o interesse coletivo. São estruturadas para manter privilégios.
Queria fazer uma reforma da
Previdência porque isso vai ser
necessário para haver, mais
adiante, uma inclusão social
maior. Mas isso não aparece assim. Aparece como a destruição
do interesse dos trabalhadores.
Claro que isso depende das circunstâncias, não é só uma questão simbólica. É também uma
questão objetiva num quadro de
dificuldades econômicas.
Folha - O senhor reputa a crise como a causa da derrota de Serra?
FHC - Não, não sou economicista. Ganhei a eleição de 98 numa
crise grande. Ali sim era crise.
Folha - Qual a diferença entre as
alianças do PT e as do seu governo?
FHC - Paradoxalmente, o PT tem
menos claro o que quer fazer com
o Brasil. Pois o que o PT quereria
fazer com o Brasil não apareceu
na campanha. A campanha foi
em torno do Lula, não foi em torno do PT. "Lula, Paz e Amor", não
é isso? Quer dizer, no meu caso, se
você for ler o que escrevi na campanha de 94 e 98, é o que eu fiz. As
propostas, você pode concordar
ou não, mas as propostas estão ali.
Mas, na sociedade moderna, os
grupamentos não funcionam
mais em termos, digamos, de estruturas institucionais, políticas
estáveis, a hegemonia depende
muito da formulação clara de linhas de força, que apontam a direção que você vai. E se possível
com algum símbolo que leve a isso, muito mais do que qualquer
outra coisa.
Eu sabia o que queria fazer, tinha dito que ia fazer e tinha 20, 50
pessoas que estavam convencidas
disso, que estavam alinhadas nessa direção e saberiam o que fazer,
tentavam fazer. Agora, nós estamos numa situação mais difusa.
Folha - O senhor se refere às
alianças do PT? Franjas do PFL,
agora o PTB, uma faixa do PMDB, o
Sarney, o Quércia, o PL...
FHC - Acho que isso não tem importância desde que você tenha
capacidade de direção e que essa
capacidade de direção coincida
com o movimento da sociedade.
E, claro, o núcleo orgânico tem de
ser grande, com pessoas que partilham uma certa visão, mesmo
quando são de outros partidos.
No caso do meu governo, as
áreas que achava fundamentais
eu fechei: toda a área econômica,
mais a Petrobras, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, o
BNDES...
Folha - O senhor blindou?
FHC - De alguma maneira, a direção estava dada nesses casos.
Mesmo na Previdência, com o
PFL, o ministro tinha essa posição. Assim como tinha minha visão na Educação, na Saúde, na Reforma Agrária. O jogo dos partidos, dentro do governo, ficou
muito limitado. O jogo foi grande
no Congresso, onde você precisa
ter essa aliança para passar as leis.
Agora, no governo, não.
Folha - E no caso de Lula?
FHC -No caso do Lula, é diferente. Não estou querendo prejulgar,
vamos ver o que acontece. Até
agora eu estou curioso para saber.
Li o discurso que o Lula fez nos
Estados Unidos. Que bom (ri).
Folha - O sr. tem alguma crítica?
FHC - Não, ao contrário. Enfim,
foi um discurso correto. Hoje, a
situação internacional do ponto
de vista do Brasil é relativamente
simples. Há hegemonia de um
país, os Estados Unidos, como
nunca se viu. O Brasil tem que ver
como defende seus interesses nessas circunstâncias. Se entrar em
choque com o país hegemônico,
ele tem capacidade de paralisação, de dificultar tudo o que você
for fazer. Não havia necessidade
de choque [no discurso de Lula".
Tem de se fazer o que é importante para o país. Acho que o discurso do Lula foi perfeito.
Folha - Tem se falado da expectativa messiânica em relação ao Lula.
O senhor vê algum risco de que isso
descambe para populismo?
FHC - O risco sempre existe num
país como o nosso, é sempre a
tendência do presidencialismo à
brasileira. Mas não acho que o Lula tem esse tipo de estilo pessoal.
Primeiro, o Lula está ligado a um
partido, o que limita esse tipo de
inclinação. Por outro lado, acho
que aqui no Brasil já existe uma
consciência democrática mais
forte. Quando fui eleito, em 1994,
fui a uma festa e um pessoal me
disse: "Agora, você tem que fazer
como o Fujimori" (risos).
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