São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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ENTREVISTA COM FHC

Sociedade ainda não reconheceu mudança do país

Sérgio Lima/Folha Imagem
O presidente Fernando Henrique Cardoso durante entrevista à Folha, concedida na sala anexa à biblioteca do Palácio da Alvorada


VINICIUS TORRES FREIRE
FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS A BRASÍLIA

No próximo dia 1º de janeiro, quando deverá passar a faixa presidencial a seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, 71, terá completado 2.922 dias à frente da Presidência da República. Depois de oito anos no comando do país, FHC faz um balanço de seus dois mandatos que é antes complexo do que simplesmente positivo. Mesmo ao repassar erros e oportunidades perdidas, o presidente insiste nas mudanças que operou no país, segundo ele ainda não dimensionadas pelo conjunto da sociedade.
Em entrevista à Folha durante cerca de três horas, no último dia 11, no Palácio da Alvorada, FHC revelou um entusiasmo quase juvenil ao discutir seu legado, os desafios do país e o futuro governo do PT. Bem-humorado, reclamou do cansaço e do excesso de compromissos. Havia chegado pela manhã de viagem aos Estados Unidos. "A lista de telefonemas é o pior, um inferno."
Mesmo sem dizê-lo explicitamente, FHC deixa transparecer que a futura gestão de Lula, que derrotou nas urnas seu candidato, José Serra, irá fazer, mesmo involuntariamente, o trabalho de esclarecimento do seu real legado.
À véspera de deixar o cargo, o presidente parece ceder espaço ao sociólogo, que se vê mais desimpedido para analisar o país e seu próprio legado. FHC, aliás, tem dois livros "na cabeça". Um sobre as chances históricas de desenvolvimento de países periféricos, mas integrados ao circuito do grande capital, como Brasil e México. Outro, uma nova leitura dos clássicos do pensamento político à luz de sua experiência no poder.

Folha - O candidato do governo foi derrotado na eleição para presidente. A opinião majoritária era pela mudança. Houve avanços no seu governo, mas eles parecem ter sido ignorados na hora do voto. O que aconteceu?
Fernando Henrique Cardoso -
Não é no momento eleitoral que isso acontece, o momento apenas cristaliza. São muitos fatores que estão em jogo. Primeiro, há a fadiga de material. Na verdade, são dez anos que não só eu estive no centro dos acontecimentos, mas também uma equipe. Isso produz, até inconscientemente, um certo desgaste, um cansaço, mas acho que isso não é o principal.
Os partidos que apoiaram o governo, o PSDB sendo o principal, e o próprio governo fomos perdendo a batalha política, ideológica. Por que eu cheguei a presidente e fui presidente duas vezes? E, antes de ser presidente, consegui também ter um certo papel na política brasileira? Porque apresentamos ao Brasil uma visão e uma saída. O Brasil estava num momento de grande desorganização: do aparelho do Estado, da economia, inflação. E veio uma proposta que ganhou apoio na sociedade. A eleição vem depois.
Essa proposta implicava a transformação do Estado, a continuidade da abertura (eu, na verdade, abri muito pouco a economia, quase que fechei mais do que abri), a integração da economia brasileira no sistema internacional, um conjunto de reformas e uma modificação muito profunda da relação entre o governo e a sociedade, o Estado e a sociedade, um Estado menos assistencialista, menos clientelista.
Como houve uma série de acontecimentos internacionais e nacionais, a desvalorização da moeda, processos de desgastes políticos e brigas no Congresso, acusações infundadas, mas frequentes, com tudo isso você vai perdendo a capacidade de convencer os outros do que você está fazendo. O PT conseguiu desgastar bastante [o governo", dar uma versão do que estava acontecendo que não correspondia necessariamente ao que estava acontecendo, mas que pegava, tinha apelo. O PT conseguiu ganhar a luta para, digamos, simbolicamente e também politicamente, criar um outro discurso, que foi eficaz para impedir que se pudesse passar o que estava sendo feito.

