São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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HERANÇA MILITAR

Arquivo do Centro de Inteligência do Exército indica que diplomatas soviéticos eram espionados

Documento relata recrutamento de brasileiros pela KGB

DA COLUNISTA DA FOLHA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Um detalhado documento do CIE (Centro de Inteligência do Exército), do qual sobraram sete páginas chamuscadas, descreve detalhadamente o que seriam características de atuação e recrutamento de militantes brasileiros da KGB, o serviço de inteligência da antiga União Soviética. Fica evidente que o Exército espionava os diplomatas soviéticos.
Uma das informações para distinguir os que seriam agentes da KGB daqueles que efetivamente eram diplomatas diz respeito às mulheres deles. Muito festeiros, gentis, os agentes costumavam ter "esposas auto-suficientes, falando idioma estrangeiro".
Os agentes, segundo os papéis, usavam carros particulares com placas comuns, dispensando as placas azuis reservadas aos diplomatas estrangeiros. Também usavam fotos antigas nos passaportes, evitavam ser fotografados, não participavam de reportagens e negavam dominar outras línguas além do russo.
Segundo o CIE, os agentes usavam "de mentiras, nas reuniões sociais, causando contradições" e tinham um perfil profissional nada nobre: "Ocupação de funções com evidente despreparo intelectual para exercê-las. Ex: Adido Cultural que nada entende de cultura", afirma o documento.
O documento do CIE faz parte do material que sobrou da queima de documentos da ditadura militar (1964-1985) na Base Aérea de Salvador (BA) e foi entregue pela Rede Globo, na semana passada, ao secretário especial dos Direitos Humanos da Presidência, Nilmário Miranda. Os papéis, hoje, circulam no governo.
Sobre os agentes soviéticos, o material diz também que eles ocupavam casas isoladas e, na busca de "alvos" (brasileiros que poderiam ser cooptáveis para a militância comunista), davam preferência a contatos por telefones públicos e a visitas a suas casas ou a encontros em lugares ermos ou em restaurantes e bares pouco freqüentados.
A seleção de alvos brasileiros -chamados no texto de "nacionais"- se fazia "em todos os campos, militar, econômico, político e psicossocial".

Mulheres
Até o movimento feminista era alvo de informes com carimbo de "confidencial" da agência de Salvador do SNI (Serviço Nacional de Informações), como o de número 01941167/ASV/81, de 28 de setembro de 1981. Informava sobre a criação da comissão de organização da SEM (Sociedade Estadual de Mulheres).
O movimento era articulado pelo setor feminino do PMDB, o Movimento Brasil Mulher, o Diretório Central dos Estudantes, o Comitê de Anistia e Direitos Humanos, a Federação das Associações de Bairros de Salvador e a Associação de Profissionais.
O informe não conseguia nem sequer dizer corretamente quem presidia as reuniões, nominada apenas como Maria Marta, "ainda não identificada". E se preocupava com coisas irrelevantes, como especificar que "os homens que participam dessas reuniões não têm direito a voto".
Os objetivos, bem típicos do início dos anos 80, eram lutar, por exemplo, pela legalização do aborto e por creches em bairros pobres e contra a "violência social" e a LSN (Lei de Segurança Nacional).

Fichas individuais
Entre as 40 fichas de pessoas apontadas como adversários do regime militar, ou "subversivas", termo preferido dos órgãos de inteligência, há várias de mulheres.
Uma delas é tratada, em ficha de 23 de junho de 1969, como "esquerdista perigosa". Acusações contra ela: "comunista convicta com bases filosóficas", foi "apanhada" com cerca de cem exemplares do jornal "O Combatente", ajudava a produzir um outro jornal, "Unidade", era ativa no movimento estudantil e "conclamava os estudantes à greve e à derrubada do governo".
Dizia a ficha que ela pertencia ao PVBR, mas esse partido não consta entre os clandestinos da época -provavelmente, o correto era PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário).
(ELIANE CANTANHÊDE e IURI DANTAS)


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