Folha - Quem eram os aliados principais do PT nisso?
FHC -
No caso é mais um estado de espírito do que aliado principal. O que ocorreu no Congresso basicamente? Veja o caso das corporações. O PT é o partido que expressou politicamente as corporações, que se opuseram a uma reforma de Estado profunda. Mas as corporações têm um discurso como se elas fossem a expressão do interesse coletivo. Numa situação como a brasileira, as corporações não são capazes de defender o interesse coletivo. São estruturadas para manter privilégios.
Queria fazer uma reforma da Previdência porque isso vai ser necessário para haver, mais adiante, uma inclusão social maior. Mas isso não aparece assim. Aparece como a destruição do interesse dos trabalhadores.
Claro que isso depende das circunstâncias, não é só uma questão simbólica. É também uma questão objetiva num quadro de dificuldades econômicas.

Folha - O senhor reputa a crise como a causa da derrota de Serra?
FHC -
Não, não sou economicista. Ganhei a eleição de 98 numa crise grande. Ali sim era crise.

Folha - Qual a diferença entre as alianças do PT e as do seu governo?
FHC -
Paradoxalmente, o PT tem menos claro o que quer fazer com o Brasil. Pois o que o PT quereria fazer com o Brasil não apareceu na campanha. A campanha foi em torno do Lula, não foi em torno do PT. "Lula, Paz e Amor", não é isso? Quer dizer, no meu caso, se você for ler o que escrevi na campanha de 94 e 98, é o que eu fiz. As propostas, você pode concordar ou não, mas as propostas estão ali.
Mas, na sociedade moderna, os grupamentos não funcionam mais em termos, digamos, de estruturas institucionais, políticas estáveis, a hegemonia depende muito da formulação clara de linhas de força, que apontam a direção que você vai. E se possível com algum símbolo que leve a isso, muito mais do que qualquer outra coisa.
Eu sabia o que queria fazer, tinha dito que ia fazer e tinha 20, 50 pessoas que estavam convencidas disso, que estavam alinhadas nessa direção e saberiam o que fazer, tentavam fazer. Agora, nós estamos numa situação mais difusa.

Folha - O senhor se refere às alianças do PT? Franjas do PFL, agora o PTB, uma faixa do PMDB, o Sarney, o Quércia, o PL...
FHC -
Acho que isso não tem importância desde que você tenha capacidade de direção e que essa capacidade de direção coincida com o movimento da sociedade. E, claro, o núcleo orgânico tem de ser grande, com pessoas que partilham uma certa visão, mesmo quando são de outros partidos.
No caso do meu governo, as áreas que achava fundamentais eu fechei: toda a área econômica, mais a Petrobras, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, o BNDES...

Folha - O senhor blindou?
FHC -
De alguma maneira, a direção estava dada nesses casos. Mesmo na Previdência, com o PFL, o ministro tinha essa posição. Assim como tinha minha visão na Educação, na Saúde, na Reforma Agrária. O jogo dos partidos, dentro do governo, ficou muito limitado. O jogo foi grande no Congresso, onde você precisa ter essa aliança para passar as leis. Agora, no governo, não.

Folha - E no caso de Lula?
FHC -
No caso do Lula, é diferente. Não estou querendo prejulgar, vamos ver o que acontece. Até agora eu estou curioso para saber. Li o discurso que o Lula fez nos Estados Unidos. Que bom (ri).

Folha - O sr. tem alguma crítica?
FHC -
Não, ao contrário. Enfim, foi um discurso correto. Hoje, a situação internacional do ponto de vista do Brasil é relativamente simples. Há hegemonia de um país, os Estados Unidos, como nunca se viu. O Brasil tem que ver como defende seus interesses nessas circunstâncias. Se entrar em choque com o país hegemônico, ele tem capacidade de paralisação, de dificultar tudo o que você for fazer. Não havia necessidade de choque [no discurso de Lula". Tem de se fazer o que é importante para o país. Acho que o discurso do Lula foi perfeito.

Folha - Tem se falado da expectativa messiânica em relação ao Lula. O senhor vê algum risco de que isso descambe para populismo?
FHC -
O risco sempre existe num país como o nosso, é sempre a tendência do presidencialismo à brasileira. Mas não acho que o Lula tem esse tipo de estilo pessoal. Primeiro, o Lula está ligado a um partido, o que limita esse tipo de inclinação. Por outro lado, acho que aqui no Brasil já existe uma consciência democrática mais forte. Quando fui eleito, em 1994, fui a uma festa e um pessoal me disse: "Agora, você tem que fazer como o Fujimori" (risos).


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